A maioria dos leitores de Junji Ito no Brasil certamente não tomou conhecimento do trabalho do autor através de sua obra de estreia, Tomie. Desse modo, é interessante acompanhar o mangá não apenas por ser uma história que vai de zero a cem de inimagináveis maneiras, mas também para identificarmos diversos elementos, ainda embrionários, que permeiam toda obra do Mestre do Horror japonês, como muitos o chamam.
Na história, por trás de um rosto fascinante, realçado por uma única pinta debaixo do olho esquerdo, esconde-se um mal terrível. Um mal sedutor, capaz de enfeitiçar os homens e levá-los a cometer o mais hediondo dos atos: o assassinato. Mas como explicar o fato macabro de que a vítima desse instinto homicida é a própria Tomie? Eles a matam, matam e matam, mas o mundo nunca estará livre de Tomie. Deixando um rastro de loucura e cadáveres, essa misteriosa beldade morrerá e matará incontáveis vezes.
O tempo é um fator que faz toda diferença quando lemos ambos os volumes em sequência, pois fica nítida a evolução nos traços de Junji Ito a cada história, afinal, foram publicações ao longo de treze anos, de 1987 a 2000. No entanto, é interessante notar também que, apesar da velocidade de desenvolvimento, o autor nunca pecou pela falta de arrojo em seus contos, sempre explorando através da macabra garota todo tipo de mau possível – dela e das pessoas que a cercam.
A brutalidade retratada nas histórias de Tomie pode despertar no leitor diversos sentimentos e reflexões, mesmo não aparentando ter sido a ideia inicial de Junji Ito a respeito de algumas delas, como é o caso do machismo da sociedade japonesa. Toda sociedade possui sua dose de preconceitos e comportamentos deploráveis, mas há uma demanda sentimental reprimida na cultura nipônica que permite e entrega histórias singulares nesse sentido. A necessidade de se enquadrar em padrões de beleza – dos pés à cabeça (ou cabelo), a vaidade de querer ser a pessoa mais amada de todas e a obsessão em possuir a garota mais bela são alguns dos temas recorrentes ao longo dos dois volumes publicados pela editora Pipoca & Nanquim em 2021.
O fascínio por Tomie não é uma exclusividade dos homens, portanto. Também temos passagens em mulheres protagonizam a história com a inegociável vontade de se assemelhar à macabra garota. Nesse ponto, Junji Ito joga muito com a expectativa do leitor – hora queremos justiça com Tomie, pra logo depois acharmos completamente justo que ela seja picada em 42 pedaços.
O lado negativo fica por conta da narrativa demasiadamente dosada no formato de contos, um custo a se pagar em prol do exercício de toda essa criatividade mencionada anteriormente. Depois de alguns capítulos, ficam-se para trás personagens que não tiveram seu ciclo devidamente encerrado, e de fato o autor não se apega a eles o suficiente para dar ao conjunto de histórias um caráter mais sólido e, consequentemente, digno de maiores elogios. A prioridade aqui é a temática e a estética, aspectos em que Ito pode sim ser considerado um mestre. Se você espera uma sofisticação narrativa do ponto de vista técnico, tenho más notícias para você.
Desse modo, mesmo sendo a estreia do autor, essa característica de contar uma grande história através de contos é basicamente o seu feijão com arroz. E não é algo necessariamente ruim: é desse modo que o mangaká confere fluidez a toda sua arte.
Tomie é um ótimo trabalho de estreia de um autor que se consolidou como referência entre os fãs não apenas de mangá, mas também do gênero horror, chegando a ganhar uma série animada na Netflix. Junji Ito não conquistou todo o prestígio à toa e poder acompanhar o início dessa trajetória é, além de uma grande satisfação, um atenciosíssimo trabalho de curadoria da editora que o trouxe.
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