A editora Pipoca & Nanquim trouxe ao mercado nacional um lançamento bastante peculiar no mês de setembro de 2020, que foi O Rei Macaco. A obra, que adaptou em 1976 o clássico conto chinês Jornada ao Oeste (escrita por Wu Cheng’en), faz isso de modo bastante contextualizado à época do seu lançamento original. Tudo isso aos traços de Milo Manara (conhecido no meio dos quadrinhos como o Mestre do Erotismo) e roteiro de Silverio Pisu.
Originalmente publicada na revista Alter Linus e vencedora do prêmio Yellow Kid no renomado festival de Lucca, a trama contempla a história do Son Wukong, um símio nascido de um ovo parido por um rochedo mágico (é isso mesmo). Dotado de poderes extraordinários, ele segue em sua jornada até encontrar um grupo de pessoas e se torna rei delas. Não satisfeito, ele parte em busca de ainda mais poder, incluindo a imortalidade, o que desperta o interesse e a inveja do Imperador de Jade.
Curiosamente, o conto Jornada ao Oeste é um dos grandes inspiradores de uma das maiores franquias pop do ocidente: o amado Dragon Ball, de Akira Toriyama. Alguns pontos em comum do mangá / anime podem ser encontrados com esse quadrinho como o nome do protagonista (Son Wukong / Son Goku) e o icônico bastão mágico, arma poderosíssima que muda de tamanho numa amplitude absurda (que pesa oito mil toneladas!). Além desses elementos específicos, toda a ambientação e utilização de criaturas (como o gorila gigante no qual Goku se transforma) são bem semelhantes.
Do que se trata O Rei Macaco?
Para o devido entendimento e absorção da história, precisamos explicar que na época em que a obra foi escrita por Silverio Pisu, a Itália vivia um conturbado cenário político e econômico com o período dos “Anos de Chumbo”, marcado por uma acirrada briga entre extremos ideológicos com diversos atentados terroristas pós queda de Mussolini em 1945. Como os “Anos de Chumbo” duraram até o final da década de 1980, só podemos imaginar o quanto o povo italiano teve dias complicados.
Como períodos com esses contornos acabam gerando grandes obras artísticas, isso nos leva a Silverio Pisu, considerado o primeiro artista multimídia da Itália tendo trabalhado em quadrinhos, TV, teatro e até pintura. Em O Rei Macaco, ele acaba escrevendo uma representação do que seria o momento do país, mas com esse template de Jornada ao Oeste. Nesse sentido, é incrível a percepção artística de Pisu em mesclar duas vertentes culturalmente tão distantes.
Mas voltando a O Rei Macaco, podemos afirmar que Son Wukong representa a liberdade no que diz respeito a dogmas e outros condicionamentos da época. Não à toa, a comunidade da qual ele se torna rei são hippies. Ao desafiar o Imperador de Jade, que representa uma espécie de Deus cristão (dada as devidas proporções), é como se ele estivesse enfrentando o status quo ao querer sua imortalidade e demais direitos para si e seus pares. Isso dá margem para diversas analogias e interpretações, com direito a crítica para a expansão imperialista dos Estados Unidos (como fica ilustrado no embate contra o tigre com pelugem da bandeira do país norte americano).
Um Milo Manara diferente
Com a entrada de Milo Manara na jogada, então, as coisas só melhoram. Esse lançamento marca a primeira obra do catálogo da editora Pipoca & Nanquim a contar com desenhos do maior quadrinista de histórias eróticas. Porém, o que encontramos aqui é um pouco diferente, onde encontramos no máximo apenas algumas cenas de nudez. Isso não diminui o valor da obra, muito pelo contrário: é a chance dos fãs da nona arte de conferir um Manara na fase inicial de sua carreira (antes de se estabelecer como mestre do erotismo em Clic, obra que pavimentaria seu futuro), explorando outras narrativas gráficas de qualidade. E que qualidade: de acordo com o próprio desenhista, sua principal fonte de inspiração foram os grandes Moebius e, principalmente, Philippe Druillet, franceses da Metal Hurlant. Isso fica evidente, só para dar um exemplo, na disposição dos quadros como na imagem a seguir:
A edição do Pipoca & Nanquim serve como um verniz para essa incrível arte de Manara que, apesar de entregar um trabalho em preto e branco, oferece ilustrações coloridas no final como conteúdo adicional. Por falar em extras, há um mais do que bem-vindo glossário, explicando muito bem termos e personagens, o que irá auxiliar demais o leitor no entendimento do contexto que citei acima. Pra finalizar, também uma biografia dos autores que dão vida a esse quadrinho.
Esse é um dos pontos negativos da história: a necessidade do glossário para se entender a obra de forma plena, enquanto o ideal é que esse recurso servisse no máximo como um complemento. Também podemos citar que, se deixarmos a metáfora um pouco de lado, iremos reparar em alguns pequenos furos na narrativa e passagens um tanto apressadas. Nada que comprometa o leitor ávido por um bom e contextualizado conteúdo. No mais, O Rei Macaco é uma obra que merece ser conferida por qualquer fã de quadrinhos tanto pela sua importância histórica quanto pelo que ela representa dentro da carreira de Milo Manara e Silverio Pisu. O trabalho de curadoria do Pipoca & Nanquim está de parabéns.