Desde que suas obras fizeram sucesso, Mark Millar se transformou num queridinho de Hollywood. Estúdios lutavam para adaptar suas HQ’s, levando para a telona títulos divertidos como Kick-Ass, O Procurado e Kingsman. Quando a Netflix adquiriu os direitos do Millarworld, e assim suas propriedades criativas, foi difícil não conter a empolgação. Mas no streaming o efeito de Midas de Millar não se repete, resultando em séries inconstantes como O Legado de Júpiter. Mas e se o segredo estiver longe do saturado gênero de super-heróis? Talvez seja a hora de falar de religião. Foi assim que O Eleito ganhou vida.
Adaptando o primeiro volume de American Jesus, escrita por Millar e ilustrada por Peter Gross, O Eleito acompanha a pacata rotina do jovem Jodie (Bobby Luhnow). Vivendo ao lado de sua mãe Sarah (Dianna Agron) em uma pequena cidade mexicana, sua vida muda quando ele sobrevive a um acidente mortal. Seus dons adormecidos surgem e ele passa a ser adorado como o novo Jesus Cristo. Mas o quanto disso é verdade ou apenas algo oriundo de uma fé cega? Apesar de não conhecer profundamente a obra base, a mudança dos EUA para o México é essencial na construção do tom religioso que a trama aborda. É mais factível que uma população imersa em tradições cristãs abrace o absurdo de um rapaz que transforma água em vinho e cura doenças. Dessa forma, o espectador não rejeita que em alguns dias peregrinos adorem Jodie e estabeleçam quase uma seita em torno da criança.
Não foi pro acaso que citei Stranger Things no título do texto, já que O Eleito bebe bastante do estilo da série. Temos o grupo de amigos que se aventura pela cidade, o membro que descobre ter poderes diferentes e os mistérios por trás dos acontecimentos. Mas as comparações param por aí, já que a obra opta por seguir um outro rumo. Sai a nostalgia e entra o fervor religioso. É interessante como a típica ansiedade adolescente de Jodie afeta seu discernimento, usando seus poderes de formas menos nobres como ganhar dinheiro e impressionar a garota que gosta. Destaque para a direção de Everardo Gout, que faz um ótimo jogo de câmeras, especialmente nas tomadas externas, e opta pelo formato 4:3 na tela para simular o estilo de televisores antigos.
Mesmo com esses elementos, o texto de O Eleito nunca abraça todas as nuances da situação. Falta coragem ao roteiro de Jorge Dorantes para mergulhar de cabeça em questões mais problemáticas sobre tudo que envolve Jodie e seus milagres. Tudo ocorre da maneira que o público já espera, sem tensão ou mistérios. Os obstáculos que o protagonista enfrenta não se traduzem em verdadeiros desafios. Por sinal, todo mistério da trama é apresentado nos dois primeiros episódios e o restante da temporada parece correr em círculos para segurar a principal revelação até o final (não que seja algo difícil de adivinhar).
Se tomarmos Missa da Meia-Noite como exemplo, é possível ter uma visão maior do potencial desperdiçado de O Eleito. A série de Mike Flanagan é muito mais incisiva em suas críticas e questionamentos, abraçando também o sobrenatural. Ainda que o público alvo seja diferente, um pouco de terror aqui serviria como um tempero a mais para a receita. Mesmo com o sol escaldante e a poeira das paisagens mexicanas, tudo parece limpo demais.
Levando em conta o encerramento, é possível tratar O Eleito como uma minissérie. Ainda que exista material para ser adaptado em outras temporadas, os efeitos das greves dos roteiristas e atores (que os impedem de divulgar seus trabalhos) podem atrapalhar a repercussão do programa aos olhos da Netflix. Ainda não foi dessa vez que uma obra de Mark Millar brilhou no streaming, mas oportunidades não faltam. Posso ouvir um amém?