Netflix: não era amor, era cilada

“Amar é compartilhar senhas”. Em 10 de março de 2017, o perfil oficial da Netflix no Twitter compartilhou essa mensagem. Quase uma década depois, a rede social do passarinho azul foi comprada por um bilionário lunático e a gigante do streaming agora começa uma campanha justamente contra o compartilhamento de senhas. Uma reviravolta digna das melhores séries que a empresa já entregou algum dia, e um golpe direto naquela que é a principal tradição da América Latina quando o assunto é assinatura de serviços de streaming. Claro que a ideia não surgiu da noite para o dia, já que países como Chile e Argentina serviram como teste para essa prática. E pasmem, em um comunicado de mercado no final do ano passado, A Netflix já esperava uma onda de descontentamento e cancelamentos por toda a região.

Não deu outra e o assunto tomou conta das redes sociais desde o anúncio oficial realizado na tarde de ontem, 23, com diversas postagens sobre cancelamentos e até mesmo perfis cobrando o Procon para tomar alguma atitude antes que o estrago seja maior. Porém, a empresa acredita que a longo prazo esse movimento trará o retorno financeiro tão visado pelos investidores. Mais do que a questão financeira, esse episódio aquece o debate sobre a relação entre a cultura pop e o streaming.

Uma nova vida para a pirataria?

A pirataria nunca morreu de fato no Brasil, mas sentiu o impacto do advento do streaming. Os preços justos e a praticidade eram grandes atrativos numa época em que apenas a Netflix controlava o mercado por aqui. Por mais que nossa geração domine o uso do Torrent, nem todas as pessoas possuíam a habilidade de baixar um filme e encontrar a legenda compatível com o arquivo, caso fosse necessário. Um site que reúne diversos filmes e diversas séries sem a presença de vírus e pop-ups é um concorrente ingrato. Porém, assim como a TV nunca matou o rádio, o streaming não conseguiu se ver livre da pirataria. IPTV e TV Box são a nova face da prática, que agora incorporou a praticidade dos serviços pagos. Com os recentes aumentos e agora a polêmica decisão da Netflix, o cenário nunca esteve tão acessível para os piratas da era moderna.

Quem ama bloqueia?

Impossível não lembrar dessa campanha da Oi para promover seus celulares desbloqueados. De fato, compartilhar senhas é uma prática extremamente comum no Brasil. Famílias grandes ou grupos de amigos dividem os valores e as contas em nome da economia e da praticidade. Existem até serviços especializados como o Kotas, que reúne pessoas interessadas nesse compartilhamento. Pesquisas recentes mostram que para assinar o plano básico de todos os streamings disponíveis no país, o usuário teria que desembolsar quase R$350,00. Claro que ninguém assina todos, mas isso ajuda a ter uma ideia dos gastos para consumir filmes e séries de maneira legalizada. A Netflix parece acreditar que essa proibição irá converter as pessoas que perderam acesso em novos usuários. No entanto, com toda concorrência no mercado, o efeito pode ser justamente o contrário. Aliás, não duvido que muito em breve as outras plataformas irão utilizar isso como uma forma de se promover. Ou pior, decidam seguir o mesmo caminho.

O streaming é o lobo do streaming

Se estivesse vivo para acompanhar tudo isso, certamente Thomas Hobbes teria atualizado sua célebre frase. A Netflix abriu um porta eterna para que outras empresas buscassem seu próprio serviço de streaming. Mais filmes, séries, realitys shows etc. Perfeito para o público não é mesmo? No começo sim, mas agora nem tanto. Os principais atrativos da cultura pop estão espalhados por diversos aplicativos, que por sua vez, oferecem benefícios distintos para atrair o assinante. Mas os movimentos mercadológicos são incessantes e daí surgem fusões como HBO Max e Discovery, ou então a estratégia sacana da Disney de dividir seu vasto conteúdo em Star+ e Disney +. Com recentes prejuízos bilionários, as empresas precisam repensar suas práticas atuais. A sensação é que todos querem uma fatia do bolo. Mas o bolo não é igual aqueles dos aniversários dos anos 1990, que alimentavam uma família inteira, mas esses novos que nem são partidos no fim da festa.

Apesar de toda simpatia e brincadeiras nas redes sociais, momentos como esse nos lembram que empresas visam apenas o lucro e não se importam com o bem-estar do público. A verdade é que aproveitar uma série no fim de semana nunca gerou tanta dor de cabeça, e agora, uma dor no bolso.