Um dia, estava eu de boinhas, quando recebi uma mensagem da minha amiga e ilustradora, Débora Santos (Gringo Love, Pombos!), falando sobre a HQ Luzia, produzida por ela e Zé Wellington (Cangaço Overdrive, Steampunk Ladies), da qual já havíamos noticiado da pré-venda. Aguardei com ansiedade e o dia de tê-la em minhas mãos chegou. Assim que tive tempo, mergulhei na história de Luzia, de Teresinha, Alexandre, e todo o sertão de Sobral na época da Grande Seca que aconteceu de 1877 a 1879 no Ceará. Estima-se que nesse período, pelo menos meio milhão de pessoas morreram por causa desse fenômeno. Entretanto, esse não é o foco da história, que se concentra, principalmente, em Luzia, uma mulher forte, corajosa e determinada, que foi apelidada de Luzia-Homem justamente por estas qualidades.
Mas, vamos começar pelo começo. Segue aí!
Domingos Olímpio e Luzia-Homem
Um dos últimos livros lançados no Brasil pertencentes à escola literária Naturalismo, Luzia-Homem foi lançado em 1903, ajudando a iniciar o chamado regionalismo nordestino. Esse fenômeno da literatura, seja na fase realista-naturalista ou na modernista, gira em torno dos problemas geográficos, sociais e políticos da região. Infelizmente, ficou impregnado a ideia de que o sertão nordestino é exclusivamente feito da seca, e assim, desde àquela época, as temáticas de migração, banditismo, fanatismo religioso, decadência e desmoralização do ser humano, vícios, explorações políticas, evasão dos campos para as cidades etc. são sempre abordadas quando se pensam no Nordeste.
Claro, nesse caso, Domingos Olímpio não poderia pensar diferente, estando vivo durante o período chamado de A Grande Seca, e era a realidade, então. Luzia-Homem é considerado um dos livros mais importantes quando se fala em regionalismo nordestino, principalmente ao termos um autor que consegue retratar com fidelidade o sertanismo da época, sabendo caracterizar seus personagens de maneira que a literatura brasileira deveria sempre se orgulhar, exibindo a luta do ser humano contra o meio hostil em que habita.
Em Luzia-Homem, a figura central é Luzia, que, apesar do apelido pejorativo, é de grande feminilidade, sendo também dona de força invejável, de determinação e coragem, ao mesmo tempo em que temos a sua gentileza, seu cuidado com o próximo. Por conta disso, um soldado – Crapiúna, está disposto a tudo para tê-la. É uma história que percorre amor e ódio, com um pano de fundo forte, sobre devoção e covardia.
Não é à toa que Zé Wellington e Débora Santos tiveram interesse em adaptar essa tão importante obra, que também tem suas versões em teatro e filme.
A HQ Luzia
Não consigo ver quem melhor seria para adaptar tal história senão a dupla que o fez, Zé Wellington e Débora Santos. Com maestria, o roteiro foi bem adaptado, mantendo todo o regionalismo que o caracteriza originalmente, escolhendo passagens que trazem a força narrativa necessária para mostrar as situações vividas pela protagonista e os seus. E, com um cuidado que eu só consigo definir como “A PERFEIÇÃO”, as ilustrações conseguem capturar todas as nuances que o roteiro pede e, em cada cena, vemos como Débora atinge o seu intento. Os cenários bem retratados, os personagens, mesmo sendo secundários, recebem atenção e podemos diferenciar todos os que estão em cena e lembrar de seus nomes pelas características físicas que os marcam.
De forma singular, Luzia foi desenhada como uma mulher forte, bela, com características marcantes, dignas da personagem. Conseguimos entender o motivo do apelido e, ao mesmo tempo, questioná-lo. Vemos a força física e a valentia de Luzia em sua fisionomia, mas também sua beleza e gentileza, cada detalhe bem pensado.
Misturado à adaptação bem feita de Zé, a HQ se torna algo único e belo por si. Mesmo quem não leu o livro de origem conseguirá saborear a história e se apaixonar por Luzia. Além disso, vê-se que a editora Draco fez um excelente trabalho ela. As cores da capa, o material utilizado, tudo de muito bom gosto. Vale a pena cada centavo.
Seu defeito? Ela acaba.
Sobre os seus realizadores
Zé Wellington é cearense, escritor e roteirista de histórias em quadrinho (sim, ser cearense vem antes de tudo, bjs de lus). Já foi indicado três vezes ao troféu HQ MIX e venceu em 2016 com Steampunk Ladies: Vingança a Vapor (2015). Seu outro trabalho Cangaço Overdrive (2018), foi semifinalista do Prêmio Jabuti na sua categoria. Além desses dois trabalhos, lançados pela editora Draco, ele possui mais outros, além de, é claro, o mais novo, Luzia.
Débora Santos também é cearense, sendo uma ilustradora incrível e quadrinista integrante do selo independente Netuno Press. Participou de antologias e lançou histórias independentes, como Sapacoco (2017). Além de Luzia, suas publicações mais recentes são Gringo Love e Noite de Spoiler.
E para as pessoas que ficarem preocupadas com o fato do dialeto cearês marcar a HQ inteira, relaxem. Eles tiveram o cuidado de inserir um glossário no final para ajudá-los nessa empreitada.
Luzia é uma HQ nacional, baseada em um clássico brasileiro e feita por um escritor e uma ilustradora, ambos cearenses. Não tem como ser melhor do que isso! Apoiem nossos artistas nacionais. Divulguem, comprem, espalhem a palavra. O Brasil tem muita história boa contada, e muita nova que está sempre chegando!