Lovecraft Country: racismo e monstros cósmicos

Com um time de peso por trás das câmeras e ótimos atores, Lovecraft Country mostra que nenhum monstro é pior que a realidade

A HBO abriu esse ano com uma adaptação do mestre do terror Stephen King. Depois dessa empreitada bem realizada, a gigante das séries resolveu explorar o universo de outro nome lendário do gênero, na verdade, a inspiração por trás de muitos escritores renomados: H.P Lovecraft. Contudo, a obra em questão não é uma releitura ou reimaginação de um conto famoso, mas uma viagem pela sua cartilha de criaturas cósmicas e a exploração do lado mais vergonhoso do autor: seu racismo e xenofobia. Lovecraft Country surge para nos mostrar que o horror da vida real é muito mais impactante que qualquer monstro fictício.

Baseada no livro escrito por Matt Ruff, a trama acompanha o jovem Atticus Freeman (Jonathan Majors) veterano da Guerra da Coréia que retorna para Chicago em busca de seu pai Montrose (Michael K. Williams). Com ajuda de seu tio George (Courtney B. Vance), um escritor do Green Book – guia de viagem segura para negros na América das leis Jim Crow – e da ativista e amiga de infância Leti Lewis (Jurnee Smollett), Tic usa uma carta como ponto de partida para sua jornada. É dessa premissa que Lovecraft Country apresenta sua eficiente mistura entre fantasia e realidade, tendo a literatura pulp como um elemento de presença constante.

Aliás, a leitura é a pedra fundamental do primeiro episódio e deve permear toda a temporada. Num período onde os direitos dos negros inexistiam, era loucura sonhar com obras que conversassem diretamente com sua realidade. O que restava eram nomes como o próprio Lovecraft e Edgar Rice Burroughs. Tanto Atticus quanto seu tio, leitores inveterados, compreendem esse contexto. Apreciar seu gênero favorito, ainda que este seja cercado de males. Por isso, a primeira cena do episódio é bastante significativa, com a mescla de lembranças da guerra e devaneios da imaginação. Ao vermos o lendário jogador de beisebol Jack Robinson partir Cthulhu ao meio, a mensagem é bastante clara: o racismo precisa ser combatido.

Quando assume sua vertente de road trip, o episódio leva o espectador por uma viagem através da América segregacionista dos anos 50. Com certos momentos de exposição didática, como a aula sobre a Casa Branca, vamos aprendendo mais sobre toda a tensão existente em uma aparente simples viagem de carro. A sensação crescente de que algo vai dar muito errado em breve – numa espécie de escala Quentin Tarantino – não custa para mostrar-se válida. De fato, as perseguições que ocorrem – em especial a última ao pôr-do-sol – geram o mais genuíno dos arrepios na espinha.

Jonathan Majors em cena de Lovecraft Country. Divulgação: HBO.

Essa visão crua e precisa do racismo nos EUA deve-se muito pelo talento de duas pessoas. A showrunner Misha Green, responsável pelo ótimo Underground, sabe bem como subverter as expectativas do público. Utilizando do chamariz de Lovecraft no título, ela faz com que a marca registrada do escritor seja ofuscada pelo real perigo que os personagens encaram diariamente. Como produtor executivo, Jordan Peele sabe como poucos construir o desespero através da tensão racial. Em mais de uma oportunidade, é possível traçar paralelos entre Lovecraft Country e Corra, por exemplo.

Porém, não é apenas nesse aspecto social que o episódio mostra sua força. A reta final é marcada pelo primeiro vislumbre dos monstros lovecraftianos, numa transição natural do realismo para o sobrenatural. Aparentemente, Misha Green não pretende esconder as criaturas ao longo da temporada, aumentando ainda mais o grau de urgência da jornada. Nos aspectos técnicos, a construção de época dos EUA dos anos 50 e a ótima trilha sonora merecem destaque.

Amparada pelo atual cenário sócio-político dos EUA, Lovecraft Country desponta como uma série bastante necessária. Com um time de peso por trás das câmeras, ótimos atores e uma boa história para ser contada, a nova produção original da HBO tem tudo para agradar antigos e novos fãs do terror. Mesmo que o homenageado em questão não fique satisfeito, o que nesse caso é um bom sinal.