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Tell Me Why: traumas, memórias e suas armadilhas | Crítica

Life is Strange é um dos meus jogos narrativos favoritos. Acredito que existe uma maturidade em contar uma história humana utilizando elementos mágicos. Em seu novo jogo, a DONTNOD se supera trazendo uma história mais curta, contida e mais madura com Tell me Why. Caso você não conheça o jogo, recomendo ver minha análise do primeiro episódio. A seguir, confira minha análise com spoilers dos três capítulos do jogo e da trama.

Tell Me Why conta a história de Allyson e Tyler, um casal de gêmeos que se reencontra depois de anos separados. Ambos passaram por um momento traumatizante envolvendo a sua mãe por causa da transexualidade de Tyler. Eles agora vão encarar seus traumas do passado e descobrir segredos escondidos. O jogador vai alternar no controle dos dois em momentos pontuais da história.

Visual a favor da narrativa

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Falando primeiro dos aspectos técnicos, Tell Me Why é facilmente o jogo mais bonito da DONTNOD. Os cenários do jogo estão lindos e muito bem detalhados, funcionando muito bem para contar aquela história. A cidade de Delos Crossing é um personagem importante da trama criada para o jogo e isso é muito bem representado pelo o que você vê na tela. Claro que esse elemento da “cidade pequena do interior que esconde segredos” é um clichê muito usado, além de termos personagens jovens adultos que querem fugir de tudo aquilo. Mas esses clichês são bem utilizados e funcionam muito bem com a trama.

A casa dos irmãos também é cheia de personalidade representando, ao mesmo tempo, um local mágico recheado de memórias boas e ruins. Os mecanismos e puzzles criados pela mãe parecem às vezes elaborados demais, mas é aí que entra um pouco a suspensão de descrença e o fator de que, no final do dia, Tell Me Why ainda é um jogo.

Os personagens também estão muito bem feitos e exalam personalidade, funcionando bem para momentos de descontração ou mais dramáticos. A direção de algumas cenas poderia ser um pouco mais criativa mas também existem momentos interessantes de narrativa, principalmente no início e final de episódios. Um problema nos modelos dos personagens é a sincronia labial meio esquisita que tira você da imersão em alguns momentos. Mas claro, não dá para exigir tanto de um estúdio pequeno e um jogo com orçamento limitado.

A jogabilidade de Tell Me Why

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Mecanicamente, Tell Me Why não faz muito diferente do que já é comum nesse tipo de jogo. Apesar disso, existem momentos criativos quando você precisa usar o “livro dos goblins” para resolver alguns puzzles bem interessantes. Mas, como tudo no jogo é definido pelo seu pequeno escopo, esses desafios são raros e curtos, me deixando com um gostinho de quero mais. A “voz” dos personagens também é subutilizada, fiquei com vontade de experimentar mais diálogos onde os personagens possuem uma telepatia e podem conversar entre si no meio das falas.

Além disso, as falam que o jogador precisa escolher geralmente são versões simplificadas do que o jogador vai dizer. Em alguns momentos o resultado da fala que eu escolhi era bem diferente do prompt inicial e isso é um grande problema para um jogo que se baseia praticamente nisso. Outro costume de jogos em que você muda a história são as malditas notificações de escolha. Essa é uma prática que tira você da imersão e poderia ter ficado lá atrás. Essas notificações te tiram da narrativa e fazem com que você pense naquilo como um jogo, em vez de aproveitar a narrativa por si só.

Sobre a História

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Mas a verdade é que Tell Me Why brilha mesmo é na sua história. O jogo foi vendido com essa proposta em que você joga com um personagem trans. Desde o começo a empresa divulgou a obra como algo que vai evitar os clichês envolvendo personagens LGBTQ+, inclusive consultando profissionais da área. Essa, para mim é uma das grandes ideias do jogo. Você começa jogando com Tyler, um homem trans que foi ameaçado de morte pela mãe pois ela não o aceitava como ele era. Só que ao desvendar esse mistério, você descobre que a história é um pouco mais complexa do que isso.

A história então dá uma reviravolta e deixa de ser sobre preconceito com pessoas trans, e sim uma história sobre pessoas com problemas psicológicos. A DONTNOD teve que pisar em gelo fino aqui (fazendo uma referência ao lago do lado da casa) e ter bastante cuidado para não “passar pano” para a violência que as pessoas trans sofrem dentro da própria família. A mãe dos gêmeos, na verdade, era uma pessoa com uma história conturbada e problemas psicológicos graves. Tudo que ela tinha era os filhos e, quando soube que eles poderiam ser tirados dela, ela pensou em se matar. Pelo menos foi assim que eu contei minha história…

Como é comum em jogos do gênero, Tell Me Why lhe dá opções para modificar a história baseado nas suas escolhas. Um dos usos mais interessantes disso no jogo é quando você tem que confrontar as memórias diferentes dos gêmeos de eventos passado e “decidir” o que realmente aconteceu. Ora, é muito comum que as memórias nos preguem peças e que pessoas lembrem de forma diferente de situações no passado. O jogo usar isso como mecânica para você decidir o que aconteceu no passado é algo muito inteligente.

Pois bem, no meu jogo ( e acredito que essa é a ideia principal dos roteiristas), Mary Ann ia cometer suicídio, seu filho apareceu e uma sucessão de mal-entendidos fez com que sua filha a matasse. É um final duro e cruel, pois a morte da mãe aconteceu por causa de uma desgraçada confusão. Mas é algo bem possível e muito bem construído durante a narrativa dos três episódios. Por falar nisso, o jogo desenvolve muito bem essa narrativa e te deixa interessado no que eles vão descobrir. Esse negócio de querer saber mais sobre a vida dos seus pais é algo que todo mundo já teve então é fácil de se relacionar.

A maturidade da narrativa de Tell Me Why

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A maturidade de Tell Me Why vem de mostrar Tyler como um personagem que é trans e que, por acaso, tem um trauma familiar forte. Ele não teve esse trauma por ser trans, a vida dele não gira em torno disso. Inicialmente, a narrativa sugere que essa foi a culpado acontecido mas, com o tempo, você vai aprendendo que não foi. Apesar disso, o jogo não ignora todas as dificuldades que o personagem passou e vai passar, ele simplesmente fala que sua opção de gênero é uma característica daquele personagem, e não a única coisa que lhe define. Outra maturidade do jogo é mostrar que uma tragédia acontece por causa de uma sucessão de situações horríveis. Apesar do verdadeiro pai dos gêmeos ser um escroto, não existe um vilão na trama. Cada personagem tem suas motivações e é um ser complexo.

Existe também no jogo todo um subtexto das histórias que a mãe criava sobre os goblins como seus filhos, ela como a princesa e os outros animais da floresta como seus amigos. Eu acredito que no final do jogo a mãe deles é tão protagonista quanto eles e que tinha uma história escondida e bem interessante. Ela criava toda aquela fantasia para fugir do sofrimento interno que ela passava. Sendo esse um ótimo ponto do jogo, pois mostra a gravidade de alguns problemas psicológicos podem chegar se não forem tratados. Mas eles não ficam somente em mostrar o lado mais grave disso, em certos momentos personagens indicam ajuda de profissionais como forma de resolver esses casos.

Veredito

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Tell Me Why não é um jogo muito longo mas há muito a se falar sobre ele. É uma obra madura que pode te fazer rir e chorar. Em um mundo de jogos AAA, em que você tem que matar hordas e hordas de inimigos, é bom ver um jogo que fala de forma bem singela sobre sentimentos humanos.

Ele funciona como uma boa história de investigação, um bom drama e também traz à tona questões que precisam sim ser mostradas e discutidas. É um jogo que mostra como histórias com representatividade dentro do estúdio e consulta com profissionais podem ser muito mais reais e responsáveis.