Concorrente ao Oscar em diversas categorias, Pobres Criaturas (Poor Things, 2023) é o novo filme do estranho diretor Yorgos Lanthimos (O Lagosta, O Sacrifício do Cervo Sagrado, A Favorita), baseado no livro homônimo de Alasdair Gray, e traz como protagonista a incrível Bella, interpretada pela mais incrível ainda, Emma Stone.
Pobres Criaturas é um releitura de Frankenstein, o livro da mãe da ficção científica, Mary Shelley, lançado em 1818. Porém, ao invés de termos uma criatura atormentada pela sua existência e largada à própria sorte, a protagonista não é abandonada, ela mesma sai, por decisão própria, buscar o que é a vida. E tudo isso se inicia com uma fase curiosa do nosso crescimento como seres humanos: a descoberta sexual.
Vivemos em uma sociedade que trata o sexo, em relação às mulheres, como algo de extremo tabu. O prazer feminino é algo reprimido, visto com narizes tortos e nem um pouco estimulado. Claro que, de alguns anos para cá, nós mesmas estamos correndo atrás disso, nos libertando dessas ideias carolas e conservadores de que mulher só pode fazer sexo para reprodução, ou, se for para o prazer, que ela é nada mais do que uma puta que não merece respeito. Ainda somos deixadas de lado em muitas pesquisas, o corpo feminino ainda é, em grande parte, um mistério, pois o âmbito cientista pouco estudou sobre os nossos corpos, nossos tratamentos são defasados e baseados no que funciona para o sexo masculino.
E Pobres Criaturas chuta essa porta e diz “Não. Mulheres são donas do próprio corpo, do próprio prazer, suas vidas pertencem a elas e não há criatura no mundo que possa ou tenha o direito de prendê-las”.
Bella Baxter (Emma Stone) é o experimento científico do “macabro” Dr. Godwin Baxter (Willem DaFoe), o corpo de uma mulher adulta em que foi implantado o cérebro do seu bebê não nascido após o seu suicídio. Ela inicia o longa como tendo a mentalidade de um neném de poucos meses, e por meio da documentação do assistente do cientista, a vemos desabrochando para a vida, aprendendo com uma curiosidade ávida e questionadora, coisas que a tornam absolutamente adorável.
Acompanhamos Bella descobrindo o mundo, suas maravilhas e seus desprazeres, de uma forma ingênua, apaixonante, dolorida, pois o filme, ao contrário do que se espera, não nega que o mundo também é cruel, com várias injustiças, e a protagonista, ao passo que vivencia a vida da maneira que deseja, ignorando as normas sociais, a tal sociedade civilizada que tanto pregam, também vive momentos de angústia, é manipulada por pessoas mal caráter, é obrigada a encarar os horrores da vida pelo capricho e mesquinharia dos outros.
Sua jornada pessoal, tendo a vida que quer, do jeito que quer, no momento que quer, reerguendo-se de seus erros, aprendendo com tudo ao seu redor, perspicaz e inteligente, muito sagaz em suas observações, mas também ouvindo a quem possivelmente sabe mais, tirando suas próprias conclusões… toda essa jornada dela é inebriante.
E graças à atuação de Emma Stone, você mal consegue tirar os olhos da tela. A mulher entrega tudo e muito mais.
Os personagens masculinos são um ótimo contraponto para a protagonista, homens obcecados por ela, que tentam prendê-la, controlá-la, tê-la para si a qualquer custo – e nunca dá certo. Dr.Godwin persiste em amarrar a sua existência a dele por conta do seu paternalismo, que vem muito recheado de traumas de infância e um desejo irrefreável de dar o que pode à filha adotiva, até o ponto de ter que aceitar que ela precisa seguir a si mesma, ou se tornará algo que não é. Ele jamais poderia quebrá-la para que fosse uma pessoa diferente.
Seu assistente, Max McCandles (Ramy Youssef), apaixona-se por ela, e revestido da armadura da sociedade civilizada, tenta tê-la só para ele, indignando-se ao perceber que a mulher que tanto ama está indo para outro lado, que por mais que ela possa amá-lo de volta, Bella precisa da própria jornada, descobrir a si mesma antes de qualquer coisa.
E por último, o personagem de Mark Ruffalo, Duncan Wedderburn. O timing cômico do ator é impagável, e sua atuação como uma criatura mesquinha, desagradável, o típico boy lixo, é incrível. Ao invés do seu charme habitual, queremos apenas que o homem se lasque. Pessoalmente, já encontrei vários Duncan Wedderburn, e eles nunca são verdadeiramente agradáveis, sendo o epítome do meme “fã ou hater” na hora de falar com você.
Estes três servem de contraponto para Bella, mostrando o quanto exigem dela para que caiba nas expectativas deles, e por não atender a nenhum desses apelos, a protagonista vive uma vida plena, da forma que bem entende, seguindo seu próprio julgamento, sendo a sua própria pessoa.
A estética do filme de Yorgos Lanthimos é belíssima, com figurinos muito inspirados e cenários exuberantes como araras coloridas que dançam pelos céus das florestas. Com jogo de câmera, a utilização de lentes como olho-de-peixe, o diretor constrói cada vez mais uma aura bizarra, esquisita, de algo que é atraente e, ao mesmo tempo, estranho, algo que muitos não saberão definir. Abusa-se e usa-se de diversas cores para ilustrar esse mundo fictício, teatral, parecendo, em muitos momentos, com uma peça bem elaborada.
Há muito a se falar sobre o filme, de todas as mensagens, escancaradas ou não, os cenários, as cores, as músicas, as atuações… tudo. Não é à toa que concorre a onze Oscars, e espero sinceramente que ganhe todos. Ou a maioria. Pobres Criaturas vai estrear no dia 1º de fevereiro, então dá tempo de você apreciar essa obra-prima antes que a cerimônia do careca de ouro comece.