Pisque Duas Vezes marca a estreia de Zoë Kravitz na direção, e, olha, que estreia impressionante! Com um olhar preciso e sensível, a diretora utiliza ângulos, movimentos, cores e sons que complementam cada cenário e cena, aumentando a nossa tensão gradativamente e guiando nosso olhar para os lugares certos – ou errados, dependendo de como você interpretar. É uma história forte, com elementos de terror magistralmente inseridos.
Aqui, temos Frida (Naomie Ackie), uma mulher que se sente invisível e cansada do mundo. Ela e sua melhor amiga, Jess (Alia Shawkat), trabalham em um evento de gala organizado por Slater King (Channing Tatum), CEO de uma das maiores empresas do mundo. Em uma “brincadeira”, Frida consegue roupas de festa para ela e a amiga, fugindo de seus trabalhos como garçonetes para se misturarem aos convidados e, no caso de Frida, tentar se aproximar do charmoso CEO. Um pequeno acidente acontece e acaba que o desejo dela se realiza, a noite parece voar como num daqueles sonhos de livros eróticos em que a mocinha se envolve com o milionário. Quando tudo parece prestes a terminar, Slater as convida para sua ilha particular, e elas prontamente aceitam. Tudo parece uma diversão interminável em um paraíso, mas, por alguma razão, as coisas parecem meio… estranhas?
Na literatura, existe um princípio chamado Lei/Arma de Tchekhov, criado pelo dramaturgo russo Anton Tchekhov, conhecido por sua sutileza ao inserir detalhes importantes em suas tramas. A ideia é que nada deve ser introduzido na narrativa sem um propósito; se uma arma aparece no início da história, ela deve ser disparada mais tarde. E o roteiro de “Pisque Duas Vezes” segue esse princípio à risca, exigindo que prestemos atenção a cada detalhe em tela, das falas às cores.
O filme apresenta um elenco diverso com atuações sólidas que reforçam a mensagem poderosa que a história carrega. No entanto, Zoë Kravitz comete um deslize ao recorrer a estereótipos. Apesar de sua abordagem feminista em muitos aspectos, a diretora tropeça nesse ponto. Por exemplo, há a figura da “loira burra”, que, tecnicamente, não é burra, mas a única pista de sua inteligência é uma cena de cinco segundos em que ela vence um cara no xadrez. Fora isso, a personagem passa o filme chapada e repetindo basicamente as mesmas falas.
A direção de fotografia é digna de aplausos. Junto com Kravitz, a equipe trabalha muito bem com planos abertos que nos deixam saber o quão grande é o lugar, ao mesmo tempo que fecha nos personagens em momentos cruciais, aumentando a tensão e a sensação de claustrofobia, apesar do ambiente espaçoso. O filme se passa quase inteiramente na ilha de Slater King, o que intensifica essa dinâmica
A trilha sonora é bem chamativa, pois brinca com nossos sentidos ao aumentar e diminuir de volume em momento certos, além de inserir sons esquisitos para nos manter em alerta. “Pisque Duas Vezes” não é um filme de jump scare; os sustos são poucos e não são o foco. O terror, aqui, vem de outras fontes, especialmente para as mulheres, que podem achar certos aspectos particularmente assustadores. O filme foi dirigido, escrito e pensado para um público feminino, mas isso não significa que os homens não vão gostar ou que não haverá partes assustadoras para eles também. O verdadeiro terror da história é algo que deveria aterrorizar a todos: alguém com tanto dinheiro que comprou uma ilha e pode fazer o que quiser, sem que ninguém saiba.
Aliás, a construção da trama é maravilhosa, pois tudo parece perfeito demais. A direção de Zöe é precisa e sabe exatamente o que está fazendo, deixando os enquadramentos bem alinhados para dar aquela sensação de perfeição, quando as personagens chegam à ilha. As mulheres usam sempre roupas brancas idênticas, as comidas são incríveis, sempre tem bebidas e drogas recreativas à disposição – um eterno ciclo de prazeres.
Logo detalhes começam a surgir, como Frida sempre acordando com sujeira debaixo das unhas e não saber como aquilo aconteceu, ou Sarah aparecendo com um machucado e não lembrar de nada. A tensão vai crescendo e tudo fica cada vez mais estranho. Você fica na ponta da cadeira se perguntando “O que está realmente acontecendo aqui?”. E quando você descobre… bem… é de embrulhar o estômago.
Zoë Kravitz aborda um tema importantíssimo que tem sido discutido em Hollywood por muitas atrizes e pela crítica feminina: a raiva feminina. Com nem um pouco de sutileza, “Pisque Duas Vezes” retrata como as mulheres são constantemente silenciadas, não apenas por homens, mas pela sociedade como um todo – pois outras mulheres também silenciam e são silenciadas. O direito à retaliação, à raiva, à revolta diante das injustiças é frequentemente arrancado das mãos das mulheres. O filme, em alguns momentos, é catártico nesse sentido. E que sensação saborosa!