Há cerca de duas décadas atrás, Nicole Kidman estrelava um dos filmes que mais lhe renderia elogios ao seu trabalho como atriz: estamos falando de Os Outros (The Others), longa de 2001 dirigido por Alejandro Amenábar, um cineasta pouco lembrado mas ainda assim responsável por interessantes projetos como Mar Adentro (2004), protagonizado por Javier Bardem. Sua baixa frequência no cinema, no entanto, não esconde a elogiável contribuição para o gênero do terror e suspense a partir desta obra, da qual também é roteirista, que tem como base uma consagrada linha de pensamento filosófica.
A história se passa logo após a Segunda Guerra Mundial e segue Grace Stewart (Kidman), uma mãe rígida e devota que vive em uma mansão isolada com seus dois filhos, Anne (Alakina Mann) e Nicholas (James Bentley), à espera do retorno do marido. As crianças sofrem de uma rara doença que as torna extremamente sensíveis à luz, exigindo que a casa permaneça constantemente escura. A vida de Grace e seus filhos é perturbada quando três novos empregados chegam à mansão. Estranhos acontecimentos começam a ocorrer, levando Grace a acreditar que a casa está assombrada por espíritos.
The Others envelheceu muito bem
Muito do charme de Os Outros se deve ao trabalho do diretor de fotografia, Javier Aguirresarobe, que viria a trabalhar novamente com Amenábar em Mar Adentro em 2004, sem contar sua vasta experiências em boas e excelentes produções como é o caso de A Estrada (2009), Blue Jasmine (2013) e Thor: Ragnarok (2017). Aqui, ele se dedica a estabelecer uma atmosfera gótica e sombria, uma prato cheio para fomentar o terror e o mistério. Este projeto deve ter sido um desafio peculiar devido à inclusão, no próprio roteiro, de personagens (no caso das crianças) sensíveis à luz, forçando-o a trabalhar naturalmente com pouca iluminação durante as filmagens. Os ângulos e movimentação de câmeras é mais um ponto positivo, destacando com boa harmonia tanto os personagens quanto a mansão que os acomoda – esses elementos tornam a revisita ao filme, tantos anos depois, uma atual e agradável sessão.
“O inferno são os outros”
A frase presente na peça “Entre Quatro Paredes” do filósofo francês Jean-Paul Sartre é um ótimo ponto de partida para pensarmos no filme de Alejandro Amenábar. Nela, três personagens estão condenados a passar a eternidade juntos em uma sala fechada, sem a presença de um carrasco ou de torturas físicas, mas apenas com a companhia uns dos outros. Isso reflete, dentre outras interpretações possíveis, a ideia de que a nossa vida e identidade estão profundamente afetadas pela percepção e julgamento alheio. No caso de Grace, esse sujeito influenciador é a religião, sempre a moldar seu modo de pensar. E assim como na peça, e adiantando um pouco do final aqui, ela está condenada a passar a eternidade na mansão, rodeada de uma infinidade de paredes, com seus dois filhos.
No entanto, Sartre também afirma que essa a interação com os outros pode nos forçar a enfrentar verdades desconfortáveis sobre nós mesmos, e o julgamento alheio pode ser uma fonte constante de angústia. Sendo assim, mesmo forçadamente (e pagando um preço muito alto), a personagem de Kidman acaba por se desenvolver ao tomar ciência do que realmente aconteceu no passado ao interagir com os criados recém-chegados ao local.
O Sexto Sentido fez escola?
Talvez não seja coincidência que The Others, lançado em 2001, tenha um plot twist final semelhante ao de O Sexto Sentido em alguns aspectos. A obra de M. Night Shyamalan, lançada em 1999, estabeleceu um patamar elevado para o terror e suspense com alto grau de surpresa em relação a protagonistas que não estão mais entre o mundo dos vivos, mas ainda assim vale elogiar o roteiro de Amenábar, que amarra bem suas questões e deixa pouca coisa para ser subentendida, andando bem na tênue linha do que é ou não ser didático demais.
Do elenco, é de fato em Nicole Kidman que reside a maior força, sendo seguro afirmar que a atriz seguraria as pontas mesmo se os demais nomes na produção tivessem desempenho ruim ou mediano. Porém, outras presenças como a de Fionnula Flanagan como a Sra. Mills e Christopher Eccleston como Charles (marido de Grace) enriquecem o resultado final. Ah, e as crianças estão muito bem em seus papéis. Curiosamente, os atores mirins da época não voltaram a se destacar no cinema após essa contribuição.
Como um bom vinho, Os Outros (The Others) continua muito saboroso após anos de maturação antes do seu consumo, tanto em relação ao contexto em que está inserido, juntamente com suas bases cinematográficas e filosóficas, quanto para o público que o revisita nesses anos passados, depois de muitos aprendizados, daqueles inerentes com o simples ato de viver.