O Poço (El hoyo, 2019), dirigido por Galder Gaztelu-Urrutia, causou grande impacto na crítica e no público ao ser lançado na Netflix devido à sua abordagem intensa e alegórica sobre desigualdade social, consumo e moralidade. O filme gerou discussões amplas nas redes sociais, sendo elogiado por sua narrativa provocativa e metáforas contundentes, além de chocar os espectadores com suas cenas viscerais e atmosferas claustrofóbicas. Tornou-se rapidamente um sucesso internacional, consolidando-se como um dos títulos mais marcantes do gênero de ficção distópica na plataforma. Neste artigo, iremos explorar o final explicado e outras questões da produção.
Em O Poço (El Hoyo), os prisioneiros de uma misteriosa prisão vertical são distribuídos por centenas de níveis, com uma plataforma de comida que desce diariamente, abastecendo os andares superiores primeiro e deixando os inferiores à míngua. Goreng (Ivan Massagué), um homem recém-chegado, tenta entender a lógica cruel do sistema e encontrar uma forma de mudar a dinâmica de sobrevivência.
Qual a razão do protagonista de O Poço levar o livro Dom Quixote para o seu confinamento?
Levar Dom Quixote para o confinamento em O Poço tem um forte simbolismo. O clássico de Miguel de Cervantes é a história de um homem idealista que luta contra injustiças imaginárias, acreditando poder mudar o mundo, mesmo diante de uma realidade dura e hostil. Essa escolha reflete a personalidade e a jornada de Goreng, que, assim como Quixote, enfrenta um sistema opressor armado apenas com seus ideais e a esperança de promover mudanças.
O livro também representa a força da cultura e do conhecimento em meio à brutalidade, sugerindo que, mesmo em situações extremas, a humanidade ainda pode buscar significado e propósito além da sobrevivência. No final, a obra reforça os dilemas entre idealismo e pragmatismo, um tema central no filme.
A missão de Goreng e Baharat – existe revolução espontânea?
Fazendo as vezes de uma figura messiânico, Goreng passa então a conviver com diferentes colegas de nível, onde cada um traz diferentes questionamentos sobre a condição vivida ali e o como essas situações funcionam numa analogia ao mundo real, o do lado de fora. Quando Goreng encontra seu último companheiro, Barahat, eles iniciam uma cruzada de revolução para prover a ordem ao local, visando a devida distribuição das refeições e, no limite, mandar uma mensagem aos superiores para denunciar as injustiças que ali ocorrem.
Mas é inevitável que o espectador passe a questionar as ações da dupla, pois na tentativa de estabelecer o que julgam ser o certo, eles promovem diversas barbaridades, dando a entender que, na visão dos roteiristas, não é possível que uma revolução aconteça sem algum tipo de violência.
333 níveis: entendendo os números de O Poço
Em dado momento, descobrimos que há 333 níveis na edificação. Desse modo, levando em conta que há 2 participantes em cada nível, chegamos ao número 666, uma alusão de que aquele lugar é o próprio inferno. Mas teríamos outros significados para o 333?
De acordo com a numerologia, 333 significa orações respondidas, uma mensagem de um anjo da guarda ou de um mestre ascenso. Essa vertente está de acordo com a luta de Goreng e Baharat para enviar um recado aos administradores do sistema.
Na Cabala e no Thelema (de Aleister Crowley), o número 333 é associado a um demônio chamado Choronzon e seu nome apareceu pela primeira vez nos escritos mágicos enoquianos de John Dee durante o século XVI. Conhecido também como “o morador do Abismo”, acredita-se que Choronzon seja o último grande obstáculo entre um adepto e a iluminação. Se ele for recebido com a preparação adequada, então sua função é destruir o ego, o que permite ao adepto mover-se além do abismo da cosmologia oculta. Este processo é muito semelhante ao que ocorre com Goreng no filme.
Outra visão de inferno para O Poço é observar que qualquer edifício tem seus andares numerados do menor para o maior, de baixo para cima, mas no filme isso é exatamente o inverso, com o nível 1 no topo, o mesmo sistema de numeração dos Círculos do Inferno no Inferno de Dante (primeira parte da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri). Os habitantes do Terceiro Círculo, reservados para glutões, são punidos por sua ganância e apetite excessivos acima na Terra e, como os habitantes da prisão nos andares mais altos, acumulam o que desejam às custas dos outros.
Final explicado de O Poço: o que acontece com a criança e por que Goreng não subiu com ela?
A menina em O Poço é um elemento carregado de simbolismo e mistério. Ela é apresentada no final como a “mensagem” que Goreng tenta enviar ao sistema. Supostamente, ela seria filha de Miharu (Alexandra Masangkay), uma prisioneira que descia pelos níveis à procura de sua filha. No entanto, até sua existência é questionada ao longo do filme, o que a transforma em uma figura ambígua, quase metafórica.
Sendo assim, se ao longo da película temos tantas indicações de que a edificação seja o próprio inferno, a existência da criança acaba simbolizando a ideia de que a esperança pode persistir mesmo nas condições mais adversas, levando a ideia da possibilidade de regeneração e a necessidade de mudança no sistema.
A relação entre Goreng e a menina reflete o seu sacrifício final, que deixando de lado sua própria sobrevivência para garantir a ascensão da criança. Esse ato ecoa temas religiosos de redenção, com Goreng assumindo o papel de mártir para transmitir a mensagem. No cristianismo, por exemplo, o protagonista seria Jesus Cristo, ao passo que Mali representa o Espírito Santo.
Porém, mesmo que aos olhos do espectador a criança tenha pegado o elevador para chegar ao topo, há quem defenda que ela nem exista de verdade, servindo apenas como uma construção simbólica dos temas abordados. Essa interpretação é reforçada quando temos o personagem principal interagindo com tantos outros que já morreram ao longo da trama.
No final, O Poço é uma alegoria para muitas coisas e não se preocupa em oferecer uma resposta clara a quem assiste, por mais que não se contenha em apresentar suas referências na grande maioria das vezes.