Quando criança, é normal brincarmos com pessoas que existem apenas na nossa cabeça, os famosos amigos imaginários. Agora, imagine o horror que não seria se esse amigo imaginário te mandasse fazer coisas ruins, você perdesse o controle do próprio corpo e, ao voltar à própria consciência, descobrisse que assassinou pessoas? Bem, essa é a premissa de Maligno, filme de James Wan, que é famosinho pelos seus filmes de terror, e aqui ele dá um passinho para além do amigo imaginário, envolvendo uma mistura de “ciência” com sobrenatural – uma fórmula interessante, se bem utilizada, o que, no caso, é.
Logo no início de Maligno temos o pleno uso da cor vermelha, seja na luz ambiente ou no sangue das vítimas do que estaria escondido detrás da porta do laboratório. Rapidamente somos apresentados a um vulto, ao qual a dra Weaver chama de Gabriel, uma escolha que é, provavelmente, uma alusão direta ao arcanjo Gabriel – um breve toque de ironia. Eles estão em um hospital de pesquisa em Seattle, em 1999, então, há uma impressão de entidade sobrenatural ali que estaria sendo estudada, mas que saiu do controle e, de acordo com a dra, é necessário “se livrar do câncer”. A luz vermelha costuma ser muito utilizada em filmes de terror, pois tem uma habilidade de trazer tensão à cena, lembrando-nos de violência e sangue – e ela não só é usada nesse comecinho, como em certas cenas que dão um close específico na cara de Madison com a luz vermelha. Talvez fosse uma dica do diretor para a resposta ao enigma do começo, até porque Gabriel é conhecido como diabo pela própria mãe. E, reza a lenda, vermelho é a cor do capiroto.
Após a cena de Maligno em que Maddy é agredida pelo marido, este é morto por um vulto misterioso que, apesar de Madison chegar a vê-lo, não consegue fazer algo sobre. Quando ainda não sabemos que é Gabriel no controle que faz com que ela fique paralisada, o que parece é que a protagonista tem paralisia do sono.
“A paralisia do sono é uma impossibilidade temporária de se mexer ou falar na transição entre o sono e a vigília. Trata-se de um estado de desconexão temporária ou descontinuidade de funções motoras, perceptivas, emocionais ou cognitivas. Com isso, quem está quase dormindo ou acordando, de repente, não consegue realizar movimentos voluntários, falar ou gritar. Mas, sente um aperto no peito e pode ter alucinações.” (Fonte: Instituto do sono)
Usando essa premissa, James Wan começa a história de Maligno nos confundindo, sem sabermos se o que Madison vê é real ou uma alucinação, até ele nos entregar de bandeja que as supostas alucinações da protagonista na verdade são reais. Também não demora para percebermos que o tal vulto na verdade é Madison, quer dizer, ao menos o corpo dela sendo controlado. O modo como isso acontece é visualmente desconfortável, e, talvez para esconder os possíveis problemas, Gabriel utiliza um sobretudo que basicamente o une às sombras das cenas, porém, rapidamente dá para enxergarmos que ali é o corpo de Madison, a franjinha característica da personagem balançando e entregando o mistério. Mistério esse que só será completamente desvendado quando Sydney, a irmã mais nova da protagonista, conseguir todas as provas e os materiais possíveis que comprovem a existência de Gabriel – que por acaso estavam dando sopa, largados no hospital de pesquisa e que ninguém da dupla de detetives pensou em ir atrás, mesmo após descobrirem que os assassinatos estavam interligados por esse local. E nem os pesquisadores se incomodaram de tirar dali, pelo jeito.
Gabriel é o gêmeo de Madison que nasceu atrofiado e grudado às costas da irmã, em uma mistura de parasitismo (fetu in fetu) com “siameses”, dividindo o corpo e também o cérebro. Adiciona-se ai uma camada de sobrenatural, pois ambos possuem uma força sobre-humana, entre outras habilidades que um humano regular não tem, e o fato de só um deles poder ficar acordado por vez não condiz muito com o real, mas cabe direitinho na narrativa construída por James Wan.
Ainda no hospital, após um descontrole de Gabriel que matou muitas pessoas, a dra Weaver desiste de ajudá-los e decide remover o gêmeo de Madison, retirando o corpo físico que era só dele, mas, por dividirem um cérebro, a dra só o enfia no crânio da irmã. Durante alguns anos, a protagonista só escuta a voz dele internamente, mas a presença da sua família adotiva e sua irmãzinha a fazem esquecer do irmão. Seu nome de batismo é Emily May e, não sei se proposital ou não, mas um dos significados atribuídos ao nome Emily é “rival”.
Apesar do filme ter iniciado em um tom mais sombrio, com uma atmosfera tensa e cenas gore, logo ele descamba para um suspense com direito a cenas de pura ação, ao ponto em que o plot twist – que já descobrimos ainda no primeiro ato – se perde. James Wan escancara, literalmente, tudo o que há para se saber sobre Gabriel em uma cena que mistura o absurdo que é ver Madison abrindo a própria cabeça para o irmão sair com tiroteio, em momentos frenéticos que não condizem com o ritmo do filme, mas que passa a ser dali pra frente. Ele vai atrás da mãe biológica deles, que os abandonou no hospital de pesquisa… Mais ou menos, porque ela passou a trabalhar lá como zeladora, então meio que estava os vendo de longe por um tempo. Gabriel prossegue em seu plano de vingança, que começou com os médicos responsáveis por “tirá-lo” da irmã, para terminar com a mãe que os abandonou.
Aliás, fiquei me perguntando se em Maligno Gabriel nasceu realmente sendo o diabo ou se ele optou por sê-lo após crescer sabendo que foi abandonado naquela instalação para ser cobaia, e provavelmente tratado como uma espécie de abominação. Será se a coisa piorou ao ser arrancado da irmã e esquecido por ela, preso dentro de si por uns 30 anos, sei lá quantos anos eles têm, o que fez com que fosse completamente imaturo, talvez? Questões filosóficas que só James Wan pode responder, já que ele foi quem fez a mistureba de sobrenatural com pseudociência. Voltando.
Um pouco antes desse bafafá todo, Madison foi presa justamente porque Gabriel tinha escondido a mãe biológica deles por dias no sótão da casa dela e, coincidentemente, quando os policiais estão lá, o teto desaba e a pobre da mulher com ele. Ela vai parar no hospital, em coma, para que, após a cena da delegacia, acordasse DO NADA e pudesse fazer um discurso bonito sobre amor e maternidade, pedindo pelo perdão de Gabriel por não tê-lo amado e ficado com eles. Sydney entra nessa hora, a melhor detetive da cidade, tentando acordar Madison e apanhando do gêmeo da irmã. Por mais que Syd implore para que a protagonista acorde, ela fica repetindo mentalmente que não tem forças até o preciso instante em que a irmãzinha resolve gritar que os bebês que ela tanto quis, que Madison desejou tanto, o irmão havia absorvido eles para sobreviver – o que, se pensar bem, não faz sentido, já que ele já se alimentava de Madison E estava adormecido, por assim dizer. Ah, irmãs mais novas e sua habilidade de saber puxar as cordas.
Com essa frase, Sydney garante que Madison acorde do estupor em que o irmã a havia enfiado e toma controle do próprio corpo e mente, trancando, literalmente, Gabriel em uma prisão mental. Na minha cabeça, eu vi o Olaf dizendo que o poder do amor é a coisa mais forte do mundo e a Elsa descobrindo como resolver todos os problemas do mundo no mesmo instante. Madison faz todo um discurso bonitinho para a irmã, dizendo o quanto a ama e tudo o mais, SENDO QUE quando Sydney estava em perigo, a protagonista tava toda “ai, não consigo”, mas foi falar no possível assassinato de seus bebês por Gabriel que o poder da maternidade subiu pelo corpo de Mady e ela instantaneamente se tornou um super sayajin, aprendendo no mesmo minuto como controlar o irmão e a própria mente quando não tentou por um minuto sequer o filme inteiro. Vacilo, James Wan.
Apesar de tudo, a premissa de Maligno ainda é interessante, com aquela execução tosca que só filme de terror consegue ter, entretanto, com um final Disney. É só dar um “let it go” e assistir com isso na cabeça que dá bom.