Mad Men, série idealizada por Matthew Weiner, foi uma importante referência para BoJack Horseman, criada por Raphael Bob-Waksberg. Tanto que é comum lembrar de uma quando se está assistindo a outra e este não é o primeiro texto que compara as duas séries. Em 2015, quando o programa estrelado por Jon Hamm chegava ao fim, houve quem apostasse em BoJack (Will Arnett) como substituto perfeito para os fãs de Don Draper. Bem, apesar da primeira ter como cenário os anos 1960, era de ouro da publicidade estadunidense, e a segunda ser uma sátira da Hollywood contemporânea que mistura animais antropomorfizados com gente, podemos perceber um nítido paralelo entre seus protagonistas.
Don Draper e BoJack Horseman
Os dois protagonistas estão envolvidos em um trabalho que necessita recriar a realidade. Por esse motivo, não seria exagero dizer que ambos vivem para contar mentiras, que os colocam em um lugar de prestígio, mas também os afeta profundamente a longo prazo. Don precisa tentar convencer que a felicidade pode ser adquirida junto a um produto, mas não o suficiente, pois o consumidor deve estar sempre disposto a uma próxima compra. Já BoJack é uma estrela do show business, e ele não só atua em histórias que também passam uma ideia de felicidade, como deve aparentar ser sempre digno de respeito do público e de quem movimenta a indústria cultural, por trás das cortinas.
Um drama e uma comédia existencialista, em que somos levados ao vazio do Depois. Seus personagens principais se tornaram nomes importantes, são bem-sucedidos e têm direito a vários luxos. Porém, após um final feliz ou uma grande conquista, BoJack e Don percebem que continuam os mesmos: os erros cometidos, a culpa, a auto-aversão e a mesma indisposição para encarar tudo isso. Confinados nesses sentimentos, só lhes resta uma imensa solidão, ou por estarem tão cheios de si que desprezam quem está ao redor, ou porque se convencem de que não merecem perdão, incapazes de superar o passado.
Sobre esse passado, ao longo das temporadas vamos entendendo as repercussões do que é ser o filho de uma prostituta criado (e humilhado) pela esposa do pai, ou então ter uma mãe que te culpa por tudo, do casamento frustrado até o abandono do marido. A partir daí, começam os ciclos autodestrutivos de cada um: Don, por acidente, mata o companheiro de guerra e rouba sua identidade. BoJack, sem qualquer oposição, permite que seu melhor amigo e produtor seja demitido por ser homossexual.
Don nega a reaproximação de seu meio-irmão, o que leva o rapaz ao suicídio. BoJack permite que a atriz com quem trabalhou morra de overdose, e sua única preocupação é não levar a culpa. Ao trair a esposa, Don se vê flagrado pela própria filha. Já BoJack foi flagrado pela mulher (ou cervo) que amou no passado, quase beijando a filha dela. E mesmo com todos esses tropeços, por mais graves que sejam, eles devem seguir vivendo. Afinal, a vida não termina como nos filmes, com grandes acontecimentos dramáticos. Ela continua e sempre haverá o dia seguinte a uma grande conquista ou grande perda.
No oitavo episódio da quarta temporada de Mad Men, Draper começa a escrever um diário e acompanhamos seu pensamento, um monólogo interno, enquanto ele tenta se sentir bem consigo, parando com os vícios e praticando natação. Da mesma forma, Horseman começa a praticar cooper no final da segunda temporada, tentando fazer o esforço diário que é ser feliz. O monólogo de BoJack aparece no sexto capítulo da quinta temporada que, como descrito na sinopse feita pela Netflix, consiste no protagonista fazendo um discurso no funeral de sua mãe. Ainda que a ação seja reduzida, o texto tem a força de uma fantástica e melancólica peça de teatro: BoJack remói seu relacionamento com a defunta e, sem saber direito o que dizer ou sentir no seu velório, questiona o quanto as pessoas podem ser problemáticas, a vida aleatória e, mais uma vez, o vazio do Depois.
Porém, apesar de tentarem encontrar saídas mais positivas, a válvula de escape que os acompanha desde cedo e quase até o fim é o álcool que, óbvio, impele-os para outros deslizes. Ao contrário de sua versão equina, Don Draper não se interna em uma clínica de reabilitação para tratar a dependência, mas a curiosidade é que o ator que o interpretou, Jon Hamm, fez uso do tratamento.
Além da droga, houveram pessoas – mulheres, muito fortes, por sinal – que cresceram junto com esses personagens e os ajudaram a enfrentar seus fantasmas, incluindo o alcoolismo. E era justamente aqui que eu queria chegar.
Anna e Peggy
Anna Draper (Melinda Page Hamilton) é a mulher de Don, o autêntico. Aquele que foi morto na Guerra do Vietnã por Dick Whitman, nome verdadeiro do personagem representado por Hamm. Whitman causa a explosão no acampamento e, consequentemente, a morte de um companheiro. Depois não corrige quando o pessoal do exército estadunidense confunde ele com o morto. Então, assume sua nova identidade, abandonando o passado e a família que, na verdade, foi o principal motivo do seu alistamento.
Quando Anna lhe aparece pela primeira vez, querendo saber porque um homem que não é seu marido vive como se assim o fosse, temos a impressão de que ela pode abalar o recomeço de Don (Dick). Mas ela, na verdade, torna-se a única a saber sobre a mentira que é Don Draper e ajuda a mantê-la. Em troca, Dick fica responsável por cuidar da então Sra. Draper, e o faz com afeto, como faria um irmão. Assim, Anna é uma das únicas mulheres que não se envolvem romanticamente com ele e é quem Don procura quando quer fugir dos problemas mais graves.
Na quarta temporada, Don descobre que sua amiga está com um câncer incurável. Ela morre no sétimo episódio, The suitcase, considerado por muitos (e por mim) o melhor episódio da série. Nele, Don evita a ligação que confirmaria a morte de Anna, afogando-se no álcool e no trabalho, obrigando sua subordinada, Peggy Olson (Elisabeth Moss), a ficar com ele até depois do expediente, no dia do aniversário dela.
Os dois permanecem a noite inteira na agência, desentendem-se, fazem as pazes e Don adormece com a cabeça no colo de Peggy, de modo fraternal. Perto do amanhecer, ele vê o fantasma de Anna indo embora e finalmente cria coragem para receber a notícia. Com a confirmação de seu falecimento, ele desaba no choro, mesmo quando percebe que Peggy o observa, algo incomum para alguém que sempre esconde as próprias emoções. O capítulo termina de forma magistral, e entendemos que Anna passou o bastão para a personagem de Moss.
A verdade é que Peggy não precisava permanecer trabalhando até mais tarde, inclusive, Don diz isso. Mas ela obedece, sempre disposta a agradá-lo, já que foi ele quem lhe deu a oportunidade de trabalhar como publicitária, bem como ajudou a subordinada a manter sua carreira depois que ela engravidou. Peggy não apenas acha que lhe deve tudo isso, como também deseja seguir os mesmos passos.
Assim como ele, coloca a profissão no centro de sua existência, o que era difícil para a maior parte das mulheres de sua época. Por priorizar seu lado profissional, os outros aspectos de sua vida ficam mais instáveis. Entretanto, sempre há mais trabalho para fugir deles e, assim, a cobra morde o próprio rabo. No entanto, Olson precisa dar ainda mais duro que Draper e, algumas vezes, enfrenta ele para que não fique sempre na sombra do chefe.
Peggy decide dar um fim definitivo a essa submissão em A Outra (episódio 11, temporada 5), aceitando uma proposta de emprego em outro lugar, onde não seria braço direito de ninguém. Embora Don não estivesse acostumado com isso, despede-se emocionado, tentando fazer o aperto de mão entre os dois durar o máximo possível, antes que ela seguisse seu caminho.
Peggy inicia os anos 1960 como a nova secretária de Don, que é desprezada ao tentar um caso amoroso com ele. Quando a década termina, também está assumindo um novo emprego, mas agora como uma publicitária promissora, ao lado do seu antigo chefe.
Princess Carolyn e Diane
Princess Carolyn (Amy Sedaris) é uma mulher/gata e, das que cito aqui, foi a única que chegou a ter um relacionamento amoroso com o galã da série que faz parte. Carolyn é a agente de BoJack e serve também como o suporte emocional dele. Ou seja, quando está carente ou bêbado, ele a procura. Até certo ponto da série, a gata persa parece se contentar com as migalhas que seu cliente dá, sempre à espera de que, um dia, conseguirá “consertá-lo”.
De modo semelhante à Peggy, no seriado criado por Weiner, Princess Carolyn é uma workaholic e, por deixar as outras partes da vida em segundo plano, só lhe resta envolver-se com BoJack, que vira seu amante e cliente. Assim, os dois ganham: ele tem um porto seguro para quando está mal, enquanto ela alimenta a esperança de que poderá realizar o sonho de ser mãe.
A chegada de Diane (Alison Brie) desestabiliza essa falsa história de amor, tendo em vista o interesse romântico que BoJack demostra por ela. A relação entre Carolyn e Horseman começa a desmoronar, até que um forte rompimento ocorre no episódio 9 da terceira temporada, quando ele, em um lapso de bom-senso, pede para que ela se afaste. Mas é óbvio que a procura posteriormente em um momento de crise, quando o seu Plano A – Diane – não está disponível.
Princess Carolyn se afasta do trabalho e vive outros amores. Um deles, inclusive, é um personagem ótimo – Vincent Adultman – que consiste em três crianças cobertas por um sobretudo e, aparentemente, só Bojack percebe que não é um homem de verdade. Adultman, segundo Bob-Waksberg, pode ser uma metáfora para a vida adulta, na qual devemos aparentar ser maduros, mesmo não nos sentimos assim.
Passado um tempo, a gata persa retorna a Hollywood, para tentar o sonho de ser uma grande produtora, e até volta a se envolver com BoJack profissionalmente, mais fortalecida desta vez. Essa personagem protagoniza um dos melhores episódios da série, Ruthie (episódio 9, temporada 4), em que assistimos a tataraneta de Carolyn falando sobre ela em uma apresentação da escola, como se fosse alguém importante. Mas nos é revelado que esse é apenas um futuro que Princess Carolyn inventa, após viver várias frustrações seguidas. Um fim contundente, mas muito real. E depois de tantos altos-e-baixos, é muito satisfatório ver o final de Carolyn é feliz.
Diane é a ghostwriter contratada para escrever a biografia de BoJack, já que ele procrastinou muito para fazê-lo. Depois do estranhamento inicial, devido ao bloqueio do ator em aceitar alguém novo em sua vida, Horseman começa a se apaixonar por Diane. Talvez porque ela deseja conhecê-lo de verdade e parece compreendê-lo, pois é tão cheia de minhoca na cabeça quanto ele.
Ela termina o livro de BoJack, que vira um sucesso, mas seu conteúdo é mais sincero e mais duro do que ele gostaria que fosse. Por isso, na sua busca (e fracasso) incessante por ser alguém melhor, ele faz da escritora alguém capaz de nutrir essa esperança, de validar suas ações e também de estar ao seu lado, sempre que precisar.
O laço entre eles também ganha um aspecto fraternal (assim como o de Anna e Peggy com Don) e, ainda que nunca se relacionem romanticamente, um procuram o apoio do outro em momentos difíceis. Diane acompanha BoJack quando ele decide se internar na clínica de reabilitação. Antes disso, ela havia passado uma temporada na casa dele, por conta dos problemas no seu casamento com Mr. Peanutbutter (Paul F. Tompkins).
Quando o enredo explora a relação entre Diane e esse homem/labrador, a série ganha outros grandes episódios. A diferença de temperamento entre os dois faz a convivência ficar insustentável em certo ponto, então Diane decide terminar. Ela cresceu, amadureceu, e Peanutbutter, nunca disposto a se deter demais nas coisas ou no lado ruim delas, parece o mesmo, positivo demais para Diane. Mesmo tão decidida com o fim do relacionamento, ela enfrenta o susto e a dificuldade de vê-lo com outra (que é, como sempre, uma jovem bem mais nova que ele).
Por causa disso, em Acabou-se o que Era Doce, segundo episódio da quinta temporada, vai atrás de suas origens no Vietnã (apesar de sua dubladora ser caucasiana), à procura de uma epifania digna de comédia romântica. Mas, sem sucesso, dá de cara apenas com o vazio do Depois.
Tudo pode acabar. Até os relacionamentos mais importantes.
Voltando a BoJack e Don Draper, os erros que cometem os deixam presos ao passado e consomem o que há de bom no presente, ainda que façam um esforço autêntico para melhorar. Na animação isso fica mais nítido, pois as principais pessoas para BoJack escolhem prosseguir sem ele que, por sua vez, prefere manter-se em um ambiente controlado, longe da liberdade que lhe permite cometer erros.
Em Mad Men, o final aberto é mais irônico, pois sugere que Don usa a libertação e a paz interior como inspiração para uma propaganda da Coca-cola, insinuando o retorno para um mundo em que não era verdadeiramente feliz. Um pouco antes disso, Draper telefona para as mulheres mais importantes de sua vida, em tom de despedida. Peggy é a última e aproveita essa oportunidade para mandar seu amigo voltar para casa, ordem que, provavelmente, ele obedeceu.
Também há dois telefonemas impactantes que acontecem entre Diane e BoJack. O segundo foi em sonho, enquanto ele pensa que vive seus últimos instantes e, por isso, deseja ouvir a voz doce e carinhosa da amiga. Mas o primeiro, ao contrário, foi real, momentos antes da sua quase-morte. Essa primeira ligação, denota a importância que Diane tem na vida de BoJack, mas também pode ter selado o fim da amizade, já que ela não suportou a culpa de não estar lá para salvá-lo.
Se Don estava em apuros, esse sentimento foi expresso de uma forma mais sutil, como no resto da série. Nesse sentido, BoJack Horseman é mais explícita, pois usa a possibilidade que a animação dá para o fantástico, ao fazer Horseman encarar, de fato, seu inconsciente.
Enfim, tanto Diane como Princess Carolyn, no último diálogo que têm com BoJack, falam da relação com ele como algo pretérito, e não importa o quanto aparente merecer perdão, já não é mais sobre ele. Para que possam seguir em frente, preferem deixá-lo para trás. E na conversa que encerra tudo, em que ele e Diane estão lado a lado, mirando o céu como no fim da primeira temporada, a amiga lhe diz:
“Há pessoas que nos ajudaram a ser quem somos agora, e somos gratas a elas, o que não significa que devem estar na nossa vida para sempre.”