Os deuses mitológicos sempre foram muito mais do que apenas heranças da nossa cultura. Através de suas narrativas e feitos, somos compelidos a refletir de onde viemos e aprender mais sobre quem somos. Esse paralelo com as divindades sempre foi uma marca da DC Comics, apresentando diversos de seus super-heróis como verdadeiros deuses entre os homens. Em Liga da Justiça Snyder Cut, mais do que nunca, Zack Snyder abraça esse conceito e o resultado chega em forma do mais inspirado trabalho do diretor no comando de um filme da DC.
Antes de continuar, quero ressaltar que este texto não se prenderá a ficar comparando a Liga da Justiça de Joss Whedon com o novo corte de Snyder para o serviço HBO Max. Se é moda agora brincar com multiversos, estou considerando que o filme de 2017 faz parte de um universo diferente do nosso e que o novo Liga da Justiça é o legítimo sucessor de Batman vs Superman: A Origem da Justiça (2016).
Isso é até meio óbvio, visto que o Snyder Cut resgata o tom mais austero e pesado de O Homem de Aço (2013) e BvS. No pacote, volta com tudo a paleta de cores dessaturadas e as longas (e por vezes excessivas) cenas em slow motion – marcas constantes do diretor e que, se pararmos para pensar um pouco, mostram-se alinhadas com a ideia geral de seu universo repleto de tristeza e contemplação que é mais uma vez aplicada aqui.
Liga da Justiça Snyder Cut desde o início é ambicioso na busca por oferecer ao espectador uma experiência de contornos épicos. Se não estamos na Grécia Antiga, ainda assim podemos facilmente enxergar nos heróis do filme sucessores espirituais de figuras mitológicas como Apolo, Ártemis, Poseidon, Hefesto e Hermes. Para aceitar o Snyder Cut, não tem jeito: você precisa abraçar essa ideia (e ter algum fascínio pelos deuses da mitologia greco-romana).
Onipresente com sua câmera, Snyder faz questão de filmar seus deuses por diversas vezes de baixo para cima, sempre acentuando a grandeza de tais divindades, que são devotamente adoradas pelas lentes do diretor. A nova trilha sonora – assinada desta vez de forma acertadíssima por Junkie XL – também colabora para isso, com trechos que rimam de forma eloquente às cenas, incluindo cânticos evocativos que não perdem de vista um certo ar de melancolia.
A aura pesada que acompanha o longa está alinhada com sua trama. Isso por que cada um dos “deuses da modernidade” retratados no corte de Snyder passa por uma jornada de perda que precisa ser de alguma forma superada. Se WandaVision era uma série sobre o luto de Wanda, em Liga da Justiça o luto é de todos – homens (pela morte do Superman) e deuses (pela perda de pessoas amadas). No caso dos heroicos (e falhos) deuses, as figuras de dotes inimagináveis vivem um arco onde são expostas em suas fragilidades com a dor do luto como uma ferida ainda aberta.
Confirmando o que Snyder repetiu diversas vezes em entrevistas, aqui o Ciborgue (Ray Fisher) de fato surge com enorme importância no enredo. Mesmo sem um filme anterior que o introduzisse no Snyderverso, sua história é desenvolvida de forma a permitir que o personagem ganhe mais profundidade e relevância. É possível se conectar com mais facilidade a dor de suas perdas. Não muito atrás está o Flash, que, mesmo também sem ter ainda um filme solo, não é prejudicado no corte de Snyder. Por sinal – e esse será meu único paralelo com o longa de 2017 –, Ezra Miller no novo corte se tornou uma figura muito mais interessante com seu irreverente Hermes da era moderna, trazendo humor sem prejudicar o clima pesado proposto no filme.
Voltando-se para os antagonistas, temos como destaque o Lobo da Estepe (Ciarán Hinds). Mesmo sendo uma figura gerada inteiramente no digital – o que, como bem sabemos, pode ser um grande risco –, sua presença consegue o feito de ser tão convincente quanto ameaçadora, fazendo com que o sacrifício dos integrantes do time formado por Bruce Wayne (Ben Affleck) ganhe muito mais peso.
Sem se perder ao longo de suas quatro horas de rodagem, Liga da Justiça consegue manter uma coerência narrativa do começo ao fim. A obra ainda imprime um senso de urgência capaz de engajar com eficiência os espectadores que se permitem embarcar em sua proposta. Dividido em 7 atos, é legítimo questionar o tempo de tela – de fato, temos um excesso de gordura que poderia ser facilmente retirada sem prejudicar o resultado final –, mas a sensação é que Zack Snyder não parecia nem um pouco disposto a perder em uma lata nenhuma das cenas que terminou no seu derradeiro corte.
Outro preciosismo do diretor está no formato de tela 4:3. Idealizado para exibição em iMAX – enquadrando com mais imponência os protagonistas –, ele causa algum estranhamento na TV (nada que prejudique a experiência). Mas faz sentido do ponto de vista autoral, pois preserva intacta a visão criativa de seu comandante.
Sim, Snyder conseguiu o que parecia impossível. O emblemático diretor, que deixou sua obra inacabada alguns anos atrás e foi viver um luto particular pela morte da filha, prova que definitivamente sua visão merecia ganhar luz. Em um plot twist sem precedentes na história do cinema – com os executivos da Warner Bros. se curvando ao lançamento de seu filme –, a Caixa de Pandora (ou seria uma das Caixas Maternas?) foi aberta e, para a surpresa de muitos incrédulos, de dentro saíram maravilhas. Se hoje não existe um só homem que cultue as divindades do Olimpo, ao contrário, o mito do Snyder Cut ecoará ainda por muito tempo na indústria do entretenimento.