O texto a seguir contém SPOILERS da temporada final de Attack on Titan
É comum em obras Shounen que o protagonista seja moldado e guiado por um grande objetivo ou sonho, tendo sua força de vontade constantemente testada pelos mais diversos desafios. Naruto quer ser Hokage, Luffy quer ser o Rei dos Piratas, Goku precisa de uma desculpa para não cuidar dos filhos e lutar contra seres poderosos. Clichês narrativos que não costumam falhar, tendo em vista a popularidade de animes desse gênero. Porém, ainda que dentro dessa bolha, Attack on Titan nunca esteve confortável em manter Eren Jaeger tão “estático”. A comoção ao ver o personagem principal da trama tornar-se um genocida é compreensível, mas sempre esteve presente no cerne da história.
As sementes da transformação de Eren já haviam sido plantadas desde a primeira temporada, disfarçadas pelo seu discurso utópico de matar todos os Titãs do mundo. Claro que as diversas camadas de Attack on Titan ainda não haviam sido expostas e, a princípio, o personagem proferia tal ambição como um mantra para se manter são diante dos horrores que presenciou desde que Reiner e Berthold destruíram a muralha e sua mãe foi devorada. Com o passar das temporadas e um entendimento maior do cenário em que está inserido, o objetivo constantemente inflexível acabou passando por uma transformação. Ao compreender que, aos olhos do mundo ele sempre será o inimigo, Eren decide abraçar de vez essa imagem. Aqui não existe espaço para conceitos como herói e vilão. As falhas da humanidade é que moldam os passos dos personagens.
O criador da obra, Hajime Isayama, é cirúrgico nessa manipulação da visão do espectador. Por exemplo, ao optar por mostrar a relação entre Marley e os eldianos nos primeiros episódios, ele estabelece um background de preconceito racial e social. O discurso de ódio disseminado pelos marleyanos contra os “diabos eldianos” é usado como justificativa para as mais terríveis atrocidades, em especial no campo de batalha. Até onde é certo que os filhos paguem pelos erros dos pais? Em especial depois de tantas gerações. Nesse ponto, é impossível não odiar Marley. Contudo, em Declaração de Guerra (quinto episódio da temporada), o foco passa a ser as consequências do surgimento de Eren na forma do Titã de Ataque. Em paralelo ao discurso inflamado feito por Willy Tybur, ironicamente declarando guerra contra Paradis. Em um viés deturpado de nacionalismo, tanto Eren quanto Tybur estão lutando pelo seu povo. O sacrifício físico e moral parece ser um preço justo a ser pago.
Se retornarmos ao primeiro episódio do anime, com o fatídico ataque dos Titãs Blindado e Colossal, é possível reconhecer o caminho que Eren seguiu até matar inúmeras pessoas em sua aparição surpresa na cidade. Inclusive, é um paralelo de situações bastante interessante. Isayama, novamente em sua brilhante manipulação de perspectiva, mostra a destruição psicológica de Reiner após suas ações em Paradis. A conversa entre os dois personagens antes da marcante cena é perfeita para contrapor esses pensamentos. Quando a terceira temporada inseriu os elementos políticos na trama, os protagonistas passaram a enfrentar situações morais que os despedaçaram pouco a pouco. Acompanhamos então como Eren, Mikasa, Armin etc. lidaram com tudo isso. Agora, entendemos o lado de Reiner. Ainda que tardiamente. Em uma luta por sobrevivência, alguém precisa tomar as decisões questionáveis.
Contudo, é interessante notar o quanto as atitudes de Eren não são totalmente aceitas por seus companheiros. Mikasa o confronta durante a luta contra o Titã Martelo de Guerra e os demais membros da equipe não digeriram a operação muito bem. De fato, genocídio não é um argumento fácil de ser defendido. Vale destacar o lamento de Armin logo após dizimar centenas de pessoas durante sua transformação, compreendendo o que o antigo hospedeiro do Titã Colossal passava após seus ataques. Acredito que esse choque de ideais será explorado ao longo da temporada, com as atitudes de Eren sendo cada vez mais reprovadas. A retaliação sempre esteve presente em Attack on Titan, mas agora ganha contornos mais cruéis e imorais.
Mas se o protagonista é um monstro, pelo menos aos olhos de parte do público, qual a intenção de Attack on Titan? Isayama, ao pintar sua obra com diversos tons de cinza, trata da perpetuação do ciclo de ódio, dos discursos inflamados sobre guerra e o preconceito cego da humanidade. Uma eterna repetição de erros que desperta no espectador a necessidade de construir algum tipo de justificativa para o que está em tela. É perfeitamente aceitável odiar Eren, mas é impossível não entender seu lado. No fim das contas, o problema não são monstros gigantes e sim os humanos. Sempre os humanos.
A temporada final de Attack on Titan é exibida todos os domingos pelo Crunchyroll.