É bem improvável que alguém comece a listar as animações mais memoráveis da Disney e comece pelo nostálgico 101 Dálmatas, lançado em 1961. Entretanto, o público guarda um imenso carinho pela aventura de 101 cachorros da raça Dálmata fugindo de uma esbelta madame surtada querendo transformá-los em um pomposo casaco de pele. Embora a maldade principal da vilã Cruella de Vil seja um desejo horrendo de matar filhotinhos de cachorro, isto não foi o suficiente para afastar o público da personagem tão extravagante e de presença forte. A existência desta mulher que todos amam odiar é tão relevante para a história que nos live actions, 101 dálmatas (1996) e 102 dálmatas (2000), foi escolhida a notável atriz Glenn Close para interpretá-la e, no material de divulgação dos filmes, entre os fofos cachorros que já fazem boa parte do marketing, tem enorme destaque para a chamativa personagem. Não bastaria encher a tela do cinema com dálmatas correndo para lá e para cá. Cruella de Vil é como se fosse o manequim que serve para expor os outros personagens. Por mais que se ame os mocinhos, é a vilã debochada e ousada que sustenta tudo.
Depois de um bom tempo sem novos planos para o universo dos Dálmatas, a Disney mirou os olhos para a maior estrela do seu clássico sucesso e lançou o filme Cruella (2021) nos cinemas e no Disney +.
Antes de se nomear Cruella de Vil, a vilã icônica se chamava Estella (Tipper Seifert-Cleveland), uma criança perspicaz e estilosa que, após uma grande reviravolta, passa a viver nas ruas de Londres dos anos 1970 com a ajuda de dois garotos malandros, formando assim um trio de amigos inseparáveis e cheio de interesses. Após anos vivendo de roubos, a criativa Estella (Emma Stone) se esforça para se tornar uma estilista relevante. Sua vida muda quando agrada a arrogante e perversa Baronesa Von Hellman (Emma Thompson), que se torna a sua abusiva chefe. O que era o início de um sonho, deu tudo errado. Estella aos poucos cria uma rivalidade com a Baronesa e a trajetória desta briga repleta de figurinos belíssimos fará o surgimento de Cruella, que não medirá esforços para ser a melhor entre as duas.
O filme segue uma estrutura semelhante de histórias de origem de super-herói, coisa que a Disney está expert em fazer e em agradar. A decisão em transformar Cruella em uma espécie de vítima que vai escalando no nível da maldade porque precisa confrontar alguém pior que ela é certeira. Impossível não torcer para a protagonista. Inclusive, a necessidade em Estella criar uma identidade secreta, que é Cruella, para combater sua inimiga é uma maneira eficaz de fazer o público identificar Estella/Cruella como uma tortuosa heroína. Por ser algo que geralmente os heróis fazem, é uma boa maneira de afastar a protagonista da posição de vilã durante o tempo suficiente para criar identificação no público. As perversidades que Cruella de Vil faz durante o filme são direcionadas a outra vilã, então acaba ganhando a permissão e a torcida do público. E não é difícil torcer pela personagem, já que ela só quer ser uma grande estilista e precisa superar obstáculos para realizar esse desejo.
Ainda sobre o cuidado em afastar qualquer aversão a Cruella, o filme mostra que nem sempre a sua relação com os cachorros foi de ódio. Além de ter seu próprio cachorro Buddy – e amá-lo, ela ainda convive com o hilário Wink, o cachorro sem um olho de Jasper e Horácio. Isto cria mais camadas à personagem e possibilita outra leitura além de apenas odiar cãezinhos brancos com manchas pretas.
É prazeroso assistir a um filme no qual todos os personagens tem tempo suficiente para serem relevantes na história em que estão inseridos. Todos favorecem ao bom ritmo do filme. Embora o destaque seja para Emma Stone e Emma Thompson, que, aliás, estão em ótima sintonia e entregam atuações marcantes, o restante do elenco é muito bem aproveitado pelo diretor Graig Gillespie, o mesmo que dirigiu o elogiado Eu, Tonya.
Pela trilha sonora ser composta por clássicos do rock como Black Sabbath, The Rolling Stones e David Bowie, dá para imaginar o alto investimento para pagar direitos autorais. Só acompanhando o resultado positivo para entender o custo. Diante de tantos trajes punk e rebeldia, não dava para esperar menos do que uma boa música para servir de acessório.
Falando em roupas… A estilista Jenny Beavan, que ganhou seu último Oscar pelo seu trabalho em Mad Max: estrada da fúria, foi a escolhida para ser a mente brilhante de Cruella. Embora o tempo rápido para a exibição de cada criação, são vestimentas que impactam tanto quanto as ações do filme. Com grande variedade de tecidos, o uso do preto, branco e vermelho trazem poder para a estética do figurino glamoroso e bem provável ganhará ao menos uma indicação ao Oscar. Sendo a Disney, as chances para ganhar o Oscar aumentam e muito.
Embora a maioria dos efeitos especiais sejam aceitáveis, como em algumas cenas dos dálmatas e de outros cachorros com movimentos suspeitos de serem trabalhos digitais, o CGI peca em momentos chaves e, infelizmente, em uma das cenas finais, que envolve uma fuga difícil de ser engolida, fica algo desengonçado e muito artificial. É ruim, mas aceitável. Seria como admirar um vestido belíssimo, mas se olhar bem, tem alguns fiapos soltos. É impossível reprovar toda a obra por alguns acabamentos mal feitos.
Conseguindo criar ambientes muito semelhantes a animação 101 dálmatas, o prequel Cruella vira um exemplo raro de projeto de sucesso que agradará aos velhos fãs e despertará amores nos novos. Não é inovador, mas é bem pensado e torna-se, talvez, a melhor trama desses live actions da Disney. E o final surpresa logo após o início dos créditos finais é uma das melhores sacadas já feitas usando este recurso. Não é apenas uma gracinha final, mas uma singela homenagem a 101 Dálmatas. Cruella tem tanto potencial que a Disney já anunciou interesse em realizar uma sequência em breve. Necessário? Se esta primeira parte parecia não ser e virou um sucesso, não ouso julgar sem antes assistir o que mais a Disney inventar. É certo de que surgiu um novo padrão de qualidade. Cruella é sim… o futuro.