O conhecimento que a maioria dos brasileiros tem sobre entidades do folclore do seu próprio país é adquirido em um período muito específico: a infância. Isto ocorre porque os adultos não conseguem levar a sério a existência de, por exemplo, um jovem negro sem uma perna que usa um gorro vermelho, faz travessuras, é capaz de criar redemoinhos e sumir. O assunto vai ficando no mesmo universo de Papai Noel e Coelho da Páscoa, ou seja, apenas papo de crianças ingênuas. É com esta profundidade rasa de informações que a série da Netflix Cidade Invisível, do showrunner Carlos Saldanha, resgata com nostalgia a existência desses seres místicos, que ganham maior foco somente nas escolas. A intenção da série é puro entretenimento e, como uma maneira de compensar o descuido com a temática, consegue entregar um trabalho de ficção de qualidade satisfatória, apesar dos deslizes e da falta de atenção para com a cultura e a espiritualidade indígena. Tanto que a ambientação da série é o Rio de Janeiro, e não espere explicação melhor do que diminuição de gastos com logística para transportar uma grande equipe para locais mais apropriados para o tema, como a Amazônia.
O trabalho do policial ambiental Eric (Marco Pigossi) é interrompido pela ligação desesperada de sua esposa, a antropóloga Gabriela (Julia Konrad), informando que a filha deles sumiu no momento em que um perigoso incêndio começou na vila de pescadores, onde acontecia uma festa de São João. Apesar dos esforços, Eric não consegue impedir uma tragédia e, a partir deste momento, precisa lidar com as consequências desta noite. Após um mês, Eric se envolve em situações cada vez mais bizarras, ficando cercado por seres poderosos e aos poucos vai suspeitando que tem muito a descobrir, inclusive sobre si próprio.
Um dos maiores mistérios da série envolve a razão do seu próprio nome. Não fica muito claro o que é “Cidade Invisível”. O que chega mais perto de explicar é a animação da abertura, que vai transformando imagens de cenários urbanos em elementos da natureza. Se a intenção era mostrar a vastidão da biodiversidade e a importância de preservar o que não se vê… Bem, isto ficou fora do roteiro ou ficou sutil demais para perceber. Inclusive, a história é mais sobre a sobrevivência dos seres mágicos do que qualquer outra coisa, incluindo a “cidade invisível”. Não creio que o nome faça referência ao pequeno grupo de personagens que vivem escondidos. Se for, o certo seria se chamar “vila invisível”.
Apesar da força que os nomes de Marco Pigossi e Alessandra Negrini trazem da fama criada por trabalhos anteriores na Rede Globo, não interferem no brilho do restante do elenco. Um dos grandes destaques é o Wesley Guimarães, que interpreta o carismático Isac/Saci, tornando as suas cenas um alívio cômico necessário para o drama tenso.
Por mais que tenham sido em cenas pontuais, quase todos os efeitos especiais estão um primor. Reconheço que esperava menos e fui surpreendido. Não tem como deixar de enaltecer a beleza dos detalhes da cauda da Camila/Iara (Jessica Cores), o voo das borboletas mágicas da Inês/Cuca (Alessandra Negrini) e o realista fogo do Iberê/Curupira (Fábio Lagos).
Os pontos fortes da produção são mantidos e até potencializados pela edição digna de qualquer série estrangeira da Netflix. No entanto, a decisão de contar a história com flashbacks chega um momento que bate aquela sensação de não querer mais ver o passado, por mais que seja parte da construção dos personagens. O timing certo em que a trilha sonora é utilizada ajuda ao telespectador a imergir na história, auxiliando o ritmo ágil do roteiro.
O enredo poderia ser bem mais empolgante se trouxesse um vilão mais relevante, com uma motivação mais interessante. Ao longo dos sete episódios, a urgência em resolver o problema principal vai criando uma promessa para grandes cenas, mas o desfecho acaba sendo simples demais, sem entregar nenhuma cena memorável como o final do terceiro episódio, onde a Cuca entra na mente de Eric e, de maneira espetacular, é revelado que Eric tem algo escondido nele. É uma pena que, depois de tanto assistir a cada um, os anti-heróis fiquem de mãos atadas e não consigam fazer nada. É um suspense que tinha tudo para ter ido além no final, mas ficou no mínimo para não desagradar.
Cidade Invisível é mais uma série que fortalece a esperança para quem trabalha com audiovisual, abrindo espaço para o Brasil ter produções cada vez mais criativas e relevantes para o mundo. Apesar de alguns pontos a melhorar, a série consegue manter o fôlego e concluir a sua primeira temporada com muito a se orgulhar, mas ainda não é o suficiente para ser tão fantástico quanto uma lenda.