Existem histórias tão absurdas ao redor do mundo que chega a ser inevitável pensar que todas elas dariam ótimos filmes. O contexto, as ações e, especialmente, as consequências parecem obras da mente de um roteirista genial. De fato, alguns desses acontecimentos cruzam a linha tênue entre realidade e ficção e acabam indo parar nas telas de boa parte da população. No entanto, um questionamento surge no meio de todo esse deslumbramento: todos esses relatos resultariam mesmo em filmes de qualidade? Cherry, longa lançado pela Apple TV+, mostra que a realidade tende a ser decepcionante.
Baseada na obra homônima e semi-biográfica escrita por Nico Walker, a trama acompanha Cherry (Tom Holland) e todas as desventuras ao decorrer de sua vida que o fizeram passar de universitário para socorrista com mais de 250 missões no Iraque, até se transformar em um viciado em drogas e, finalmente, um ladrão de bancos. Todas essas camadas de tragédia possuem poder suficiente para causar um furacão em tela, logo, é necessário o pulso firme do diretor para conseguir controlar todas as nuances e os gêneros contidos na história. Infelizmente, os irmãos Joe e Anthony Russo acabaram sendo vítimas de uma necessidade gritante de provarem seu talento.
Principais nomes da segunda metade do MCU, os Irmãos Russo já entregaram obras como Capitão América: Soldado Invernal e Vingadores: Ultimato. Ótimas produções, você pode argumentar, mas que seguiam a lógica estabelecida pela Marvel ao longo dos anos. Com Cherry, eles enxergaram a oportunidade de gastar todas as técnicas aprendidas durante a carreira e uma forma de mostrarem ao público sua identidade própria. Logo, a dupla abusa do jogo estilizado de câmeras, montagem intencionalmente caótica, letreiros gigantes explodindo na tela e uma narração que incomoda muito mais do que auxilia. Já existe muito para o público digerir e esse dinamismo exagerado entra em conflito com o foco que deveria ser direcionado aos problemas do protagonista. Com uma duração avantajada, os núcleos poderiam receber um tratamento muito melhor.
Mesmo com questões importantes a serem tratadas, o roteiro opta por cobrir tudo com um véu de cinismo. Logo na primeira cena, enquanto caminha para um assalto, Cherry fala sobre como não entende as pessoas e o seu papel na sociedade. Esse desprendimento emocional com o que está ao seu redor, ampliado pelos traumas pós-guerra, integram o discurso da perda da inocência do protagonista e seu comportamento errático. É os Estados Unidos nu e cru, pintado em Hollywood desde os anos 1990. O tratamento ineficiente aos veteranos de guerra, o uso exagerado de opioides e a crise financeira são pedaços da sociedade estadunidense retratados no filme. Mas falta fluidez na transição entre esses aspectos.
No entanto, mesmo com toda essa confusão, Tom Holland tem espaço de sobra para se destacar. Empenhado no projeto de ser muito mais do que o Homem-Aranha, ele já havia mostrado uma face madura no recente O Diabo de Cada Dia. Aqui, seu personagem é muito mais trágico e cobra do ator uma entrega emocional capaz de estabelecer um vínculo com o espectador. É possível reconhecer os sofrimento e desespero através do seu olhar. Porém, nem todos os personagens ganham o mesmo destaque. Emily (Ciara Bravo) acaba sugada pela espiral de autodestruição do protagonista, mas o roteiro pouco faz pela atriz. Seus dramas poderiam ter sido trabalhados de uma maneira mais eficiente, tendo em vista a longa duração do filme.
No fim das contas, a história de Nico Walker é tão maravilhosamente absurda que nem mesmo o cinema parece capaz de lhe fazer justiça. Ou, quem sabe, nas mãos de outras pessoas o resultado seria diferente. Pensamentos que nunca encontrarão uma resposta e talvez seja melhor assim mesmo.