Quase todo mundo já assistiu (ou, no mínimo, conhece a história) ao clássico Pinóquio, lançado pela Disney em 1940, sobre um boneco de madeira muito ingênuo, mas um bom filho, que sonha em se tornar um garoto de verdade. Apesar das passagens amedrontadoras, como as crianças se tornando burros ou até mesmo o protagonista sendo engolido pela baleia, a história marcou a vida das pessoas que assistiram e assistem.
A história conta com várias adaptações cinematográficas, sendo a mais recente uma versão italiana do diretor Matteo Garrone, lançada no início deste ano, além de versões para teatro e até adaptações literárias que divergem totalmente da história original. E, logo, teremos também uma versão live-action da Disney, que tem feito bom proveito do ar nostálgico que os últimos anos têm nos envolvido para lançar várias “novas” versões de suas animações mais famosas, como o divertido Aladdin ou o fracassado Mulan. Porém, o que não se sabe é que a história de Pinóquio na verdade nasceu em mais ou menos 1881, nas mãos do escritor Carlos Collodi, no jornal semanal II Giornale per i Bambini, voltado para o público infantil, e, em seu primórdio, chamava-se A história de um boneco. À época do seu lançamento, a Itália ainda brigava para se tornar uma nação única (na época, ela era um monte de conglomerados), e o autor temia pelo seu direito à individualidade e à liberdade. Sabendo disso, e tendo ele mesmo participado de algumas batalhas, criou Pinóquio, um personagem inconformista, transgressor – mas que, no fim, paga pelos seus atos inconsequentes. Não que ele seguisse a linha dos contos de fadas, mas Collodi possuía uma ideia própria de como dar a tal “lição” que as histórias infantis pediam.
Afinal, qual é a história de Pinóquio?
A história se inicia com Gepetto, um homem bom, honesto e muito, muito pobre, criando um paralelo com a época em que a história foi escrita, em que os italianos saíam do país em busca de condições melhores de vida, e quem não saía, estavam em condições nada boas. Em determinado momento, ele adquire um toco de madeira mágico, esculpindo, assim, um filho para ele. Mal sabia ele que Pinóquio, nome com que ele batizaria o filho (há teorias de que Pinocchio venha da língua toscana e signifique pinhão), era uma criatura má e mesquinha. Seu primeiro ato foi fazer seu pai ser preso e, logo em seguida, matar o grilo falante – que representa a sua consciência e estava ali apenas para ajudar.
Infelizmente para o menino de madeira, ele logo descobriu que precisava de Gepetto para, por exemplo, quando tacou fogo na própria perna e virou perneta, precisou de um carpinteiro habilidoso para criar uma nova perna para ele. A partir daí, Pinóquio está sempre aprontando alguma com seu pobre pai, Gepetto. Seja vendendo os livros escolares que o homem tanto penou para comprar e poder assistir a um espetáculo, ou sendo roubado, dando trabalho para a Fada Azul, enganando comerciantes… Em diversos momentos, Pinóquio é apenas uma criança transgressora, sempre questionando o que lhe é dito e caindo em armadilhas estúpidas da vida por não ter a capacidade de obedecer ou entender que os adultos só querem o seu bem.
Veja bem, ser transgressor e questionador, nesse caso, não é o problema. O problema é que Pinóquio se acha esperto, é egocêntrico, pensando apenas em si e no prazer que ele poderá sentir com coisa X ou Y, e acredita muito facilmente em coisas que vão, supostamente, lhe dar vantagem. A velha história do individual acima do coletivo – assunto extremamente atual.
É tão ruim assim?!
Na verdade, não. O livro é excelente. Collodi era um comediante que entrou, por acaso, na literatura infantil. Dentro da narrativa, encontramos diversas ironias e lições assertivas sobre obediência e estudos, por exemplo, mas nada do que ele escreve é lugar-comum. Atitudes esdrúxulas, com resultados perigosos e completamente surreais acontecem, e o autor está sempre inovando na narrativa para que, com o tempo, Pinóquio finalmente vá aprendendo as consequências de seus atos e amadurecendo.
Inclusive, a ironia é um tema MUITO trabalhado na obra. Como diria o teórico Duarte: A ironia humoresque, diferentemente, é demoníaca: amorosa, séria, usa sempre a leveza e fica entre a tragédia e a comédia, dizendo que nada é tão grave quanto cremos, nem tão fútil quanto julgamos. Assim como o humor não existe sem o amor, não há ironia humoresque sem alegria e lucidez. (DUARTE, 2006, p. 37) E é essa que encontramos durante a narrativa. Pinóquio é ambíguo, não é aquele menino bonzinho e ingênuo – como apresentado na Disney, e muito menos o vilão no terror Pinóquio, o perverso.
O autor também procura a quebra de expectativa como forma de crítica. Por exemplo, em determinada cena, Pinóquio é roubado, denuncia o crime e ele é preso, mesmo sendo a vítima. O caráter lúdico da narrativa está presente o tempo inteiro, em que o autor tenta, por meio dessas passagens que, aparentemente, não fazem sentido, ponderar sobre determinado assunto. Por exemplo, nessa passagem citada, podemos facilmente ligá-la às injustiças cometidas pela lei, quando pessoas – principalmente pretas e de periferia – são condenadas injustamente em prol de quem tem mais influência e dinheiro. Claro que é uma das possibilidades de interpretação, pois o autor deixa, sutilmente, várias mensagens ambíguas ao longo da narrativa. E você aí achando que literatura infantil era fichinha, ein?
Em uma análise mais aprofundada, podemos entender que, seja em qual for a adaptação da história, Pinóquio está sempre em busca dos valores humanos que irão transformá-lo em “menino de verdade”. Como dito anteriormente, Pinóquio é um personagem que pensa somente em si e no seu prazer. Em cada ato feito durante os capítulos, vemos o boneco de madeira cometer diversos erros por sempre pensar no que é melhor para ele naquele momento, vivendo uma espécie de hedonismo distorcido. Ao longo da história, ele vai aprendendo a conviver em sociedade, a se importar de verdade com as pessoas – como a Fada, que se torna a sua figura materna. Isso fica claro no momento em que ele finalmente consegue atingir o seu maior objetivo: tornar-se de carne e osso.
“– Muito bem, Pinóquio! Graças ao seu bom coração, perdôo-lhe todas as travessuras que você aprontou até hoje. Os meninos que cuidam amorosamente dos pais nos seus sofrimentos e nas suas enfermidades, merecem sempre muitos elogios e muito afeto, mesmo quando não podem ser citados como modelos de obediência e de bom comportamento. Crie juízo para o futuro e seja feliz.” (quando a Fada o transforma em menino; 2002:188)
O que esperar do live-action da Disney?
De verdade, eu não espero algo muito diferente do que já foi feito por ela. A Disney dificilmente iria se arriscar na ambiguidade irônica que Collodi inseriu na sua história, provavelmente aliviando, como já fez antes, o personagem do Pinóquio para um garoto bonzinho que apenas comete erros por ser ignorante em relação à vida. Talvez voltem a inserir o Grilo Falante como algo importante na narrativa, ao invés de um pobre infeliz que foi assassinado por ser sensato.
O filme ainda não tem data de lançamento, e recentemente Luke Evans foi confirmado no elenco. Tom Hanks será Gepetto (e não me sai da cabeça a imagem dele em Náufrago, e como ele já tem experiência em conversar com objetos…). Robert Zemeckis assume a direção.