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A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos

Há uma construção social equivocadíssima de que a pessoa mais velha não possui serventia para sua comunidade. Seja numa aposentadoria forçada, o inevitável luto por pais e amigos ou mesmo o desprezo pelo próprio corpo envelhecido. Um potente vazio pode passar a habitar o coração de pessoas com idade mais avançada, e A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos (Pipoca & Nanquim) se apresenta aos leitores com essa cruel mordida dada pelo roteirista Zidrou (Verões Felizes) e pela desenhista Aimée de Jongh (Táxi).

A obra apresenta dois personagens que ainda não se conheceram. Ulisses acaba de perder seu emprego, no qual foi preterido por já poder viver como aposentado enquanto seus colegas mais novos precisam do meio de sustento. Viúvo e com filho já criado, ele passa a sentir um enorme vazio na sua rotina. Mediterrânea, por sua vez, é uma mulher que acaba de perder a mãe após nove longos meses de internação e agonia, e agora precisa continuar os negócios da família no ramo de queijos.

Assim como no quadrinho que o tornou conhecido pelo público brasileiro, Verões Felizes (SESI-SP), Zidrou consegue trazer para a trama diversas questões mundanas relevantes aos seus personagens, do tipo que desperta a empatia no leitor – e isso aumenta ainda mais naqueles que já passaram por situações semelhantes, seja no campo do luto ou mesmo do amor.  Para este trabalho, a parceria firmada foi com a ilustradora Aimée de Jongh, que não faz feio em momento algum, apresentando uma arte impecável, inclusive nas cores.

Após a pesada introdução, o que se segue é uma narrativa digna dos melhores romances onde um casal se apaixona. Há pitadas de humor e momentos de tensão – mas nada espetaculoso, afinal, não estamos acompanhando (tampouco comparando com) algo da sétima arte, mas sim da nona.

Para além da factualidade da coisa, A Obsolescência Programada dos Nossos Sentimentos possui uma força poética elogiável. Mediterrânea possui um grande trauma de maçãs por ter visto Branca de Neve e os Sete Anões com o pai na infância, e passou a associar a fruta à bruxa velha e deformada, ideia que ela acaba apropriando para o seu próprio corpo após sessenta anos. Também há um paralelo entre morte e nascimento no fato dela ter cuidado da sua mãe por nove meses – enquanto ela esteve no ventre da mãe pelo mesmo período – levando em conta o tempo “normal” de uma gravidez. Essas questões ganham ainda mais complexidade em sua cabeça por ter sido modelo profissional quando mais jovem.

Ulisses, por sua vez, remete um personagem que possui a viagem em seu DNA. Na Odisseia, de Homero, o protagonista leva quase duas décadas para retornar à sua casa após a Guerra de Troia, enquanto passa por diversos desafios e aventuras no caminho. Desde o início, Zidrou e Aimée brincam com isso e classificam o Ulisses de Obsolescência como uma pessoa totalmente avessa à leitura – sem a menor vergonha disso. É dentro dessa brincadeira, inclusive, que há um divertido relato sobre o emprego de Ulisses (numa transportadora de cargas), quando ele e seus colegas vão cuidar da mudança de uma colecionador de quadrinhos. Porém, se antes ele era um viajante urbano e curtir outros lugares na aposentadoria não aparentava ser algo empolgante, Mediterrânea surge como esse mar de novas possibilidades para sua vida.

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Seguindo o singelo título desta obra de Zidrou e Aimée de Jongh, podemos afirmar que a obra trabalha em demasia com a ideia de ciclos e a velhice nada mais é do que uma dessas etapas. Em dado momento, Mediterrânea se vê pensando sobre Ulisses e o define como “o homem da minha vida”, para logo em seguida se corrigir: “o homem nesse momento da minha vida”. Obsolescência programada é um termo usado para definir a sociedade consumista na qual vivemos, onde os produtos (celular, lâmpadas, televisores etc.) já partem com uma curta validade determinada pelo seu criador. A obsolescência programada dos nossos sentimentos pode até existir em determinados casos, mas isso não significa necessariamente uma morte definitiva. Enquanto estamos vivos há sempre a possibilidade de recomeços, renascimentos e voltas por cima.