Mank

Cidadão Kane. Com toda razão, um dos filmes mais celebrados da história do cinema. Mesmo envolto em várias polêmicas até sua concepção, o longa dirigido e estrelado por Orson Welles consegue se manter firme e forte no imaginário dos apaixonados pela sétima arte. Imune aos efeitos do tempo, a obra é objeto de estudos e discussões, em especial sobre quem é o verdadeiro autor do roteiro. Foi com esse aspecto em mente que Jake Fincher, entre os anos de 1980 e 90, começou a trabalhar no conceito de Mank. Um olhar profundo sobre a carreira e a importância de Herman J. Mankiewicz (Gary Oldman). Infelizmente, Jake não conseguiu tirar o projeto do papel. Missão essa que ficou nas mãos de seu filho: David Fincher. Saindo de um longo hiato após Garota Exemplar, e estreitando sua parceria com a Netflix, David realiza o sonho do pai e vai além. Entrega uma visão crua da Era de Ouro de Hollywood e da influência política e social da indústria cinematográfica.

Além do título, o longa claramente escolhe um lado na polêmica envolvendo o roteiro: Mank concebeu e escreveu toda a história de Kane, baseando-se em suas vivências ao longo de décadas pelos corredores dos estúdios de cinema, convivendo com pessoas das mais diversas índoles. Ao adotar essa postura, David Fincher permite que seu trabalho caminhe por vários aspectos, colocando o protagonista como bússola para o espectador. Por isso, vale o aviso: quem espera um dramático embate entre Mankiewicz e Welles pode acabar saindo decepcionado. Existem mais camadas aqui e uma discussão que vai além do que está em tela.

Para tornar a experiência mais imersiva, Fincher buscou emular os detalhes técnicos dos anos de 1930 e 40. Como um retrato do próprio Cidadão Kane, o filme foi filmado em preto e branco, a montagem é não-linear, há um uso extenso de planos e contraplanos, uma trilha sonora gravada com instrumentos da época, os nomes dos atores principais em destaque no início, entre outros pontos. É uma carta de amor para a antiga Hollywood, capaz de mergulhar o espectador em um passado longínquo. É necessário elogiar o esforço do roteiro em contextualizar a problemática para aqueles que pouco conhecem a situação retratada, especialmente com ajuda dos flashbacks. Embora um conhecimento prévio garanta uma aventura mais completa.

Para além das questões técnicas, Mank sabe trabalhar muito bem seu protagonista. Enaltecendo sua genialidade na medida em que não busca esconder seus defeitos. Sua inteligência e sarcasmo são constantemente confrontados por seus vícios e pela sua saúde frágil. A capacidade de disparar comentários ácidos sem o menor pudor rivaliza apenas com a facilidade com que roteiros surgem em sua mente. O que leva a criar afetos e desafetos na mesma proporção. Seu olhar diante do comportamento da indústria no período pós-Grande Depressão, do envolvimento direto das eleições nos EUA e a forma como enxergou a Segunda Guerra é necessário para situar quem estiver assistindo.

Nas atuações, Gary Oldman entrega um dos melhores trabalhos de sua carreira. Seu personagem é cativante e bastante palpável. Logo, é fácil comprar sua jornada de autodestruição até a busca por algum tipo de redenção. Sua presença em tela por vários momentos chega a ser sufocante, embora ele saiba dar espaço para os coadjuvantes brilharem. A escolha dos demais nomes do elenco contribui para o sucesso do longa. Destaque especial para Amanda Seyfried como Marion Davies, entregando uma personagem carismática e autoconfiante. Estabelecendo uma ótima química em cena com Oldman. Charles Dance como o magnata William Randolph Hearst e Arliss Howard como Louis B. Meyer também merecem nota. Na letra fria da lei, eles seriam os antagonistas de Mank. Principalmente pelos contrastes de ideais.

No entanto, existe um aspecto no roteiro que acaba incomodando. Ao longo dos anos, a ideia original foi se transformando de uma disputa entre dois homens para algo muito maior que eles. Porém, o elemento dos créditos pelo texto de Kane permanece em cena, ganhando um desenvolvimento bastante raso ao longo das mais de duas horas de projeção. Por consequência, a resolução é bastante apressada. O esperado encontro entre Mank e Welles acaba perdendo muito do peso imaginado.

Isso não diminui o brilho do filme, que, apoiado no talento gigante de seu diretor e dos atores em cena, transforma-se numa janela para que possamos entender melhor um período tão conturbado e que, de certa forma, ainda reverbera em nosso cotidiano. Fica a torcida para que David Fincher não passe mais tanto tempo longe da direção. Assim como Herman J. Mankiewicz, ele tem muito a dizer.