Por Amanda Fontenele
Princess Jellyfish (Kuragehime, 海月姫) é um mangá de Akiko Higashimura, lançado entre 2008 e 2017 na Revista Kiss. Com 93 capítulos que totalizam 17 volumes publicados pela Kodansha, Princess Jellyfish também conta com adaptações para anime e Live Action e venceu o Kodansha Manga Award na categoria shoujo em 2010 (embora seja, na verdade, um josei).
O mangá nos apresenta Tsukimi Kurashita, uma jovem adulta que se muda para Tóquio com o objetivo de se tornar ilustradora. A convite de algumas amigas que conheceu pela internet, ela passa a viver numa casa onde todas as moradoras são mulheres otakus, no sentido mais japonês da palavra (são obcecadas por algo, que não precisa ser necessariamente relacionado a animes ou mangás).
Cada uma das Amars, como se autodenominam, possui especialidades diferentes: Banba, por exemplo, é fascinada por trens; já Chieko, a responsável pela casa, adora roupas tradicionais japonesas e coleciona bonecas. Mas se elas se diferenciam pelos gostos específicos, são unidas por várias características em comum: além de se identificarem como otakus, elas também estão solteiras, possuem dificuldade para socializar com pessoas que não são otakus, se sentem confortáveis em lugares com muita gente e evitam interagir com pessoas que seriam o oposto delas – o que inclui homens em geral.
Águas vivas são a grande paixão de Tsukimi. Esses animais marinhos possuem um significado especial para a protagonista desde criança, quando visitou o aquário de Kagoshima com a mãe dela. Na ocasião, as águas vivas lhe lembraram as princesas que via nos livros e seus belos vestidos, e a mãe lhe prometeu costurar um traje tão lindo quanto aqueles seres quando Tsukimi se tornasse uma noiva.
A mãe também lhe disse que todas as meninas podiam se tornar princesas. E Tsukimi via em seu próprio nome uma conexão com as águas vivas (kurage e Tsukimi possuem o kanji 月 em comum), como se fosse um sinal do que a aguardava no futuro. Mas Tsukimi perde a mãe ainda na infância, e as águas vivas passam a ser lembranças que a conectam a mãe e sonhos distantes. É também à distância que a protagonista observa as princesas da vida real, habitantes de um mundo ao qual Tsukimi não se considera sequer capaz de entrar.
“(…) não fui capaz de me tornar uma princesa, mas, ao invés disso, me tornei uma fujoshi”
Como vários outros momentos cruciais nesse mangá, o encontro entre os personagens principais de Princess Jellyfish está relacionado a uma água-viva: Tsukimi passa por uma petshop e percebe que uma delas está prestes a morrer, mas não tem autoconfiança suficiente para confrontar o atendente da loja. Mas, para a sorte dela, uma mulher aparece e resolve a situação rapidamente, convencendo o vendedor a doar o animal para Tsukimi.
A protagonista logo conclui que aquela mulher é exatamente o que se espera de uma princesa: uma beleza que a destaca entre os demais, além de ser confiante e capaz de se impor quando necessário.
O que ela não esperava era descobrir que, na verdade, a princesa era um homem: Kuranosuke é o filho mais jovem em uma família de políticos, mas não deseja seguir essa carreira – prefere a moda e adora crossdressing.
Apesar de serem completamente opostos, Tsukimi e Kuranosuke vão se aproximando aos poucos. Kuranosuke, acostumado a lidar com estética e interações sociais com bastante domínio, fica fascinado com o estilo de vida no Amamizukan e passa a conviver cada vez mais com elas. Além disso, está sempre disposto a tirar Tsukimi da zona de conforto, enxergando nela tanto potencial criativo como beleza. Afinal, Kuranosuke também acha que qualquer mulher pode se tornar uma princesa. Mais do que isso: ele acredita que todas, secretamente, desejam se tornar uma.
A princípio, Princess Jellyfish parece uma comédia romântica leve, com personagens meio caricatos e sem muita profundidade (exceto pela protagonista, que tem questões pessoais muito exploradas desde o começo do mangá). No entanto, a história vai, aos poucos, ganhando mais camadas e se distanciando bastante dos romances que costumamos ver nos mangás shoujo. Embora o mangá dê muita ênfase aos sentimentos e conflitos internos das personagens (uma característica inerente às demografias voltadas para o público feminino), também é uma obra que traz um olhar crítico sobre o contexto social e econômico no qual elas estão inseridas.
Tsukimi não possui uma relação saudável com a própria imagem. As águas vivas e princesas personificam não só o padrão de beleza inalcançável, mas uma vida que, para a protagonista, jamais poderia ser vivida por alguém como ela. A insegurança não apenas faz ela demorar a acreditar em suas habilidades com ilustração e design, como também faz ela pensar que não é digna aceitar afeto e viver um romance.
Kuranosuke, por outro lado, sabe muito bem como controlar estética e interações sociais a favor dele. Roupas, acessórios e maquiagem são usadas como peças de uma armadura, escolhidas de acordo com seus objetivos – algo que ele consegue realizar com maestria em outras pessoas também, como demonstra transformando a aparência das Amars, principalmente a de Tsukimi.
“”(….) há muitas pessoas que julgam os outros se baseando na aparência deles. Naturalmente, os inimigos são esse tipo de gente. Portanto, ponham suas armaduras!”
Como uma fada madrinha dos contos de fadas, Kuranosuke a transforma em uma princesa irreconhecível, e acha que a mudança na imagem pode provocar uma mudança interior também. No entanto, Tsukimi não consegue se conectar a esse ideal, mesmo quando o vê no próprio reflexo.
Trabalhar a imagem e a autoestima de Tsukimi se torna uma tarefa ainda mais necessária para Kuranosuke no momento em que a Amamizukan, residência onde as Amars moram, é colocada à venda, e o personagem vê na amiga a solução para esse problema: com o vasto conhecimento sobre águas vivas e uma mente muito inventiva, Tsukimi consegue desenhar lindos vestidos, com designs bem diferentes do que é normalmente encontrado no mercado. Kuranosuke decide criar uma marca de roupas, e acredita que, com a habilidade dele para negócios, o talento de Tsukimi e o trabalho das Amars na produção, eles serão capazes de se tornarem tão famosos quanto as grandes marcas que dominam o mercado.
Desde o início do mangá, Princess Jellyfish já pontuava os aspectos econômicos que impactavam diretamente a vida das personagens, que vivem em um período de recessão econômica no Japão. As Amars se encaixam no grupo de mulheres entre 20 e 30 anos que estão desempregadas e sem perspectivas de encontrar um trabalho. Se a convivência em grupo dentro do Amamizukan traz algum conforto e compreensão, fora dele elas são vistas como neets que deveriam buscar um emprego. A cobrança, muitas vezes, vem diretamente dos pais, que continuam sustentando financeiramente as filhas.
A pressão se torna ainda maior quando a residência é colocada à venda, colocando o estilo de vida delas em risco. Além do prédio ter um valor altíssimo, o potencial comprador é um político (o pai de Kuranosuke), então como elas, sem sequer ter uma renda própria, podem proteger o lugar onde moram?
A jornada para salvar a casa – o que, para Kuranosuke, inicialmente, significa alcançar um lugar no topo – é marcada por vários momentos divertidos e muita evolução entre as personagens, que, mesmo com pouca experiência, conseguem dar passos muito importantes na formação de uma empresa. Através dessa iniciativa meio desesperada delas, o mangá explora questões sobre produção e mercado que, embora focadas na moda, se aplicam ao modelo que em geral encontramos dentro do capitalismo, incluindo aspectos de crise dentro desse sistema.
Higashimura aprofunda ainda mais essa reflexão com a chegada do personagem Kai, um jovem de Cingapura que é presidente de uma das maiores companhias de moda da Ásia. O empresário, conhecido por expandir o negócio comprando várias empresas menores, se torna uma ameaça para a já fragilizada dinâmica entre Kuranosuke, Tsukimi e as Amars quando propõe a protagonista que ela deixe o grupo e trabalhe exclusivamente para ele.
Kai pode até surgir como o antagonista final nesse mangá, mas a trajetória do personagem é complexa demais para encaixá-lo simplesmente como o vilão da história. Através de alguns flashbacks (relatos de pessoas que conviveram com ele durante a infância), o mangá expõe a história de Kai, partindo da época em que ele, ainda muito jovem, vendia roupas para arrecadar dinheiro e ajudar as outras crianças do lar onde morava. Para isso, catava as peças que vizinhança rica descartava no lixo, praticamente novas.
Hwa-Young é assistente de Kai e provavelmente a única pessoa que se mantém próxima dele desde a época do orfanato, além de passar informações importantes sobre o passado dele, também mostra como as fábricas funcionam e o que precisa ser feito para a manutenção dos valores que separam os itens de luxo da mercadoria comum. Aos poucos, a queda e ascensão de Kai criam um retrato do quanto esse sistema é cheio de absurdos e insustentável. Um monstro tão insaciável que, um dia, inevitavelmente, morderá a própria cauda.
“(…) Nós queimamos dinheiro para fazer dinheiro, e tenho certeza de que, no final, não sobrará mais nada”
Após tanto trabalho, aprendizados e frustrações, cabe aos nossos protagonistas decidir se ainda há sentido em traçar esse mesmo caminho. Por outro lado, também é impossível voltar a vida de antes. Todos saem transformados dessa experiência – uma mudança que não parte simplesmente da aparência, mas de um amadurecimento que faz elas terem coragem para finalmente defender que a existência delas, assim como os gostos e personalidades, também são válidos.
E para que possam brilhar em sua própria pele, Tsukimi, Kuranosuke e as Amars criam uma alternativa nova, deixando de lado a busca por uma validação externa e focando, pela primeira vez, em um trabalho que realmente fazia sentido para elas.
Kuranosuke alerta: “preparem-se, pois vamos revolucionar esse mundo!”. O mangá termina sem sabermos se o grupo realmente fez isso, mas com a sensação de que as mudanças provocadas por elas continuam ecoando, e torcemos para que cheguem longe. Mas é certo que a história criada por Higashimura conseguiu alcançar várias e várias mulheres que, assim como as otakus desse mangá, já se sentiram deslocadas e inseguras por não se encaixarem no padrão que é tão associado a sucesso e felicidade.
Infelizmente, essa obra prima do Josei ainda não foi lançada no Brasil. Mas, se puderem, leiam Princess Jellyfish. Além de possuir uma das abordagens mais saudáveis sobre crossdressing (sem os estereótipos que são comuns nos quadrinhos japoneses), é um mangá divertido, com uma arte linda, personagens cativantes e boas reflexões.
Esse post é fruto de uma parceria entre o Molho Shoujo Podcast e o CosmoNerd. Confira os episódios do programa clicando aqui.