Na última quarta, fomos brindados com a premiere da mais nova série do Disney+. Loki, como era de se esperar, é um mergulho dentro da personalidade e dos demônios internos do personagem-título, um dos mais amados vilões da Marvel Studios, entrelaçada com uma trama que envolve múltiplas realidades e viagem no tempo. Entretanto, uma cena em particular do primeiro episódio deixou alguns fãs curiosos: no que parece ser meados dos anos de 1970 na Terra, Loki, a bordo de um avião, informa à aeromoça, por meio de um bilhete, que está com uma maleta cheia de explosivos e exige uma boa quantidade de dinheiro como resgate, para logo depois saltar de paraquedas da aeronave e desaparecer através do portal mágico Bifrost.
Essa cena não foi inserida na série por mero acaso. Usando Loki, os roteiristas recontaram um acontecimento real e tão incrível que faz parte do imaginário popular americano. Ao reescrever a história com o Deus da Trapaça no papel principal, acrescentam uma insólita explicação para um caso, até hoje, inexplicável. Oficialmente, é conhecido como “Apoderamento ilícito do voo Northwest 305”. Popularmente, como o “Caso D. B. Cooper”.
Um homem entra num avião e…
Eram as primeiras horas da tarde do dia 24 de novembro de 1971. O cenário era o aeroporto de Portland, estado do Oregon. Em meio ao fluxo regular de passageiros, um homem compra uma passagem só de ida para o voo 305 da Northwest Airlines, com destino a Seattle, no estado de Washington. No guichê da companhia, ele dá o nome de Dan Cooper. Carregava uma maleta preta e vestia-se de maneira sóbria, com terno e gravata escuros e uma camisa bem passada. Aparentava ter em torno de quarenta anos e media cerca de 1,80m de altura. Oficialmente, se ele sentou na cadeira 18C, mas alguns testemunhos indicam que ele pode ter se sentado na fileira 15. Às 14:30h, o Boeing 727 da Northwest decola para Seattle com cerca de um terço de sua capacidade total.
Segundo as testemunhas, o homem estava bastante tranquilo. Teria pedido uísque com soda às comissárias de bordo, além de ter fumado um cigarro. Transcorridos cerca de dez a quinze minutos de voo, o homem entrega um bilhete à comissária Florence Shaffner, que o guarda no bolso sem ler, pensando ser mais algum dos muitos números de telefone de executivos solteiros que recebia durante o trabalho. Ao perceber que estava sendo ignorado, Cooper chamou a comissária novamente e disse: “Senhorita, acho melhor você ler o bilhete”. Ao pegar do bolso e desdobrá-lo, Shaffner leu as seguintes palavras, escritas à mão em caligrafia azul: “TENHO UMA BOMBA EM MINHA MALETA E VOU USÁ-LA SE NECESSÁRIO. SENTE-SE AO MEU LADO, VOCÊ ESTÁ SENDO SEQUESTRADA”.
O plano mais ousado do mundo
A comissária Shaffner contou ao FBI que, após sentar-se ao lado de Cooper, pediu para ver a bomba. Ele abriu a maleta o suficiente para que ela pudesse identificar oito cilindros vermelhos dispostos em duas fileiras de quatro, todos ligados por fios vermelhos a uma grande bateria em forma de caixa. As exigências do sequestrador eram duzentos mil dólares em dinheiro, dois paraquedas primários e dois paraquedas de reserva, além de um caminhão de combustível pronto para reabastecer o avião quando eles pousassem em Seattle. Shaffner transmitiu as informações aos pilotos.
O comandante William Scott repassou a ocorrência à Torre de Controle do aeroporto de Seattle-Tacoma, que, por sua vez, informou à polícia e ao FBI. Donald Nyrop, presidente da Northwest na época, autorizou o pagamento da quantia solicitada e ordenou a todos os funcionários da companhia que cooperassem com Cooper. Foram oferecidos via rádio paraquedas militares a Cooper, que os recusou prontamente, exigindo modelos civis. O motivo: ele queria paraquedas que pudessem ser abertos manualmente, ao contrário dos modelos militares, que se abriam imediatamente após o salto. A aeronave sobrevoou a cidade de Seattle por cerca de duas horas, tempo utilizado pelas autoridades para mobilizar equipes de segurança em solo, até que, às 17:24h, Cooper foi informado via rádio que suas exigências haviam sido atendidas. Às 17:32, a aeronave pousou e taxiou para uma área remota e altamente iluminada do pátio, com toda as luzes internas desligadas para evitar a ação de snipers.
O dinheiro e os paraquedas foram entregues a Cooper pelo gerente de operações local da Northwest em pessoa. Assim que os recebeu, Cooper liberou os 36 passageiros, a comissária Shaffner e a comissária-sênior Alice Hancock. Enquanto a aeronave era reabastecida, Cooper informou à tripulação da cabine os próximos passos: a aeronave deveria seguir para sudeste, rumo à Cidade do México, em uma velocidade constante de 190km/h e uma altitude próxima a 3000m. O trem de pouso deveria estar o tempo todo abaixado e os flaps em 15 graus. Após ser constatado pelos pilotos que a aeronave não poderia chegar ao México sem um segundo abastecimento, foi acordado entre todos que o 727 pousaria em Reno, no estado de Nevada. Às 19:40h, o Northwest 305 voltou ao ar. Dois caças Convair F-106 decolaram da base aérea McChord, também em Seattle, e seguiram o Boeing, um acima e um embaixo, fora do campo de visão de Cooper.
Logo após a decolagem, Tina Mucklow, uma comissária que havia se voluntariado a permanecer no avião, foi ordenada por Cooper para que fosse para a cabine de comando se juntar ao resto da tripulação e não saísse de lá. Ao passar por Cooper, ela notou que ele amarrava algo na cintura. Por volta das 20h, uma luz no painel de controle dos pilotos indicou que o mecanismo de abertura da porta traseira da aeronave fora acionado. Pelo intercomunicador, o comandante Scott perguntou se Cooper precisava de ajuda, ao que o homem respondeu com um estoico “não”. Em seguida, um solavanco na parte posterior da aeronave indicou ao restante da tripulação que a porta traseira estava abaixada, fazendo o ar empurrar a traseira da aeronave pra cima. Às 20:20h, a aeronave pousou em Reno, ainda com a porta abaixada. Equipes policiais de prontidão em solo vasculharam a aeronave inteira, sem encontrar qualquer sinal do suspeito de sequestrar o voo 305 da Northwest Airlines.
Dan Cooper havia saltado no céu noturno.
O homem, o mistério e a lenda
Ao iniciar a investigação, o FBI procurou por todos os indivíduos com ficha criminal de nome semelhante ao de Dan Cooper no estado do Oregon e chegou a um homem chamado D.B. Cooper, cuja participação no crime foi rapidamente descartada. Entretanto, na pressa de concluir a reportagem no prazo, um jornalista de Seattle confundiu o nome apresentado por Cooper ao embarcar com o nome do suspeito investigado pelo FBI. Rapidamente, outros jornais copiaram as informações e Dan Cooper tornou-se, para sempre, D.B. Cooper.
Os dias seguintes mobilizaram a maior caçada humana que o FBI promovera até então. No avião, foram encontradas 66 impressões digitais de Cooper, além de uma gravata preta com prendedor de madrepérola e dois dos quatro paraquedas. Por ter sido à noite e em uma região de grande nebulosidade, nenhum dos pilotos dos caças viu o indivíduo saltar. Mais de 3000km² foram vasculhados em terra, baseados nos prováveis locais de salto, sem qualquer sucesso. Foi fixada uma recompensa de 50 mil dólares para qualquer um que tivesse informações que levassem ao paradeiro de Cooper, que mais tarde foi ampliada a qualquer que soubesse o paradeiro do dinheiro do resgate ou mesmo que apresentasse uma das notas, com o número de série previamente fotografado pelo FBI. Isso levou ao que é considerada até hoje uma das maiores caças ao tesouro fora do território marítimo, além da maior busca a um montante de dinheiro roubado no território dos Estados Unidos da América. Entre 72 e 75, havia mais voluntários à procura de D.B. Cooper que à procura do Pé Grande.
As especulações a respeito da identidade de Cooper nunca foram sanadas. Durante o roubo, ele sempre foi descrito como um homem calmo, gentil, tranquilo, muito simpático com todos e não-violento. Bebeu uísque e soda junto com a tripulação e fez questão de que os demais passageiros comessem, tranquilizando ao máximo alguns poucos que estavam em estado de choque. A comissária Shaffner, em entrevista a uma rádio nos anos 1980, chegou a dizer: “Você passa a vida nos ares como comissária sendo tratada de todas as formas possíveis, menos como uma pessoa. E, de todos os passageiros que tive em minha vida, o mais cavalheiro de todos foi um homem com uma bomba dentro de uma maleta”.
O salto que entrou pra história
O mais perto que Dan Cooper chegou de ser pego foi quando, nos anos 1980, parte do dinheiro do resgate foi encontrado por uma família acampando em Vancouver. As notas estavam em avançado estado de desgaste e teriam passado, pelo menos, quatro anos no fundo do rio Oregon. Tempos depois, um crânio humano foi achado em uma área próxima a da rota voada pelo 727 em Nevada, mas revelou-se ser de uma mulher nativo-americana.
Dentre os grupos de especuladores, não faltam os que acreditam terem desvendado o caso. Um site no WordPress tenta, até os dias atuais, reunir provas de que Dan Cooper seria, na verdade, um ex-piloto da Northwest chamado Kenneth Christiansen, que teria sido demitido da companhia anos antes do sequestro por conduta imprópria. Outras páginas foram criadas na internet para analisar a suspeita sobre os mais diversos indivíduos, como um ex-militar da Guerra do Vietnã, um professor de educação física do estado Michigan e, até mesmo, um obscuro fugitivo de uma instituição psiquiátrica que nunca foi encontrado.
Em 2003, uma mudança no regulamento interno do FBI estabeleceu que nenhum caso ficaria aberto em investigação contínua por mais de 45 anos. Com isso, o “Caso D.B. Cooper” foi oficialmente encerrado em novembro de 2016. Permanece até hoje como a investigação mais longeva da história do Bureau e o único caso não solucionado de sequestro de aeronaves da aviação civil internacional. Na cultura pop, o nome D.B. Cooper rende um mundo de referências e menções nas mais diversas obras. O protagonista de Twin Peaks, obra prima de David Lynch, é chamado Dale Bartholomew Cooper, em homenagem a ele. A história também migrou para o cinema, em um filme de 1981 sobre o lendário roubo, estrelado por Treat Williams; e, mais recentemente, na comédia de 2004 Without a Paddle, onde um grupo de amigos parte para as montanhas do Oregon seguindo o plano de infância do grupo de encontrar o dinheiro do resgate. Já na série Prison Break, o personagem Charles Westmoreland revela a Michael Scofield ser o próprio D.B. Cooper, levando o protagonista ao encontro do dinheiro do resgate.
Nos estados Oregon, Nevada e Washington, a lenda de D.B. Cooper tornou-se parte do imaginário popular, dando nome e temática a vários elementos culturais, de pubs a times de baseball. Artistas de rua se vestem como ele em Seattle, além de ter sido, junto com Bonnie e Clyde, o único fora-da-lei da história americana a ganhar um musical na Broadway. A “Dan Cooper Memorial Institute and Museum”, uma respeitada organização de estudiosos e entusiastas do caso, estima que há mais de duzentas mil referências ao sequestro e fuga na cultura americana. Uma pra cada dólar do resgate.
Mas, talvez, o grande fascínio sobre a incrível história de D.B. Cooper que Loki homenageia venha do ato em si. De pensar que um único homem conseguiu por em prática o que os jornais da época chamaram de “o plano mais ousado do mundo”. De buscar, no salto em meio ao nada de um avião em pleno ar, a metáfora perfeita para o desejo humano de mergulhar no desconhecido em busca de seus objetivos. Ou, talvez, da intrigante conjectura que é postular que, se Cooper nunca foi pego, ele pode ser qualquer um: seu vizinho, seu colega de trabalho, o estranho que conversou com você no bar, o professor do seu filho, seu ator favorito. Qualquer um.
Até mesmo o Deus da Trapaça.
por Ramon Vieira Gomes. Twitter: @ORamonGomes