Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis precisa enfrentar expectativas que estão acima do normal. Sem o lançamento simultâneo no Disney+, o longa é tratado por alguns executivos da empresa como um termômetro para medir a empolgação do público em retornar aos cinemas após tanto tempo. Um pensamento extremamente equivocado, é preciso frisar. Por outro lado, é o primeiro filme da Marvel lançado após o início das loucuras do Multiverso. Logo, os fãs anseiam por conexões profundas e pistas sobre o futuro do MCU. E ainda tem o peso da representação asiática, que cobra uma quebra de estereótipos sociais e raciais . Com tanto para lidar, é normal imaginar que Shang-Chi se abale diante dessa pressão. Felizmente, o projeto passa por tudo isso da melhor maneira possível.
A trama acompanha Shaun/Shang-Chi (Simu Liu), que leva uma vida tranquila em São Francisco. Ao lado de sua melhor amiga Katy (Awkwafina), ele manobra carros e canta em karaokês durante a noite. Tudo muda quando ele é atacado por membros da seita Os Dez Anéis, grupo milenar comandado por seu pai Wenwu (Tony Leung). Agora, ele precisa enfrentar questões familiares e pessoais para salvar o mundo. Embora siga o manual do MCU, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis encontra espaço para trabalhar o drama e o lado mais humano de seus personagens. Aspectos muitas vezes ignorados em outros componentes desse universo. Mais do que um épico de ação e aventura, é um singelo estudo sobre os efeitos negativos de uma dinâmica familiar pautada no ressentimento e vingança.
A direção de Destin Daniel Cretton encontra o equilíbrio necessário entre a emoção e a diversão. As cenas de luta que envolvem Shang-Chi, seu pai e sua irmã Xialing (Meng’er Zhang) são de longe as melhores do MCU. A ação frenética de cortes rápidos como vimos em Capitão América: O Soldado Invernal dá espaço para coreografias bem trabalhadas, com planos abertos que dão ao espectador a perfeita noção de espaço das cenas. Com diversas referências ao cinema chinês, os combates fluem entre o realismo de brigas urbanas e o misticismo característico do personagem. Essa dualidade de estilos e filosofias, herdados de seus pais, é o que permeia a jornada de Shang-Chi e como ele irá enfrentar seus medos e culpas. Aliás, a transição do comum para o fantástico é feita de maneira natural, embora cobre um preço no último ato.
Como um filme de origem, é de se esperar que o personagem principal tenha mais destaque e um melhor desenvolvimento. E Simu Liu convence com seu carisma e fisicalidade, demonstrando potencial como uma nova estrela de ação. No entanto, todo o destaque vai para Tony Leung. Um dos maiores atores chineses dos últimos anos, ele entrega um dos melhores vilões do MCU até o momento. Sua ameaça é sentida além dos poderes dos famosos anéis, com uma presença que ofusca todos em tela. Seus trejeitos carregam malícia e amargura, com uma composição dramática que concede profundidade aos seus atos ao longo do filme. Já Awkwafina comanda o humor tradicional das produções da Marvel, dando um toque de leveza entre os momentos de tensão.
Porém, o roteiro de Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é inconstante. Por se tratar de um rosto novo para o público, diálogos expositivos são utilizados para situar o espectador nesse ambiente nunca antes explorado. O terceiro ato é marcado por uma gigantesca batalha de CGI de qualidade duvidosa, que retira um pouco da emoção de alguns conflitos entre determinados personagens. Algumas situações também são facilitadas para que o protagonista consiga avançar na trama e o núcleo de personagens secundários peca pela falta de aprofundamento.
Apesar dos deslizes, Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis é um sólido filme de origem, explorando de maneira acertada o drama e os momentos de ação. Pode não ser o melhor trabalho da Marvel, mas deixa claro que é possível abordar novas possibilidades dentro desse universo tão intricado. Diferente do que pensam alguns executivos, isso não é um mero experimento. Mas um sinal de que adaptações de quadrinhos ainda não perderam o fôlego. Quer você goste disso ou não.