Uma ameaça para a raça humana, cientistas explicando o óbvio, negacionistas ignorando a realidade, políticos priorizando seus próprios interesses, comentários rasos e fofocas inúteis em redes sociais. Isso parece um resumo dos últimos dois anos de pandemia da Covid-19, mas é a premissa de Não Olhe Para Cima. O novo longa do diretor Adam McKay não custou para fazer sucesso no catálogo da Netflix, sendo o principal assunto dos últimos dias. Apesar das coincidências com a atual situação do mundo, estamos mesmo diante de uma sátira tão genial quanto dizem os comentários?
Quando os astrônomos Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) e Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) descobrem um enorme cometa vindo em direção ao planeta, não perdem tempo em compartilhar a informação com os órgãos responsáveis. O que eles não imaginavam é que algo tão urgente e delicado iria gerar as mais variadas e absurdas reações entre políticos, empresários, veículos de comunicação e a população. A luta pela sobrevivência da humanidade se mostra mais complicada do que o esperado. O cinema de Adam McKay é marcado por tirar sarro de nichos da sociedade. A Grande Aposta (2015) abordava a elite financeira norte-americana, já Vice (2018) ataca a elite política. Ambos os filmes carregam o DNA do diretor, com edições frenéticas, diálogos rápidos e técnicos e uma dose generosa de acidez.
Não Olhe Para Cima vai por um caminho generalista, tirando o foco de pequenos grupos e abordando os mais variados segmentos da sociedade. É como um Idiocracia (2006) com elenco estrelado e investimento milionário, mas não tão engraçado. Para que sua crítica social alcance o maior número de pessoas, ele esvazia seus comentários de profundidade e investe no óbvio. Na era dos finais explicados de filme e séries, isso é extremamente eficiente. O que aprendemos nos últimos anos é que alguém precisa apontar o que está diante dos nossos olhos para que a mensagem tenha efeito. E o diretor consegue incorporar com louvor a superficialidade atual na maneira como conduz o longa. Optar pela perspicácia e comentários técnicos deixaria tudo mais engessado. Esse é o principal trunfo do filme.
Não Olhe Para Cima é mais próximo de outra grande obra de McKay: O Âncora. Os detalhes que citei no parágrafo anterior facilitam uma identificação mundial do problema. Por isso os brasileiros se sentiram tão acolhidos pelos exageros do longa. Afinal de contas, vivemos numa realidade semelhante enquanto o país é governado por Bolsonaro. Algo que a pandemia agravou bastante. Com todos no mesmo barco, o trabalho do roteiro é facilitado. Meryl Streep é a versão feminina de Donald Trump/Bolsonaro, Jonah Hill representa a família problemática dos chefes de estado. Mark Rylance é o bilionário da tecnologia desconectado da realidade, Cate Blanchett e Tyler Perry são a mídia e até Ariana Grande surge como uma celebridade vazia.
Apesar da boa execução da premissa, a produção derrapa em outros aspectos. O primeiro deles é a longa duração. Com todo o plot abordado nos 30 minutos iniciais, existe uma repetição de situações e comentários que cria uma barriga até o desfecho (que é realmente muito bom). Talvez McKay tenha convencido a Netflix de que tudo no seu texto era essencial e precisava estar presente no corte final. Mas a verdade é bem diferente. O filme vai se esvaziando de significado e flerta perigosamente com a monotonia. Apesar de recuperar o fôlego no último terço. Uma enxugada no roteiro beneficiaria até mesmo a comédia, que é o segundo deslize.
Não que o filme seja carente de humor, longe disso. Mas uma sátira desse nível não pode ser tão superficial. Um elenco com mais comediantes entregaria as doses perfeitas de improvisações e maneirismos característicos do gênero. Por exemplo, Jonah Hill não é o melhor ator aqui, mas supera seus companheiros de cena justamente por sua raiz cômica. A exceção é DiCaprio, que é um ator tão incrível, que diverte como um homem comum e bem intencionado que acaba engolido pelo sistema. Ainda falando sobre atuações, Jennifer Lawrence também se destaca.
Não Olhe Para Cima é uma boa mistura de sátira e crítica social, que ganha força justamente por tudo que aconteceu ao redor do mundo nos últimos anos. Longe de ser algo extremamente genial, é até contido demais na hora de tocar em certas feridas. Se analisarmos com frieza, é o sistema tirando sarro do próprio sistema e lucrando com isso. Mas vale ser assistido justamente por nos mostrar algo que já era óbvio: a humanidade deu errado faz tempo.