Existe uma necessidade que move o ser humano desde o início dos tempos: perpetuar nossa existência. Por isso pintamos em paredes de cavernas e vasos, desenvolvemos a escrita e os meios necessários para divulgá-la e, especialmente, concebemos os herdeiros de nossos genes. Tudo para que o conhecimento e vivências adquiridos ao longa de toda a vida não se percam quando o inevitável fim chegar. A consciência de nossa finitude é um sussurro inquietante ao pé do ouvido. Mas, como seria um mundo onde a ciência venceu a morte (pelo menos até certo ponto)? Como isso nos afetaria? Religião e conceitos como a alma seriam perdidos? Essas são algumas das questões abordadas em Altered Carbon, grande aposta da Netflix para o início de 2018.
Baseada no primeiro livro da trilogia escrita por Richard K. Morgan, a trama é ambientada num futuro distante onde a humanidade é capaz de transferir suas memórias e consciência para um chip conhecido como Stack. Desse modo, caso alguém morra, é possível recolocar o chip em outro corpo, chamado de Capa. Claro que o sistema é extremamente desigual, com os ricos trocando de Capas ao seu bel-prazer e os pobres reféns das migalhas do governo. Nesse cenário, acompanhamos Takeshi Kovacs (Joel Kinnaman de House of Cards) um soldado do passado que lutou pela liberdade dos mais fracos e acabou sendo morto. Porém, seu Stack é ativado depois de séculos para que desvende o assassinato de Laurens Bancroft (James Purefoy de The Following), um dos homens mais ricos do mundo.
Nos 10 episódios liberados pela Netflix, em nenhum momento Altered Carbon esconde suas inspirações. A ambientação cyberpunk é praticamente um espelho de Blade Runner, passando ainda por obras como Ghost in the Shell. A chuva interminável, a sujeira das ruas, a violência, a melancólica iluminação neon das propagandas, o amontoado de pessoas por metro quadrado, a tecnologia, a depressão e agonia. Tudo está lá. Mas é preciso dar méritos para o escritor Richard K. Morgan, que não deixa que tais influências sejam mais importantes do que a história a ser contada. Feito igualmente bem executado pela showrunner Laeta Kalogridis (Ilha do Medo). A série possui alma própria, estabelecendo com veemência seu universo e as regras que o regem. Apresentado tudo de forma orgânica para o público que chega até ela sem nenhum conhecimento prévio.
Claro que tudo isso não seria possível sem um trabalho de produção extremamente habilidoso por trás. Investindo pesado na atração, a Netflix construiu um set gigantesco para dar mais naturalidade as tomadas terrenas. Misturando assim efeitos práticos com um CGI de qualidade – pelo menos durante boa parte da temporada – para criar uma das ambientações mais bonitas entre suas obras originais. Algo importante para contar a história, especialmente pelo estilo em que está ancorada.
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A estrutura dos episódios é o outro ponto de destaque. Com um tempo limitado, a série precisa preencher aspectos de seus personagens principais para estabelecer uma conexão com o espectador. Algo muito mais simples de ser realizado através das páginas de um livro. Por isso, por muitas vezes visitamos o passado de Takeshi para compreender suas motivações. O excesso de flashbacks, que poderia quebrar o ritmo da trama, ganha assim uma razão para existir. Mas essa é uma faca de dois gumes. Existem subtramas e reviravoltas que se atropelam na reta final, o que acaba não rendendo o impacto esperado. Personagens em demasia também são outro problema, principalmente aqueles que funcionam como conveniência do roteiro.
A utilização da tecnologia do Stack não é forçada ao ponto de ficar cansativa. Na verdade, muitas das melhores cenas da temporada são oriundas desse artifício. Tanto para ação quanto para o drama. As discussões existencialistas que cercam tal prática surgem com naturalidade e duram o tempo necessário. Boas coreografias de luta, violência gráfica e nudez fazem parte do pacote.
Nas atuações, Joel Kinnaman e Martha Higareda se destacam. Ele vai além do brucutu bom de briga, driblando as limitações para entregar momentos de drama e um humor ácido. Seu personagem é um herói falho, castigado pela crueldade de seus inimigos e cambaleante em suas crenças. Algo que torna Takeshi Kovacs um protagonista de várias camadas. Já Martha, que interpreta Kristin Ortega, funciona como um bom contraponto. Aqui ela entrega uma personagem forte, audaciosa, corajosa e com um senso de justiça moldado pela dureza de sua realidade. Porém, o roteiro acerta ao não transformá-la em uma máquina sem alma. Não faltam momentos em que as emoções extrapolam, dadas as circunstâncias do problema. A dupla ainda está cercada de bons nomes como o já citado James Purefoy, Renee Elise Goldsberry, Chris Conner e Ato Essandoh.
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Altered Carbon é a grande série blockbuster da Netflix para o início de 2018, mostrando novamente todo o poder da gigante do streaming. Além de abrir caminho para uma promissora franquia. Quanto mais cyberpunk de qualidade, melhor. Todos os episódios da primeira temporada estarão disponíveis no dia 2 de Fevereiro.