Tomo X – Sereia: Escrita Parte II – Compondo palavras & frases

Sereias são belas, não é mesmo? Ou será que não? Além disso, como conseguem enlouquecer marinheiros com seu canto? E o que essas fascinantes criaturas tem a ver com a parte final da escrita de um manuscrito? Tudo isso e muito mais será discutido na coluna desse mês com Enéias Tavares e seus convidados. Apenas aconselhamos que tapem seus ouvidos com cera, afinal… nunca se sabe!

Há muitos milênios, em suas viagens para retornar à Ilha de Ítaca, o rei grego Odisseu – o mesmo da guerra de Troia, do Cavalo de Madeira e do poema de Homero –, ordenou aos seus marinheiros que tomassem cuidado, pois estariam prestes a passear pela Ilha das Sereias. O conselho não era em vão, pois aquelas monstruosidades com forma de harpias levavam muitos navegadores à loucura com seu canto belíssimo, fazendo com que muitos deles se jogassem no mar e perdessem suas vidas.

Odisseu, conhecido por sua inteligência e sagacidade – afinal foi ele um dos responsáveis pelo “presente de grego” que arruinou a cidade troiana – propôs um plano perfeito: Tampar os ouvidos de todos os marinheiros com cera para não ouvirem os terríveis monstros. Apenas ele não faria isso! Por quê? Ora, porque Odisseu é um herói e heróis precisam tanto se distinguir da maioria como também colecionar histórias de bravura e grandes descobertas.

Que ele satisfizesse sua curiosidade era até compreensível. Mas como faria para não enlouquecer no percurso? Como parte de sua curiosidade estava tanto em saber como era o canto como também qual seria o seu efeito, sua ordem foi apenas a de que o prendessem no mastro do seu barco para que ele não se jogasse no mar. Passado os efeitos, ele teria mais uma história para contar. Esperto esse Odisseu, não? Mas mais inteligente ainda foram os criadores desse mito, que conseguiram reunir encanto, monstruosidade, música e loucura na mesma história!

Sereias no Mar Profundo, por Rob Shields

A música é uma das artes mais poderosas quando o objetivo é comover nosso espírito e também nosso corpo. Uma prova disso é a quantidade de vezes que nos arrepiamos – literalmente! – quando lemos um livro, vemos um quadro ou escutamos a uma canção. O efeito é inconfundível. Em O Nascimento da Tragédia, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche chamou a música de “Arte Não Alegórica” – no sentido de que ela não necessitaria de nenhuma tradução, como poesia e pintura precisam – uma vez que ela comunica diretamente com nossos sentidos corpóreos.

Para muitos estudiosos de Magia, essa relação entre a palavra e som, e seus poderosos efeitos sobre os ouvintes, é muito importante. A figura dos primeiros magos, oráculos ou xamãs, por exemplo, estava associada diretamente a formulações sonoras que eram recitadas ou cantadas, e cujos efeitos alteravam a percepção de seus ouvintes.  Até hoje palavras estranhas e sonoras – como Abracadabra! – são usadas, de forma séria ou jocosa, para dar conta dessa relação entre magia, poesia e profecia. Não é à toa que as duas últimas palavras são tão parecidas. Em algum momento, a produção de um mago era tanto profecia quanto magia, tanto encanto quanto poesia, e o que unia essas instâncias era… a sonoridade! Outros dois autores que fazem essa relação é Octávio Paz – no excelente O Arco e a Lira – e o escritor e performer Alan Moore. Há um capítulo inteiro sobre esse tema em O Mago das Histórias.

Tragédia, Música, Palavra e Magia em Três Livros Essenciais.

“Errr… Cara, não me leva a mal, eu estou adorando esse Curso Intenso de Magia e Poesia da Universidade Miskatonic, mas o que eu quero saber mesmo é de escrever minha história de forma correta para ganhar um editor e depois milhões de leitores”, você pode reclamar. E minha resposta é: “Sim, eu sei disso. Mas o ponto é: Esses temas têm mais em comum do que você pode imaginar!”

Muitas vezes, o que faz editores – ou um futuro leitor ou leitora – fecharem um livro e perderem o interesse por sua história é justamente o fato de a história não ser comovente, instigante ou “encantadora”. E esses efeitos mantém relação direta com o fato de ela estar ou não bem escrita. Mas o que é estar “bem escrito”? Fazer um texto que impressione pelo vocabulário magnânimo e incomparável? Ou então criar frases tortuosas e inebriantes como as dos clássicos para mostrar que você é o cara da estilística? Não e não. O que define se um texto é bem escrito ou não é a sua fluidez, seu ritmo. Ou, em outros termos, sua sonoridade!

Na coluna deste mês, darei grande ênfase a este elemento da escrita de ficção e tratarei dele ao discutirmos as versões III e IV do nosso manuscrito. Mas e quanto às versões I e II? Tratamos delas na última coluna, onde discutimos a escrita do enredo e sua primeira revisão. O título da coluna deste mês é “Escrita Parte II” por que ela continua tanto em debate quanto em exercícios o que fizemos anteriormente. Então, se você quer lembrar da discussão que propomos ali ou então lê-la pela primeira vez, é só clicar aqui.

A Terceira Versão do Manuscrito: As Vozes na Sua Cabeça!

Uma boa forma de atacarmos o problema da sonoridade é a discussão sobre as vozes narrativas. Aqui eu insisto em tratar do termo no plural, uma vez que é comum que jovens autores e autoras estejam em busca de sua “própria voz”. Neste contexto, usa-se “voz” no sentido de “estilo”, dando a ideia de que uma vez encontrada essa “voz” ou “estilo identificador”, se vá repeti-lo a exaustão. Neste caso ele se tornaria um carimbo ou assinatura, uma marca imediata de reconhecimento. Eu não falarei do estilo aqui e sim na próxima seção, mas mesmo neste caso, eu realmente não tenho certeza se devemos falar de “voz” e “estilo” no singular. Isso porque muitas vezes essa “voz particular” e “específica” será diferente em cada projeto.

Sim, cada romance, conto, novela ou poema, possui uma voz diferente, que pode tanto aludir ao modo narrativo – uma trama de horror soa diferente de uma trama de ficção científica que soa diferente de uma história romântica – como à própria trama, com suas características específicas. Uma história que se passa no inverno será bem diferente de outra que se passa no verão, uma vez que as rotinas, comportamentos e vestimentas das personagens serão alterados, quando não seus próprios humores. Outro exemplo disso é a escolha estrutural básica que todos nós fazemos no início de cada projeto quanto a se usaremos um narrador em primeira ou em terceira pessoa. Ora, essa simples escolha mudará completamente a voz que se dará a uma história.

Para recorrermos à nossa convidada da semana: Algumas sereias serão mais atraentes e visualmente mais desejáveis, especialmente em sua configuração moderna, em que há uma convenção de que as sereias são visualmente belas. Já outras…

Sereias Mais Assustadoras que Atraentes, por Diana Franco Campos

Nos tempos de Homero, por exemplo, elas eram monstruosas e assustadoras, cabendo apenas ao som ser agradável e atraente. Mas você não quer ser uma máquina de produção que sempre produz sereias iguais, não é mesmo? Arte e Ficção não é Fábrica de Autômatos e sim um laboratório alquímico no qual criaturas, seres e monstros serão concebidos em toda a sua grandeza e estranheza, cada um diferente do outro.

Indo além dessas primeiras escolhas, podemos dizer que cada projeto literário apresentará desafios diferentes, com aprendizados diferentes. Por mais que cada autor tenha uma predileção pela narrativa em primeira ou terceira pessoa, é bom tentar as duas abordagens, mesmo que se fracasse miseravelmente em uma delas. É a aventura da escrita que estamos buscando, e nela, seguir o mapa é tão importante quanto desrespeitá-lo de vez em quando.

Carol Chiovatto, por exemplo, autora do conto finalista prêmio Hydra, A Última Feiticeira de Florença, e tradutora de Os Jardins da Lua, de Steven Erikson (Arqueiro), passa um bom tempo de seu trabalho buscando o “registro certo para a voz do narrador e de cada personagem, às vezes reescrevendo o começo até julgar ter encontrado a maneira adequada. Se uma personagem não me convence, eu costumo mudá-la completamente nos modos de falar e de agir e, se não der certo, eu abandono o livro durante um tempo até estar distanciada o suficiente para conseguir editar e reescrever até alcançar o efeito desejado.”

Carol Chiovatto, Cirilo Lemos e Ana Lúcia Merege

Cirilo Lemos, autor de E de Extermínio (Editora Draco), tem um processo semelhante: “Experimento algumas formas de contar a história antes de mergulhar no trabalho. Acho que cada história pede uma voz específica, e muitas vezes a gente não encontra com facilidade a tal voz. Melhor terceira pessoa? Primeira? Tempo presente? Pretérito? A partir dessas escolhas, a forma pode ir se desenhando, se ajustando. Às vezes a história precisa ter seu próprio tempo de maturação, e então ela própria vai te dizer qual é seu formato apropriado. É como chocar um ovo, e aí voltamos ao começo.”

Para Ana Lúcia Merege, a autora da fantasia épica Athelgard (Editora Draco), a escolha do narrador – ou da voz narrativa – modifica todo o restante do trabalho: “Não posso dizer que valorizo mais a forma que o conteúdo, mas acho melhor uma história simples muito bem contada do que uma ideia sensacional e inovadora contada de forma truncada e com linguagem pobre, ou, pelo contrário, com prosa pesada e ritmo cansativo. O que importa muito para mim, no começo, é saber de quem é o ponto de vista de uma história e para quem a estou contando. O narrador ou o personagem que se acompanha tem de ser coerente e tem que criar um senso de identificação com o leitor.”

Para facilitar a nossa compreensão, vamos identificar abaixo no mínimo três vozes que envolvem a criação de um livro e a aura ao redor dele enquanto objeto estético.

  • Voz do Autor: É a voz individual e rapidamente reconhecível de um determinado autor ou autora. Encontramos essa voz em cartas, entrevistas, palestras e conversas pessoais. Não raro, há um grande distanciamento entre o modo como alguém fala – que tende a não mudar muito no decorrer do tempo – e o modo como escreve. Há autores, por exemplo, cujos livros são completamente diferentes depois de anos ou décadas.
  • Voz do Narrador: Aqui, o problema começa, pois trata-se de uma voz artificial – no sentido de artifício mesmo, de construto artístico – criada para um determinado projeto, livro ou série. Este narrador pode ser em primeira pessoa, protagonista ou coadjuvante testemunha, ou em terceira pessoa, onisciente – cada dia mais raro – ou focalizador, quando o narrador em terceira pessoa tem a limitação de apenas mostrar o que um determinado personagem viu ou presenciou. Vimos essas várias possibilidades e os efeitos delas na hora de criar sua história aqui.
  • Voz dos Personagens: Indiferente da voz escolhida para o narrador, há também as vozes dos personagens, que existirão de acordo com a capacidade do escritor de criar vozes diferentes e críveis. Em uma sala com 4 amigos, nenhum fala como outro e cada um tem suas estruturas frasais e conjuntos lexicais específicos. Por que na literatura seria diferente? Discutimos a criação de personagens complexos e suas vozes no Bestiário V.

Vamos exercitar essas múltiplas vozes, dando vasão ao nosso Distúrbuio de Múltiplas Personalidades? Sim, meus caros, todo escritor ou escritora tem uma!

EXERCÍCIO CRIATIVO 17:

ESCOLHA UMA CENA ESPECÍFICA DA SUA HISTÓRIA E CONTE-A A PARTIR DE TRÊS PERSPECTIVAS, USANDO TRÊS DIFERENTES VOZES: A) A SUA VOZ AUTORAL, DESCREVENDO COM FOI CRIAR, PLANEJAR E ESCREVER ESSA CENA; B) A VOZ DO NARRADOR, VENDO DE FORA O QUE ACABOU DE ACONTECER; E C) A VOZ DO SEU PROTAGONISTA, DESCREVENDO DE FORMA SUBJETIVA AQUELA SUCESSÃO DE EVENTOS. OBS: POR MAIS QUE ESSE EXERCÍCIO SE PAREÇA EM PARTE COM O DE NÚMERO 9, AQUI O OBJETIVO É OUTRO. LÁ, ERA TESTAR OS MELHORES MODOS DE SE COMEÇAR A SUA HISTÓRIA. AQUI, É APRIMORAR SUA CAPACIDADE DE PERCEBER DIFERENTES VOZES E ADEQUÁ-LAS E REVISÁ-LAS PARA SEUS DIFERENTES PROPÓSITOS.

Depois desse exercício, algum autor ou autora tende a protestar: “Isso dá trabalho, não?” Sim, dá. “E isso é realmente necessário? Eu escrevo literatura fantástica, não uma peça shakespeariana!” A resposta à segunda pergunta é também “Sim” e o porquê tem menos a ver com alta e baixa literatura – uma diferenciação ruim que já desconstruímos aqui – e mais com o quanto você deseja que seus leitores continuem lendo seu livro. Sabem os livros que dão sono? A razão de muitas obras se transmutarem em (ótimo) remédio pra insônia é fato dela ser a) mal escrita, b) pouco convincente e c) escrita com um único registro, como se todos, narrador e personagens, falassem do mesmo jeito. E todos esses elementos têm a ver com frases bem construídas e palavras bem escolhidas, algo que discutiremos em 3…2…1…

A Quarta Versão do Manuscrito: Revisando e Melhorando Frases e Palavras

Na minha experiência pessoal, as versões finais de um manuscrito correspondem à quantidade de releitura e reescrita necessários para deixar um texto aprazível ao maior número de leitores. No meu caso, o último parâmetro a ser feito nesse aspecto compreende o som e o ritmo, a musicalidade de um texto. Outros escritores podem achar isso secundário ou desimportante ou mesmo sugerirem outros parâmetros. E novamente, não significa que estão certos ou errados ou que eu esteja certo ou errado. São os seus processos e eu aqui tratarei do meu, ao lado de outros autores para quem a sonoridade do texto também importa.

“Cara, por que você insiste tanto nesse ponto da sonoridade?”  É difícil explicar nossos gostos e predileções porque eles são subjetivos, mas vamos lá. Como leitor, o tipo de narrativa que mais aprecio e mais me prende é aquele que tem ritmo e fluidez, aquele que me faz continuar lendo frases, pulando para o próximo parágrafo e virando páginas. Por outro lado, a narrativa que não aprecio é aquela que empaca. “Tá bom. E o que faz um texto empacar?” Várias coisas:

– Frases longas e pouco claras;

– Fluxo de consciência que não chega a lugar nenhum;

– Repetições de termos ou estruturas, sobretudo em português;

– Clichês, jargões e valorações moralistas;

– Erros gramaticais;

– E um sem fim de vários outros elementos, listados por mim ou por qualquer leitor.

Ninguém escreve uma primeira versão escapando de tudo isso. Ao contrário, é mais do que comum que produzamos uma primeira versão repleta dessas gralhas, equívocos, excessos etc. Daí a importância da revisão do nosso manuscrito nesta quarta etapa e nas seguintes.

“Mas você estava falando de musicalidade. O que isso tem a ver com revisão?” Ora, para se alcançar uma musicalidade adequada, você dificilmente faz isso na primeira versão. Esse é um trabalho de várias e várias reescritas do seu manuscrito, no qual você está de fato interessado em melhorar a superfície do texto, polindo-o, aprimorando-o, tornando mais conciso ou mais elaborado. Para muitos autores, é um trabalho de cortar. Para outros, de expandir. Cada um encontrará sua forma de fazer isso, como atestam os comentários dos sujeitos abaixo.

Bruno Anselmi Matangrano, crítico, tradutor e autor de Contos para uma Noite Fria (Editora Llyr), diz que, para ele, “as questões de estilo são mais caras do que as de enredo. Uma boa história, mas mal escrita, resulta em um livro ruim. Já uma história fraca, belamente escrita, pode ser capaz de comover. Às vezes o enredo do livro é tão banal que não nos apegamos a ele, nem a seus personagens, no entanto, ainda assim, pode se tornar um livro marcante por determinada passagem, desde que belamente escrita. Admiro muito os escritores que partem dos enredos mais banais e criam histórias belíssimas pela forma como estas são contadas. Mas é claro que um livro que reúne ambas as coisas tem muitas chances de ser excelente. Pessoalmente, gosto de me preocupar com ritmo e sonoridade durante meu processo de escrita, criando motes e repetições propositais de estruturas e sons, no intuito de suscitar uma atmosfera específica.”

Bruno Anselmi Matangrano, Samir Machado de Machado e Amanda Reznor

Sobre a importância da escolha e da revisão de cada palavra, Samir Machado de Machado, autor de Homens Elegantes (Rocco) e do recém lançado Tupinilância (Todavia), menciona: “Nas minhas histórias eu busco equilibrar os dois elementos com o mesmo peso, conteúdo e estilo. Porque o conteúdo é também o estilo, e o estilo molda o conteúdo. A quantidade de palavras que você usa para descrever algo determina a velocidade da leitura, e a velocidade da leitura determina a ação. Cada palavra que você escolhe traz um significado específico que produz uma série de associações na cabeça do leitor, então é preciso um processo cuidado de seleção das palavras, para (tentar) controlar a imagem mental que irá se formar na mente do leitor.”

Amanda Reznor, autora de Delenda (Madras), escreve que, em relação à forma e conteúdo, “os dois andem sempre de mãos dadas. Já li algumas histórias que se propunham a dar ênfase máxima ao conteúdo, como é o caso da trilogia Wake, Fade, Gone, mas isso, ao final, acabou gerando um estilo minimalista, e não exatamente uma ausência de estilo (na verdade, é impossível inexistir um estilo. Mesmo o texto científico ou acadêmico, por exemplo, tem a sua característica, e ela ainda terá vícios estilísticos menores, que fazem parte da escrita de qualquer pessoa). Veja o caso dos clássicos, por exemplo. Muitas pessoas têm aversão ao estilo de José de Alencar, bastante rebuscado; mas quando suas histórias foram adaptadas em forma de novela televisiva, por exemplo, a aceitação do público foi maior. Isso porque o conteúdo manteve-se quando foi alterado o estilo. Um conteúdo pode até ser defasado por um estilo ruim, mas não há estilo que salve uma história sem conteúdo!”

Como vimos, as opiniões e formas de ver a questão do estilo variam, e muito. Uma boa sugestão para começarmos a discutir esse problema é separar a linguagem falada da escrita. Quem aqui nunca se meteu em alguma confusão ao conversar com alguém num chat ou Messenger, por exemplo, com você dizendo uma coisa e a outra pessoa, ofendidíssima, entendendo outra? Ora, na linguagem escrita, temos o ritmo, a inflexão, o olhar, as pausas e o tom de voz amigável, mesmo quando o assunto é sério.

Na escrita, o que temos são letras, acentos, travessões, exclamações e outros sinais gráficos. É por isso que programas que transformam voz em texto não dão muito certo – ou resultam em textos chatos e entediantes. A linguagem falada é menos rica, menos sutil, menos elaborada. Daí vem um erro crasso de se confundir voz literária com voz autoral. Como vimos acima, não é a mesma coisa.

“Adorei toda essa discussão, mas por onde exatamente eu começo?” A boa notícia é que se você é um leitor voraz – o que deve ser o caso se você quer ser um escritor, não é mesmo? – você já começou! Todos os livros que leu, quadrinhos que devorou, filmes que assistiu, músicas que cantou – no Karaokê ou no chuveiro –, textos que já escreveu, as pessoas com quem conversou… enfim, tudo isso já começou a formar seu background para se tornar um escritor. Odisseu usou Cera e Corda e a ajuda dos seus amigos para salvar-se das Sereias e registrar sua narrativa. Use você também o que tem à sua mão.

Odisseu e as Sereias, por Herbert James Draper (1909)

E esse entrecruzamento de diferentes artes é não só positivo como aconselhável. Imagine uma cirurgiã que nunca encostou num corpo, um mecânico que desconhece motores e uma piloto de avião que não compreende bem as principais leis da aviação e… da física! Eis o escritor que não gosta de ler, de consumir outras formas de arte ou que detesta a gramática, um dos mais poderosos grimórios que a humanidade já inventou, pois nos ensina exatamente a como produzir determinados efeitos a partir da combinação de diferentes signos arcanos! (Que alguns chamam de letras, mas deixa pra lá…)

A partir dessa experiência pessoal, há o passo além, que são livros sobre escrita criativa ou escrita de ficção, colunas como essa que você está lendo, cursos, oficinas, workshops e palestras com autores e autoras sobre seu ofício e a velha fórmula conhecida desde que os escribas medievais começaram a trabalhar nos seus próprios bestiários profanos:

BUNDA + CADEIRA +

 PACIÊNCIA + BOAS IDEIAS = 

BONS TEXTOS

Acreditem, essa fórmula não falha nunca! Mas ainda estamos devendo a resposta à questão da musicalidade do texto, não é mesmo? Então vamos a ela, de uma vez por todas: “Pra mim, o texto fluido é aquele que pode ser lido em voz alta sem que o leitor fique sem ar”. Simples assim? Sim, simples assim. Anos trabalhando com poesia para aprender que a razão da métrica existir não é nos encher a paciência e sim ajudar o recitador ou o cantor a não ficar sem ar. Ou seja, a métrica de um verso é construída para que, no final dele, possamos fazer algo básico e necessário à nossa própria sobrevivência: respirar!

Bons textos, no seu uso adequado de pontos finais e vírgulas nos dão isso: tempo para respirar. Por razões estranhas, nossa mente entende isso até quando lemos em voz baixa, que é a experiência de leitura da grande maioria. Em outros termos: Se o texto é bom de ser lido em voz alta, provavelmente ele será mais fluido, mais leve, mais agradável e mais fácil de ser lido em voz baixa. Para isso, cinco regrinhas bem simples que podem ajudar na hora da revisão:

  • Concentre-se em frases curtas. Quando não for o caso, certifique-se de usar vírgulas nos lugares certos para dar esse tempo de respiração.
  • Opte por palavras curtas e sonoras. Esse é um desafio para o português, língua que possui uma grande quantidade de palavras trissílabas e polissílabas.
  • Use e abuse das Elisões. Eis aqui um macete de poesia que ajuda muito na prosa. Usar palavras que começam com vogais logo depois de palavras que terminam com vogais faz um bem danado à leitura. Afinal, é mais fácil a escrita agora e urgente do que digitar sem folga e contra o tempo. Se você não pegou o ponto, leia em voz alta as duas porções em negrito. Você entenderá.
  • Corte repetições excessivas. Numa língua como o português, cuja musicalidade é bem marcante no ouvido – temos encontros consonantais medonhos, por exemplo – a repetição de palavras desconcentra o leitor. Então, varie o seu vocabulário, até para mostrar ao seu público que sua bagagem vocabular não é pouca. Algo que ajuda nesse sentido é a busca por
  • Campos Semânticos. Aos alunos de Letras será reconhecível o ramo da linguística que mapeia grupos de palavras pertencentes a um mesmo assunto. Então, se há guerra em sua história (para citarmos apenas um exemplo), pesquise e liste todos os campos semânticos relacionados a armas, transporte, indumentária, jargões, classes de comando e estratégias de batalha.

Com isso, vamos ao último exercício de hoje:

EXERCÍCIO CRIATIVO 18:

PEGUE AS TRÊS VOZES QUE VOCÊ PRODUZIU NO EXERCÍCIO ANTERIOR E AS REESCREVA/REVISE ATENTANDO ÀS CINCO REGRAS QUE DISCUTIMOS ACIMA: FRASES CURTAS, PALAVRAS CURTAS, USO DE ELISÕES, CORTE DE REPETIÇÕES E VARIAÇÃO LEXICAL. DEPOIS DISSO, PEGUE AS DUAS VERSÕES DE CADA VOZ E LEIA-AS EM VOZ ALTA, ESTUDANDO SE HOUVE OU NÃO ALTERAÇÃO NO RITMO E NA FLUÊNCIA DA SUA LEITURA E DO SEU TEXTO.

Prontos para o Grand Finale da nossa coluna deste mês?

Conclusão: Livros sobre Escrita & Atraentes… Sereios!

Por fim, o último conselho que daria a qualquer escritor é nunca esquecer o prazer da leitura. Lembrem: Excelentes escritores são, antes de tudo, leitores constantes. Há autores que sempre começam uma sessão de escrita, por exemplo, lendo uma ou duas páginas de seus livros preferidos. E essa dica é tão antiga quanto… Aristóteles! Na sua Poética, o filósofo já dizia que arte é imitação. E não, isso não tem a ver com plágio e sim com aprendizado mesmo.

Aprendemos a falar e a aprimorar nossa fala ouvindo nossos pais, professores, amigos e colegas. O mesmo ocorre com a escrita: Ler outros autores é aprender novas metáforas, novas formas de estruturar frases, caminhos diversos de produzir determinados efeitos. Stephen Koch, no sempre recomendado Oficina de Escritores (WMF), chama nossos autores e obras favoritos de “estimuladores”: o conjunto de referências que temos e que, pouco a pouco, formam nosso modo de ver, pensar e nos comunicar. Outra sugestão é o livro Para Ler como Escritores (ZAHAR), de Francine Prose, para ficarmos em apenas dois títulos que deixam clara a importância de se ler e estudar outros autores e autoras.

Indicações sobre Escrita Criativa e Vozes Literárias

E aqui vai um adendo para os fãs de literatura estrangeira. Obviamente, não há problema algum em consumir mais literatura estrangeira do que nacional. Mas não se enganem: É muito difícil que os principais aspectos estilísticos de seus escritores favoritos se mantenham em tradução. O que estou dizendo é: Se você quer ser um grande escritor em língua inglesa, leia os autores que escrevem em língua inglesa no original. Agora, se você quer ser um grande escritor em língua portuguesa… leia obras escritas originalmente em língua portuguesa! E por que não começar com os clássicos, com os autores e autoras que desafiaram a nossa língua aos seus limites?  

“Ah, mas o problema é que literatura brasileira é chata”, diz você. Será? Será mesmo? Faço essa pergunta porque eu mesmo tinha problemas com a literatura brasileira quando saí da escola. Foi apenas anos depois que autores como Machado de Assis, Álvares de Azevedo, Clarice Lispector e Guimarães Rosa, me encantaram. E não só isso, foram eles que me ajudaram a escrever minha primeira obra. “Você os plagiou?” Não. “Você os imitou?” Sim. E muito. Tanto em nomes e situações como em formulações discursivas. Aos que quiserem saber sobre isso e sobre o problema da composição de vozes literárias, indico um ensaio que escrevi para a Revista de Escrita Criativa da PUCRS, a Scriptorium, disponível aqui.

“Mas cara, na boa, não gosto mesmo de clássicos. Como faço?” Neste caso, sugiro que busquem autores contemporâneos fantásticos que tem demonstrado um grande cuidado com a forma em suas obras. Para citar alguns deles, Felipe Castilho, Bárbara Moraes, Eric Novello, Aline Valek, Samir Machado de Machado, Andrio Santos, Leonel Caldela e Max Mallmann, entre vários outros, alguns deles já entrevistados em nossa coluna. Em resumo, não há desculpas para não colocar o pé em uma livraria ou biblioteca e caçar suas próprias referências.  Ou em outros termos, para não se deixar encantar pelo canto dessas sereias literárias… ou sereios!

Sereio em Momento de Lazer, por Jéssica Lang

Na coluna deste mês, não economizamos esforços em aproximar a arte literária da preocupação com o ritmo, com a sonoridade e a música. Mas também deixamos claro que cada um tem seu estilo, sua voz, seu modo de ser e vivenciar arte e o mundo. Para comunicar essas variantes, nossa especialista em feras singulares e monstros extra, intra e sobre naturais, Jessica Lang, nos brindou com este modernoso e estiloso sereio. Quem disse que apenas seres marítimos femininos podem ser hipnóticos e atraentes?

Agora, vamos deixá-lo com sua leitura e privacidade e tratar da nossa vida. Por aqui, muito trabalho para preparar a reta final da nossa coluna. Vejo vocês no próximo mês – na penúltima entrada do nosso Bestiário Criativo – quando discutiremos manuscritos, submissões e possibilidades para publicação. Boas histórias & boas canções!

Enéias Tavares, o autor desta coluna, é o criador de Brasiliana Steampunk (Editora LeYa) e coautor de Guanabara Real (Editora Avec), duas séries ambientadas em um Brasil retrofuturista. É um dos coordenadores do projeto Bestiário Criativo na UFSM, onde ensina Literatura Clássica. Nas poucas horas vagas, escreve, caminha e pesquisa a História da Literatura Fantástica no Brasil, junto de Bruno Anselmi Matangrano, para o projeto Fantástico Brasileiro. A artista responsável pelo belo sereio deste mês e por outras criaturas deste bestiário é Jéssica Lang, designer, ilustradora e uma das criadoras da webcomic Metalmancer, ao lado de Andrio Santos.