Tomo VIII – Vampiro: Viajando & Sobrevivendo no tempo narrativo

Vampiros monstruosos ou vampiros charmosos? Imortais pálidos e distantes ou juvenis e apaixonados? Qual o seu tipo favorito de vampiro, indiferente de sua nada simpática predileção por sangue humano e seu horror a banho de sol? No primeiro Bestiário Criativo de 2018, Enéias Tavares recebe vários autores para tratar da importância do tempo para a criação literária!

Vampiros sobrevivem aos efeitos do tempo, podendo ter duzentos anos com aparência de vinte ou então dois mil com a carinha de dezoito! Em termos estéticos, esse é um dos maiores apelos dessas charmosas e fascinantes criaturas. Mas não só isso. Vivemos encerrados num invólucro mortal com prazo de validade definido e sofremos os efeitos diários dessa realidade. Religiões são criadas para amenizar essa angústia com paliativos ficcionais, enquanto clínicas plásticas alteram corpos, pele e traços, na tentativa de fazer – não raro com questionáveis resultados – o tempo retornar.

Vampiros, diferentes de nós, estão de boa com o problema da finitude. Eles têm todo o tempo do mundo, o que lhes permite amar, sofrer, viajar, horrorizar e aproveitar tudo o que este planeta e seus moradores – ou a essência deles! – tem a oferecer. Mas como qualquer outro ser, eles também se entediam. Os vampiros de Anne Rice ou as duplas de imortais de Only Lovers Left Alive e de Byzantium – filmes de Jim Jarmusch e Neil Jordam altamente indicados – que o digam. Termos todo o tempo do mundo nos obriga a pensar o que fazer com ele, por mais que muitas vezes… não façamos ideia!

No passado, lendas detalhavam monstruosas criaturas vampíricas! – Arte de Rafael Rivera

Assim como suas longas existências, a origem dos vampiros remete a um passado distante. Ela pode ser encontrada ainda no medievo, com as lendas que alertavam crianças e adultos dos Vrykolakas – bestas selvagens que bebiam sangue e que foram amaldiçoadas por algum sacrilégio. O termo, em dialetos eslavo, romeno, lituano e grego, manteria relação com lobisomens, pois literalmente ele quer dizer “Pele” ou “Pelo de Lobo”. A modernidade ocidental popular – e depois literária – produziu releituras incomuns desses monstros, ora associando o nascimento dos vampiros a lendas hebraicas – apesar dessa versão ter apenas surgido no século XVIII – envolvendo Lilith, a primeira esposa de Adão, ou então a Íncubos e Súcubos, criaturas que nascem do intercurso sexual de um homem ou de uma mulher com um demônio. O rei inglês James I, para quem Shakespeare escreveu Macbeth e Tempestade, no seu tratado sobre demonologia, fala desses rebentos como ladrões da essência ou da energia dos vivos.

A partir de então, há um longo percurso de assimilação e alteração da lenda dessas criaturas monstruosas e demoníacas até chegarmos ao byroniano Ruthwen de O Vampiro, de Polidori, à sedutora Carmilla, de Sheridan Le Fanu, ao nobre decadente Drácula de Bram Stoker e ao purpurinado Edward de Stephenie Meyer, sendo o cinema no século XX um dos grandes responsáveis por essas releituras. Na contemporaneidade, a origem dos vampiros é ora tratada em termos espirituais – no clássico A Rainha dos Condenados, no qual vampiros se originam do demônio Mael, ou em Vampiro A Máscara, de Mark Hagen, onde seu nascimento advém da maldição do Caim bíblico – ou biológicos – como nos contemporâneos Lost Souls, romance de Poppy Z. Brite, e nos vampiros/zumbis de The Strain, livro e série televisiva de Chuck Hogan e Guillermo Del Toro.  

Mas em termos ficcionais e criativos, o que nós, como escritores e escritoras, aprendemos com esses charmosos monstros e seus olhares frios, lábios rubros e presas afiadas? Vampiros nos ajudam a pensar o problema do tempo, e em literatura, pensar no tempo é fundamental. Como veremos, antes de falarmos sobre o tempo da nossa história, precisamos conhecer os principais tipos de temporalidade ficcional que estão a nossa disposição.

Tempo do Personagem, Tempo da Narrativa e Tempo de Leitura

Inicialmente, é importante diferenciarmos três tipos diferentes de marcação temporal. A meu ver, quanto mais ciente o escritor estiver desses diferentes tempos, maior será a chance de sua história ser interessante, instigante e aprazível à leitura. E como verão, quando discutimos esse tópico, passamos gradativamente da discussão sobre enredo/conteúdo para o da forma literária ou mesmo do estilo. A divisão de tempos nos ajudará a perceber como essa diferenciação é valiosa.

  • Tempo do Personagem – Antes de mais nada, precisamos definir a idade e a biografia do nosso herói ou heroína. E não, não vale aquele recurso de “o personagem acordou sem saber quem é”. Falo de fazer ficha de personagem e de saber, pontualmente, o que esse sujeito ou garota fez dos dez anos aos trinta e dois, por exemplo, quando o livro começa. Mas essas informações todas vão parar na versão final do manuscrito? Não, não vão. O que vai parar na história é o:
  • Tempo da Narrativa – Falamos aqui do recorte temporal no qual a sua história se passa: Duas Décadas, Dois anos, Dois Dias, Duas horas! Todo o escritor precisa de saída saber qual é a cronologia da história que vai ser contada e como ele colocará detalhes sobre o passado do personagem naquele registro. Podemos diferenciar o Tempo da Narrativa como o presente da leitura e o Tempo do Personagem como o passado dele, acessado através da memória, de cartas, de fotos, etc. Mas quem vai ler isso? O leitor, logicamente. E este também tem o seu…
  • Tempo de Leitura – Este é o tempo que alguém levará para ler a sua história, o que impactará diretamente o tamanho do livro, o número de capítulos ou palavras, entre outras coisas. Por exemplo, sabemos que se levarmos em torno de dez horas para ler um livro de duzentas páginas – é uma média, ok? – a história contida nele terá um período temporal igual ou superior a essas dez horas, raramente acontecendo o inverso: Um livro que leva dez horas e que conta um período de tempo de apenas três ou quatro.

Isso aí é meio limitador, não? Sim e não. Toda a técnica precisa ser limitadora e somente depois de conhecê-la é que podemos seguir em frente para quebrá-la.  Uma forma de fazer isso é unir esses diferentes tempos em nossa história. Há romances em que a narrativa é Biográfica, ou seja, em que a história é a história do personagem, e isso desde Dickens até – novamente ela – Anne Rice. Há outros desafios que também são interessantes, como você escrever uma Narrativa que dialogue com o Tempo da Leitura. Nisso os trágicos – e autores teatrais no geral – são mestres: o Tempo da Narrativa em Édipo Rei, de Sófocles, é exatamente o Tempo de Leitura, sendo a peça um registro, em tempo real, da descoberta da identidade do protagonista, retornando até seu nascimento.

Com o passar do tempo, eles ficaram mais civilizados… ou não! – Arte de Joy Reactor

Mas e quanto à questão do conteúdo e da forma? Quando falamos do Tempo do Personagem e do Tempo da Narrativa, estamos discutindo a história que queremos contar. Quando atentamos ao tempo da leitura, deslocamos a reflexão para o como faremos isso. Se queremos contar uma história que se passa em algumas horas, sabemos que nosso livro não será muito longo. E se for uma narrativa em tempo real, precisamos nos preocupar em montar para nossos leitores um tipo de progressão narrativa que o mantenha igualmente interessado e curioso quanto ao desenlace dos acontecimentos.

Eu tenho uma obsessão com números de palavras, o que nos leva à outra questão, que é a da sonoridade. Lição de Anatomia (Editora LeYa) tem um pouco mais de 70 mil palavras, resultando em 300 páginas. Quando ele foi transformado em audiolivro pela galera da Tocalivros, isso resultou numa experiência de imersão sonora e musical com mais de doze horas. Esse dado é bem importante, porque ele nos dá uma média de quantas horas um leitor vai levar para ler um livro desse tamanho. Vamos pegar a calculadora?

Se o livro tem 70 mil palavras, e dividirmos esse número pelas 12 horas de sua leitura chegaremos a quase 6 mil palavras lidas por hora. O romance foi planejado em oito partes e essas partes seguem mais ou menos uma divisão igualitária. Ou seja: Em média, um leitor levará duas horas para ler cada parte do romance. Saber que um leitor levará uma hora para ler uma média de 6 mil palavras pode te fazer pensar em capítulos, partes ou até mesmo cenas que brinquem com esse dado. Isso fará o romance ser mais lido ou menos lido? Sinceramente, não sei, mas uma coisa é certa: Estar ciente desses dados ajuda e muito a se pensar e a calcular a estrutura interna do livro.

Audiolivros, além de divertidos, podem ajudar e muito na compreensão do tempo de leitura

“Calcular? Sério?! Pensei que Literatura não tivesse nada a ver com matemática!”, você pode reclamar. Sim, caros, eu também pensava isso! Mas estava errado. Um escritor é um artista e todo artista é, acima de tudo, um estudioso da ferramenta da linguagem. Ora, se um guitarrista ou um pintor passa horas por dia estudando e praticando com suas ferramentas de trabalho, porque na escrita seria diferente? Então sim, calcular, planejar, estudar, cortar, refazer, reestruturar e reescrever são etapas normais do processo de criação literária. A meu ver, esse planejamento começa a ficar interessante quando discutirmos o tempo em nossas histórias. Que tal colocarmos tudo isso em prática?

EXERCÍCIO CRIATIVO 13:
PEGUE O PROJETO DE SUA HISTÓRIA E DEFINA, NUMA FOLHA EM BRANCO, O TEMPO DO PERSONAGEM OU DOS PERSONAGENS, O TEMPO DA NARRATIVA E O TEMPO DA LEITURA. MESMO QUE VOCÊ NÃO TENHA CERTEZA DESSE ÚLTIMO PONTO QUANDO TERMINAR DE ESCREVER, FAÇA UMA PREVISÃO. SE GOSTAR DE CÁLCULOS, PODERÁ FAZER A FÓRMULA INVERSA DO QUE DESCREVI ACIMA: A PARTIR DO NÚMERO DE HORAS DE LEITURA ALMEJADAS QUE VOCÊ DESEJA PARA SEU LIVRO, VOCÊ CHEGARÁ AO NÚMERO MÉDIO DE PALAVRAS QUE ELE DEVE TER. COM ISSO, VOCÊ TEM UMA BELA META DE ESCRITA E UM TERMÔMETRO DO QUANTO ESTÁ PERTO OU LONGE.

Vamos agora conversar com quem já está quebrando a cabeça com esse problema a mais tempo do que eu ou você?

O Tempo dos Autores

Selecionei aqui nove testemunhos – ai, que palavra feia! – quando o assunto é a temporalidade ficcional e a forma como a reflexão sobre esse problema acaba afetando o próprio processo criativo de escritores e escritoras. O primeiro deles é do mestre Roberto de Sousa Causo, um nome muito importante da Ficção Científica Nacional e autor de A Saga do Tajarê e Shiroma, Matadora Ciborgue (Editora Devir), além do primeiro estudo sobre literatura fantástica em nosso país – “Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil: 1875 a 1950” (UFMG). Segundo ele, “apesar de minhas histórias raramente explorarem de forma central a questão do tempo ou da memória, há exceções. Uma delas é o conto Déjà-vu: O Forte (2008), a história de uma mulher com um tumor no cérebro que visita o Forte dos Reis Magos em Natal, e lá tem uma possível experiência de vida passada. Outro caso é Foo Fighters (1997), no qual parte da ação se passa no presente e outra em 1945 durante a II Guerra Mundial na Itália. Em Trem de Consequências (1999), são os traumas da repressão durante o regime militar, que perduram. Voo sobre o Mar da Loucura (1998) é uma noveleta de paradoxo temporal em que a tripulação de um avião de patrulha marítima tenta, numa espécie de loop temporal, evitar um assassinato que eles acabaram de testemunhar. Eu diria que, em muitos aspectos, o tempo e a memória são mais elementos de caracterização dos meus personagens, do que questões substantivas.”

Roberto de Sousa Causo, Ana Lúcia Merege e Christopher Kastensmidt

Ana Lúcia Merege, autora da série Athelgard, composta dos romances O Castelo das Águias, A Ilha dos Ossos, A Fonte Âmbar (Editora Draco), tem muito a dizer sobre o problema do tempo, especialmente pela inventiva mistura de épocas em suas histórias: “Sou mais fascinada pelo passado que pelo presente ou futuro, e um passando longínquo. Como se vivia, artefatos, arquitetura, o fato de a magia, os deuses e o Outro Mundo serem vistos com naturalidade. A mistura de épocas tem rendido coisas interessantes. Athelgard tem base medieval, mas é uma idade Média anacrônica que admite elementos mais antigos, da civilização clássica, e outros do Renascimento e até Iluminismo. Com o conto de Medietelara, que pretendemos ampliar, brincamos com o passado jogando-o num cenário intergaláctico – os ken´ami, povo baseado nos fenícios, são os maiores navegadores; os aquilaces (romanos) são imperialistas e assim vai. Eu gosto de criar histórias dos meus personagens com idades diferentes, é legal ver como eles mudaram e evoluíram, como um garoto revoltado se torna um mestre de Magia chamado de Carrasco, por exemplo. Já na série do Balthazar eu pinto e bordo com o tempo, pois eles viajam desde os tempos minoicos até o século I da Era Cristã, e sempre têm de se adaptar a isso.”

Christopher Kastensmidt, autor da série transmídia A Bandeira do Elefante e da Arara (Devir Editora), investe muito na pesquisa, sobretudo por tratar-se de um tipo de ficção calcada na história do Brasil: “Bom, escrevi um livro ambientado num período histórico, quinhentos anos atrás, com dois protagonistas radicalmente diferentes e um elenco multicultural enorme. É um desafio e tanto. Sou muito CDF, decidi fazer o livro o mais fiel possível ao período histórico (ao mesmo tempo, sendo um período histórico que carece de referências boas). Quero imergir o leitor nesta época, a mesma sensação que tive lendo livros como Xogum, de James Clavell. Para a pesquisa histórica, consultei cerca 200 livros diferentes. Cheguei a até publicar um artigo sobre esta pesquisa, aqui. Existem maneiras bem mais fáceis de ambientar livros em contextos históricos. Guy Gavriel Kay, por exemplo, troca todos os nomes históricos (de lugares, pessoas, etc.) e assim não leva nenhuma responsabilidade em oferecer precisão histórica. No meu caso, deixo tudo como está e, por isso, tenho o dever de pesquisar a época da melhor maneira possível.

Christian David, AZ Cordenonsi e Jana Bianchi

Christian David, autor de O Monge Rei e o Camaleão e O filho do açougueiro (Besouro Box), discute um tema que interessa a muitos entusiastas de literatura fantástica: A Viagem no Tempo. Sobre esse recurso narrativo, aconselha: “Quando a questão é viagem no tempo acredito que existem várias linhas a seguir: linhas de tempo paralelas, uma linha temporal imutável que acaba se ajustando independentemente da ação dos personagens, linhas de tempo altamente mutáveis para grandes ações ou até mesmo para pequenos detalhes modificados durante a trama. Qualquer que seja a escolha do autor o importante é ser coerente e, na dúvida, se apoiar em histórias já consagradas (sugiro que nesse caso alguma pequena inovação seja incluída para marcar a autoria do recurso).”

AZ Cordenonsi, autor de Le Chevalier e A Alcova da Morte, e do recém-lançado Sherlock e os Aventureiros: O Mistério dos Planos Roubados (Editora Avec), dedica horas ao planejamento dos problemas temporais: “Boa parte das minhas histórias trabalha com isso. Quando lemos, estamos vendo apenas um recorte da vida dos nossos personagens. Mas toda a sua história de vida pregressa é algo que vai influenciar sobremaneira o que está acontecendo agora e suas ações no futuro. Quase sempre, tenho a preferência de narrar as minhas histórias dentro de um período curto de tempo – alguns dias ou algumas semanas, no máximo. Logo, isso elimina boa parte das questões sobre o tempo e decisões acerca dele.”

Jana Bianchi, autora de Lobo de Rua (Editora Dame Blanche), gosta de pensar elementos temporais como artefatos disponíveis à escrita: “A probabilidade de ambientar histórias no passado e no futuro me fascina, de maneira igual. Assim como ambientar histórias em passados alternativos, que é um gênero à parte dentro da ficção especulativa. Minhas histórias atuais ou em andamento são ambientadas majoritariamente no presente, mas ainda assim gosto de inserir vislumbres do passado, em épocas notáveis da história brasileira e mundial. Viagem no tempo é um conceito que me agrada, mas acho mais interessante usar só o passado ou um potencial futuro como cenário, muitas vezes um cenário-personagem. Cada época da história do mundo tem elementos exclusivos que podem funcionar muito bem em uma história de ficção, e eu acho demais ter tudo isso à disposição na hora de criar uma história. As opções são virtualmente inesgotáveis.

Thiago Tizzot, Cirilo Lemos e Nikelen Witter

Thiago Tizzot, autor de Três Viajantes e editor da Arte & Letra, destaca a importância do tempo para sua própria construção ficcional: “É um elemento interessantíssimo e que muitas vez é esquecido ou não explorado. Eu gosto muito de trabalhar com recortes dentro da linha do tempo que acabam se entrelaçando, com as ações no passado afetando os acontecimentos do futuro. E isso se faz presente tantos nas minhas narrativas longas quanto curtas. As tramas mais longas tem o desafio de conseguir manter o ritmo, o interesse do leitor ao longo de toda a narrativa. A curta demanda uma habilidade de contar uma boa história em um espaço pequeno.”

Cirilo Lemos, autor de O Alienado e E de Extermínio (Editora Draco), discute esse assunto a partir da sua formação como professor de história: “Ou seja, o fascínio pela forma como nós nos relacionamos com o tempo está bem presente em mim. Ele permeia meu trabalho e também minha literatura. A protagonista da noveleta Nenhuma Babilônia nos dará ordens, uma astronauta mesopotâmica (sim), precisa lidar com os problemas que uma bolha de tempo está causando, e percebe o quanto somos seres cronológicos. O Alienado é uma narrativa não-linear, indo em voltando no tempo, e às vezes sobrepondo acontecimentos contemporâneos. Não conseguir se situar dentro de suas próprias memórias – o que é a memória se não nosso registro eventos no tempo? – gera grande parte dos conflitos pelos quais o protagonista passa. E de Extermínio é uma História Alternativa, ou seja, existem alguns pontos de divergência nesse passado ficcional que fez a linha temporal correr de modo um tanto diferente. Além disso, acompanhamos acontecimentos na vida da família Trovão ao longo de uns doze anos. O tempo é um fator importante para qualquer personagem, e o canal onde suas evoluções e tragédias se desenvolvem. O tempo é a água do aquário, e nós somos os peixinhos, certo?”  

Outra professora de história que adora pensar temporalidade narrativa em suas histórias é Nikelen Witter, criadora de Territórios Invisíveis (Editora Estronho) e de A Alcova da Morte (Editora Avec): “Sou uma historiadora. Desde sempre o tempo foi uma fonte de fascínio. A literatura me permite brincar com esses tempos. Mas, tanto como historiadora quanto como escritora, penso que todo o tempo que temos é o presente. Olhamos para o passado para responder nossas questões de hoje. Imaginamos o futuro como resposta aos nossos anseios e medos atuais. Só há o longo presente e é com isso que lido na minha imaginação. Acho que minhas heroínas e heróis respondem a essa postura e as suas angústias inerentes. Minhas vilãs e vilões são os que estão presos em alguma parte do tempo e não conseguem dialogar com o presente a não ser na tentativa de conduzi-lo. O tempo pede flexibilidade, mesmo que dolorosa. Acho que meus protagonistas respondem a isso, seus antagonistas, não.”

O que percebemos desses vários relatos é que cada escritor vai criando suas próprias formas de se relacionar com o tempo e descobrindo seus efeitos na própria escrita. Para professores de história, por exemplo, a ficção configura uma ótima oportunidade para explorar eventos reais ou imaginários. Para amantes da FC, histórias em realidades alternativas ou paisagens futuristas, utópicas ou distópicas, podem resultar em histórias geniais e, talvez, politicamente relevantes. Mas e quanto aos amantes de alta fantasia ou demiurgos que adoram explorar e criar seus próprios mundos complexos, o tempo continua sendo um elemento importante? Certamente!

O Desafio/Diversão das Linhas do Tempo

A tripartição temporal que apresentamos acima serve para qualquer tipo de história. Agora, se a discussão são linhas temporais, daí há uma diferença importante a fazermos entre estórias calcadas no nosso mundo de histórias que se passam em mundos totalmente imaginários. Na primeira modalidade, você já tem de onde partir: a sua ou a nossa linha temporal, que pode ou não ter sido alterada por um evento importante. Agora, se você trabalha com alta fantasia, daí você terá que começar do zero a linha temporal do seu mundo. Isso dá trabalho, mas a diversão do processo certamente compensará seu esforço. Eduardo Sporh, criador de Os Filhos do Éden (Editora Verus) e George R.R. Martin, nas suas Crônicas de Gelo e Fogo (LeYa Brasil), são bons exemplos de escritores que desenvolveram linhas do tempo bem complexas, o primeiro a partir do nosso mundo e o segundo a partir da sua imaginária Westeros. No caso de Martin, a história do mundo foi adaptada por perfeição no seriado A Guerra dos Tronos e possivelmente irá render outros seriados, todos prequels. Prontos pro exercício 14?

Linhas do Tempo do Universo Expandido de Filhos do Éden e de Game of Thrones

EXERCÍCIO CRIATIVO 14:

INDIFERENTE DE SUA HISTÓRIA PARTIR DO NOSSO MUNDO OU SER AMBIENTADA NUM CENÁRIO INÉDITO DE ALTA FANTASIA, PEGUE UMA FOLHA EM BRANCO, POSICIONE-A EM SENTIDO PAISAGEM E RISQUE UMA LINHA HORIZONTAL DA MARGEM ESQUERDA À DIRETA. AGORA, ESPALHE POR ESSA LINHA DEZ PEQUENOS RISCOS VERTICAIS. A TAREFA É PREENCHER CADA UM DESSES DEZ ITENS COM UM DADO TEMPORAL. O LIMITE É VOCÊ QUE DARÁ, PODENDO SER DEZ ANOS, DEZ DÉCADAS OU DEZ SÉCULOS, CONTANDO A HISTÓRIA DE UM PERSONAGEM, DE UMA CIDADE OU DE UM PLANETA INTEIRO!

Conclusão

Eu adoro vampiros e todas as possibilidades que esses seres imortais e imemoriais oferecem a escritores para novas histórias e novas tramas. E é engraçado perceber, por exemplo, o quanto suas leituras também mudam com o tempo. De seres monstruosos e demoníacos, eles se transformaram em dândis sedutores ou nobres decadentes no século XIX, para então se tornarem heróis existencialistas no caso de Anne Rice ou então em mistérios biológicos e genéticos no caso de Del Toro e Poppy Z Brite. Isso para não falarmos em lusitanos super-heroicos aprisionados em caravelas portuguesas afundadas no sul do Brasil, como André Vianco fez no seu Os Sete (Editora Aleph) há quase vinte anos.

Em outras palavras, não há limites para o que podemos fazer com essas criaturas, assim como não há limites para o que podemos inventar para nossas histórias e narrativas usando o tempo e suas múltiplas camadas: Tempo Linear, Tempo Invertido, Flashbacks, Flashforwards e tantas outras. O limite é você que dará e decidirá.

A misteriosa vampira que se recusa a contar seu passado! – Arte de Jessica Lang

Para encerrar a coluna desse mês, contatei Jessica Lang para ela me falar um pouco mais a respeito da sedutora vampira de cabelos verdes, postura selvagem e predileção por selfies de celular que estrela o nosso Bestiário Criativo deste mês. Lang sorriu e então me confessou: “Eu juro que tentei arrancar a história dela, mas ela não quis me contar. Sabe como é, vampiros são bem preciosistas com seus segredos”. Então, que tal você, escritor ou escritora, contar a história dessa enigmática vampira de fosforescentes cabelos esverdeados e lábios insinuantes e agressivos? Os comentários estão aqui pra isso!

Um beijão, queridos, e nos vemos no próximo mês.

Enéias Tavares, o autor desta coluna, é o criador de Brasiliana Steampunk (Editora LeYa) e coautor de Guanabara Real (Editora Avec), duas séries ambientadas em um Brasil retrofuturista. É um dos coordenadores do projeto Bestiário Criativo na UFSM, onde ensina Literatura Clássica. Nas poucas horas vagas, escreve, caminha e pesquisa a História da Literatura Fantástica no Brasil, junto de Bruno Matangrano, para o projeto Fantástico Brasileiro. A artista responsável pela vampira misteriosa deste mês e por outras criaturas deste bestiário é Jéssica Lang, designer, ilustradora e uma das criadoras da webcomic Metalmancer, ao lado de Andrio Santos.