Cinema de Animação e Documentário
Dentre os vários documentários interessantes exibidos na edição do Animage desse ano estavam: Girls talk about football, de Paola Sorrentino, em que seis garotas dividem suas experiências pessoais como jogadoras de futebol, um esporte predominantemente masculino; o curta queniano Yellow Fever, de Ng’endo Mukii, que explora os efeitos dos ideais de beleza eurocêntricos disseminados pela mídia nas mulheres africanas; Physique de la tristesse, com uma visão menos documental e mais autobiográfica do premiado cineasta Theodore Ushev; Bear with me, de Daphna Awadish, que, por meio de entrevistas com imigrantes, revela dificuldades que enfrentam ao cruzar as fronteiras, representando-os como ursos, assim como o curta de ficção Migrants, dos diretores Hugo Caby, Antoine Dupriez, Aubin Kubiak, Lucas Lermytte e Zoé Devise.
Entre os destaques do Festival estão: Tapajós: Uma Breve História da Transformação de um Rio, de Alan Schvarsberg e Cícero Fragacurta, que ganhou Menção Honrosa e trata sobre a luta de moradores de Miritituba, uma comunidade ribeirinha da Amazônia, para sobreviver frente à exploração econômica da região; Carne, de Camila Kater, considerado o melhor curta brasileiro, que era também minha torcida; e Just a Guy, de Shoko Hara, com uma história que nos leva a lugar inesperado e, não à toa, ganhou o prêmio de Melhor Roteiro.
Por meio desses e outros, disponíveis no Animage, podemos observar as múltiplas possibilidades de abordagens, temas e técnicas. Algo recorrente no documentário animado é o fato de um curta só ser capaz de apresentar essa variedade, como no caso de Carne, no qual, a partir do depoimento de cinco mulheres — Rachel Patrício, Larissa Rahal, Raquel Virgínia, Valquiria Rosa, Helena Ignez —, de idades e de vivências diferentes, assistimos a reflexões sobre a relação delas com o próprio corpo. Apropriando-se da objetificação e do tratamento relegado ao gênero feminino, a narrativa do curta assume a comparação ao dividir-se em cinco partes: Crua, Mal Passada, Ao Ponto, Passada e Bem Passada. Cada ponto da Carne separa um depoimento e uma técnica de animação diferente, demonstrando um cuidado na escolha da melhor forma de transmitir as sensações que o relato nos transmite.
Já o filme de Shoko Hara fala sobre Richard Ramirez, um serial killer que, embora tivesse cometido crimes horríveis, descreveu-se apenas como um cara qualquer — em inglês: Just a guy — em uma das entrevistas que deu antes de ser condenado à morte. Mas, ao invés de explorar as atrocidades ou a história das vítimas, Hara muda seu foco para as mulheres que se aproximaram romanticamente de Ramirez durante seu encarceramento. Ele foi mais um desses psicopatas que conquistou uma legião de fãs, inclusive mulheres que se mostravam apaixonadas ou atraídas sexualmente por ele. Até chegou a se casar com uma delas, enquanto aguardava sua execução, ocorrida em 2013.
Percebe-se, então, a singularidade dos pontos de vista que se manifestam nesse documentário desenvolvido em stop-motion. Além dos testemunhos de algumas das mulheres mais devotas à Ramirez, a diretora expõe também a correspondência que ela mesma trocou com ele. O filme, portanto, trata de um amor que desafia nossa ética, O filme “sem, no entanto, glamourizar o crime, nem fazer julgamento moral de tais mulheres“, como ressalta o júri do Animage, que concedeu ao curta o prêmio de melhor roteiro.
Bem, o documentário consegue reunir uma perspectiva jornalística com um desejo artístico e, com os testemunhos, às vezes dos próprios autores, as obras ficam localizadas entre o biográfico e o antropológico. Segundo Maria Lorenzo Hernández, poderíamos considerar, em um primeiro momento, o documentário animado como uma espécie de oxímoro, uma vez que, supostamente, há uma contradição entre animação e documentário: a primeira é feita com uma realidade fabricada, enquanto o segundo sustenta a ambição de retratar a realidade verdadeira, como ocorre no live action. Afinal, como disse uma vez o animador israelita Yoni Goodman, “a animação tem tudo a ver com enganar o olho — fazer o olho ver o que não está realmente lá“.
Mas Hernández mesmo rebate essa ideia, ao lembrar da contribuição de Paul Ward para a não ficção animada:
“A animação e o documentário são categorias discursivas com uma diversidade inerente, e não entidades simples, então é possível observar pontos de contato entre as duas. Como expliquei de modo mais detalhado em outro local, é um mito dizer que a animação não pode ser utilizada por documentaristas. Esta forma de pensar se baseia em noções ingênuas e simplistas de como o documentário funciona, uma crença errada de que o documentário serve apenas para captar a realidade e não analisá-la.”.
Para Nina Paley, o desenho “é uma ajuda ao pensamento, uma forma de trabalhar as ideias“, ao que acrescento que qualquer instrumento que ganha vida em uma animação. Então, por que cineastas formados no ofício e na arte da animação não poderia optar por desenvolver seu tema, ou essa análise da realidade, por meio do documentário? Nesse cruzamento, a crônica do animador assume a forma de imagens, de textos marginais ou dos mais variados objetos. Cria-se, assim, uma dialética entre animações e relatos, mirando na visualização de estados emocionais que, como sugere Roe, resulta na construção de ideias, sentimentos, sensibilidades e memórias.
O processo surge também do contraponto lúdico feito à narração que chega ao espectador. Como resultado desta variedade, esses filmes muitas vezes desafiam a convenção de unidade estética, favorecendo à diversidade de procedimentos utilizados, que vão desde os métodos tradicionais até aqueles desenvolvidos com as novas tecnologias. Citando mais uma vez Hernández, a presença de elementos, como as cartas, as fotografias e as imagens de arquivo, presentes tanto em Just a guy como em Carne, tem a capacidade de reproduzir o passado, além de reanimar ou reconstituir o instante temporal e os corpos físicos a que se referem. “E, na sua capacidade de brincar com o tempo, recordam-nos a efemeridade da nossa própria existência“.
De fato, é o que sentimos no final do filme de Kater, durante a animação experimental sobre películas antigas, que retratam e acompanham a voz de Helena Ignez, musa do cinema de vanguarda brasileiro e a última entrevistada do curta. Esta, assim como as animações sob pratos, com argila, desenhos ou tinta que a antecedem, fortalecem a abstração e o simbolismo das imagens criadas pelos relatos.
REFERÊNCIAS
HERNÁNDEZ, Maria Lorenzo. The Landscape in the Memory: animated travel diaries. In: PALLANT, Chris. Animated Landscapes: history, form and function. [S.I.]: Bloomsbury Publishing Inc, p. 145-158. 2015.
HONESS ROE, Annabelle. Animated Documentary, Basingstoke: Palgrave Macmillan. 2013.
WARD, Paul. Animated Interactions: Animation Aesthetics and the World of the Interactive Documentary in Animated Worlds, ed. Suzanne Buchan. London: John Libbey, 2006.