O Festival Internacional de Animação de Pernambuco — o Animage — terminou ontem, dia 17/10, depois de algumas sessões presenciais, lá em Recife, além de uma multiplicidade de filmes disponíveis on line.
O Animage foi capaz de reunir obras dos mais variados locais, técnicas e formas de contar histórias, mostrando como a animação pode nos levar até o limite. Por exemplo, como você imagina que seja a relação entre um serial killer condenado à morte e suas fãs? Ou entre uma torturadora e seu cachorro? Esses são alguns dos temas abordados pelos filmes que o Festival premiou e, através de Bestia, o ganhador do prêmio de Melhor Curta, podemos aprofundar a discussão sobre Memória, que pode ser desenvolvida de modo único pelo cinema de animação.
Memória Individual e Coletiva no curta Bestia
Não me surpreende o fato de que o curta Bestia, de Hugo Covarrubias (Chile), tenha ganhado o Prêmio ANIMAGE de Melhor Curta. Foi também meu preferido e, definitivamente, o mais desconfortável e perturbador. A película é baseada na história de Íngrid Olderöck, ou A mulher dos cachorros, durante o período em que fez parte da DINA, polícia política chilena que funcionava na época da ditadura de Pinochet. Ingrid ganhou esse apelido por conta das humilhações que fazia utilizando animais para abusar sexualmente dos detidos no centro de tortura, chamada pelos próprios agentes da DINA de “La Venda Sexy”. Diz-se, inclusive, que ordenou violar e torturar sua própria irmã com o intuito de manter a herança dos seus pais.
Dá para ver o quanto essa personagem era assustadora, e basta uma pesquisa rápida para encontrar algumas violações de direitos humanos pelas quais ela foi responsável. Sua vida foi relatada no livro “La mujer de los perros”, de Nancy Guzmán, que, junto a entrevistas e relatos, serviu como fonte de pesquisa para Covarrubias e sua equipe na elaboração da trama de Bestia. Assim, conseguiram bolar um enredo historicamente verdadeiro, mas não necessariamente preso aos fatos. Isto porque o curta tenta se aproximar daquilo que não está nos registros oficiais, nem em nenhum Relatório da Comissão Nacional sobre Prisão Política e Tortura. Restou aos ficcionistas e animadores imaginar e recriar o dia-a-dia, o estado emocional e quem sabe até as inseguranças de um ser humano extremamente perverso.
A partir do pequeno universo que encerra relação dela com seu pastor alemão Volodia (o que mais acompanhava em seus crimes) — ou, como chama Covarrubias, dessa “subtrama da história do Chile” — temos uma noção forte o suficiente do que foi o horror da Ditadura Militar chilena. Desse modo, Bestia trabalha a Memória de duas formas: uma individual, alojada como a bala que atingiu Ingrid no atentado em 1981 contra sua vida; e o trauma coletivo de toda uma nação.
O termo Memória Coletiva, popularizado pelo sociólogo Maurice Halbwachs (1990), sugere que não recordamos o passado como indivíduos isolados, mas agregamos e recolhemos memórias como parte de uma sociedade. Se a História (no caso, a prática dos historiadores) é a construção de narrativas do passado seguindo uma lógica de causa e efeito, muitas vezes detalhada com dados empíricos, então a Memória refere-se à nossa experiência do passado no presente. Ou seja, “o passado não é preservado, mas reconstruído com base no presente”. Assim, ao estudar a memória, passamos a compreender tanto a situação atual como a dos acontecimentos que são recordados.
A memória não se situa apenas nas nossas mentes, mas emerge através de colaborações sociais. Os meios de comunicação, dentre eles as obras audiovisuais, desempenham um papel importante na criação de memórias hoje em dia. A memória é criada a partir da interação de agentes orgânicos e inorgânicos, desse modo, os filmes podem nos inspirar a recordar ou nos estimular a tecer uma ligação emocional com um passado que não testemunhamos e, às vezes, nem conhecemos muito.
Uma vez que a animação frequentemente coloca o subjetivo em primeiro plano — com a sua qualidade frequentemente artesanal e capacidade de resistir às tradições fotográficas de representação — é capaz de explorar as respostas afetivas e sensuais das pessoas a fatos e memórias em vez de as mostrar fotograficamente. A animação tem a liberdade de desenvolver a experiência fluida e inventiva da memória com o fantástico, dificilmente encenadas no live action. Dessa maneira, a criatividade e imaginação que contam uma memória são frequentemente realçadas em obras de animação, particularmente quando a sua produção quadro a quadro é enfatizada, tais como com filmes de stop-motion e pixilation.
A animação de Bestia é feita em stop motion, e, embora esse método chame atenção para o material com que são feitos os personagens em um primeiro momento, num instante nos desprendemos da técnica para mergulhar no filme. E sim, ficamos mesmo com os olhos fixos, tensos com os momentos de silêncio ou com a música que toca para abafar o horror, esperando se o absurdo da cena seguinte vai conseguir superar o da anterior. O diretor revela até que thrillers psicológicos dos anos 60 e também de Horror Folclórico mais contemporâneo serviram de referência para este curta.
Costumo dizer que um stop motion de terror consegue ser muito mais assustador do que qualquer live action. Segundo Walden (2018), esse método é capaz de provocar sensações corporais ao espectador, então talvez seja um dos principais motivos que tornam desconfortável a experiência de assistir a Bestia. Além disso, a técnica realça os pontos mais fortes do filme, como a sensação da personagem estar presa em um pesadelo repetitivo, ou a tortura repugnante que, praticada por ela e por seu cachorro, contamina o sentimento sobre si e sobre ele.
Uma vez que assumem a responsabilidade de recordar um passado que não experimentaram em primeira mão, os animadores interpretam narrativas, como as dos sobreviventes que passaram pela DINA chilena, expondo e mesclando as imagens que os artistas fazem do passado com aquelas criadas pelos testemunhos. Isso não significa que a obra final vá exibir conhecimentos factuais sobre casos reais do passado, mas que nos encoraja a ficarmos conectados a ele.
REFERÊNCIAS
Garde-Hansen, J. Media and Memory. Edinburgh: Edinburgh University Press. 2011.
Honess Roe, A. Animated Documentary, Basingstoke: Palgrave Macmillan. 2013.
Hoskins, A. ‘Digital Network Memory’, in A. Erll and A. Rigney (eds), Mediation, Remediation, and the Dynamics of Cultural Memory, 91–108, Berlin: de Gruyter. 2009.
Landsberg, A. Prosthetic Memory: The Transformation of American Remembrance in the Age of Mass Culture, New York: Columbia University Press. 2004.
Van Dijck, J. Mediated Memories in the Digital Age, Redwood City, CA: Stanford University Press. 2007.
WALDEN, Victoria Grace. Animation and Memory. In: DOBSON, Nichola et al (ed.). The Animation Studies Reader. [S.I.]: Bloomsbury Publishing Inc, p. 54-59. 2018.