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Vozes Trans

Estamos no mês do Orgulho LGBTQIAP+, mas as pessoas só costumam lembrar de duas dessas letras (L e G). Uma dessas letras, a T, não somente é esquecida, como é a mais violentada. As pessoas trangêneras e travestis são constantemente diminuídas, jogadas de lado, isso quando não são espancadas ou assassinadas. Muitas são jogadas para fora de seus lares, perdendo a família de sangue, sem serem aceitas. A representação em mídia desse grupo é, normalmente, errada ou feita por pessoas cis (quem se identifica com o gênero com que foi designado ao nascer), o que mais leva à desinformação do que qualquer outra coisa.

Graças às mulheres trans é que o movimento LGBTQIAP+, antes GLS (ora ora, cade a letra T aí, neh?), se movimentou e criou forma. Marsha P. Johnson, mulher trans e bissexual, foi quem deu um dos primeiros passos contra a violência policial, iniciando, assim, o que conhecemos como Revolta de Stonewall Inn.

A Se Liga Editorial, uma editora nacional voltada para a comunidade LGBTQIAP+, tem lançado coletâneas literárias voltadas para minorias esquecidas pelo mundo, e uma delas se chama Vozes Trans, que traz quatro contos com protagonismo transgênero e são escritos por pessoas que fazem parte dessa letra.

Vozes Trans, 1º conto: Holopets e Cosplays, por Koda Gabriel

A história se passa muito tempo depois do nosso ano, iniciando em 2051 e terminando em 2068. No começo, temos Rafa, um garoto trans ainda não assumido, e que é doido por videogames e jogos antigos, que, em um evento voltado para a comunidade nerd, acaba conhecendo uma menina que o encanta e o derrota sem misericórdia no seu jogo favorito. Porém, esquece de pegar o contato e, anos depois, ele ainda se lembra disso e tem esperanças de que um dia possa reencontrá-la.

Em 2068, temos um Rafa que já crescido que, junto ao seu melhor amigo Miguel, vão participar de um evento de grande porte voltado para a comunidade nerd/geek, fazendo cosplays e promovendo campeonato de Pac Man. Secretamente, ele sonha em rever a mesma garota da sua infância, sem imaginar o que o futuro lhe reserva.

É uma história curtinha com gosto de quero mais. Afinal, são contos. Mas eu leria facilmente um livro inteiro de Holopets e Cosplays. Koda sabe muito bem, em poucas páginas, nos envolver com os personagens, cujas personalidades são estabelecidas com maestria utilizando o mínimo de palavras para demonstrar isso. É envolvente e muito gostosinho de ler, perfeito para se iniciar a coletânea.

2º conto: Dançamos pelo céu depois de toda a chuva, de Brenda Bernsau

Não vou mentir que essa foi a única história que eu não gostei em Vozes Trans.

Começamos com Tayane voltando à casa de seus pais para participar da partilha dos bens junto ao seu irmão, obviamente tão preconceituoso quanto os falecidos progenitores que haviam a expulsado de casa quando ela finalmente se libertou da casca cis em que a haviam enfiado. Porém, para assinar a papelada, Tayane teria que usar seu nome morto, ao que se recusa. É acusada de ser idiota por se pôr a perder o que é seu por direito, mas ela sabe que é uma violência não aceitarem o seu verdadeiro nome.

Dentro da casa, ela sente algo a chamando até o seu antigo quarto, onde encontra seu diário de infância e relembra de uma amiga, a Francine, que deixou para trás por não entender e aceitar que a outra era uma garota e não um garoto. Com essa lembrança, Tayane vai atrás dela, descobrindo que, por conta da rejeição social, ela acabou por fazer um pacto com uma espécie de anjo que a mantém dormindo debaixo da terra.

Para resgatar Francine, a protagonista acaba contando com a ajuda da mãe da antiga amiga.

Apesar da premissa interessante, a história tenta contar com várias simbologias que, para mim, não fizeram sentido e foram exageradas. Pode ser que seja porque eu sou cis? Pode ser. Por exemplo, as pessoas da cidadezinha usam luvas e Tayane descobre que, ao tirarem estas, suas mãos estão cobertas de sangue, como uma espécie de maldição – o que se pode entender como uma metáfora para o constante assassinato ou suicídio causado por esse tipo de gente.

Os diálogos são bem fracos, e acho que faltou uma certa pesquisa sobre os direitos que Tayane têm sobre a sua herança, por exemplo. Foi descaso do advogado, mas se a protagonista não aceitar sua parte nos bens, ela vai pra ele e não para o seu irmão. Podemos entender como licença poética? Claro. Mas, a mim, incomoda esse tipo de detalhe. A lei é mais complexa do que isso, e Tayane poderia lutar na justiça, pois se houve alteração de documentos para o seu nome verdadeiro, o advogado é obrigado a ajeitar a documentação. Tem vários outros poréns, mas seria dar spoiler, e mesmo eu não gostando, você pode gostar.

3º conto: Erro no Cistema, de Jonas Maria

A história se passa dentro de uma instalação que cria, pelo que entendi, andróides. O/A protagonista se chama 00023, e tudo começa quando este(a) acorda e percebe que está vivo(a). Seus criadores estão contentes pois, de acordo com eles mesmos, tudo ali é feito para ser perfeito. Elu então recebe manuais para estudar como deve agir, o que deve fazer, a maneira de falar, de se sentar, de comer… Tudo. Porém, 00023 percebe que tem algo de errado consigo, pois não consegue se adaptar como outres. Assim, passa por mudanças. Seu software não é compatível com o hardware, como lhe é explicado. Apesar disso, 00023 não parece se ajustar muito bem mesmo assim e começa a se questionar e aos outros sobre como as coisas funcionam, coisas que não estão nos manuais ou nas orientações que passam para elus.

E agora? Será que nosse protagonista vai ter que passar por outra reformulação? Será que, em algum momento, se encaixará nos padrões exigidos pelos seus criadores?

Esse é o meu conto favorito de Vozes Trans. As metáforas, a simbologia… Tudo é muito bem colocado, explorado com cuidado. Ao se utilizar de máquinas para trabalhar suas ideias sobre sociedade, Jonas faz escolhas inteligentes para explicar como a sociedade funciona de verdade, como sempre estamos lutando para nos encaixar e, principalmente, sabemos que isso conversa diretamente com o que as pessoas transgêneras passam diariamente. Para mim, se existir um oscar de contos, Erro no Cistema ganharia todas as categorias.

4º conto: Match Point, de Limão

Um grupo de vôlei feminino recebe uma garota nova, filha de um ricaço que aceitou patrociná-las em troca de ela participar da equipe. Elas a recebem bem, exceto por Elis, que, por acaso, tem um passado com ela e não foi muito feliz. O conflito inicial envolve o ódio que esta tem por Anis, a novata. E aí fica a pergunta: será que em algum momento Elis vai perdoar a outra pelo que houve anos atrás?

A história é um deleite para os olhos. As personagens bem construídas interagem de maneira orgânica, e até mesmo o salto no tempo coube perfeitamente na história, mesmo sendo abrupto. Limão teve toda uma preocupação em construir os momentos pré-futuro, de maneira que, quando chegasse o momento correto, as coisas se encaixassem perfeitamente. Os diálogos são muito verdadeiros, e, no fim, somos surpreendidos com uma pá de boiolice do jeito que amamos amar.

Com ilustrações de Lune Carvalho e posfácio por Amara Moira, a coletânea Vozes Trans é a segunda dessa coleção que a editora Se Liga Editorial vem lançando, sendo a primeira Vozes Negras – que eu ainda não li, pois não tenho. Quem quiser adquirir, o que vale muito à pena, é só ir no site da editora e fazer o seu pedido. Vamos apoiar não só a nossa literatura nacional, mas autores e autoras que são partes de uma minoria silenciada!