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Crítica | Visão – Pouco Pior que um Homem

Mesmo sem intangibilidade, super força e voo, Visão – Pouco Pior que um Homem fala sobre nós e nossos conceitos de família, de existência, de normalidade e nossa necessidade de proteção

Por Rodrigo Passolargo

Antes de adentrar na história e seus aspectos, vale um pacote de elogios a arte do espanhol Gabriel Hernandez Walta (Magneto, Doutor Estranho) que tem um traço leve e uniforme, dando fluidez para a narrativa. O bom uso dos quadros predominantes com os demais e os elementos apresentados dentro deles é um forte. 

A americana Jordie Bellaire (Eisner de Melhor Colorista em 2014 e 2016, com obras como The Manhattan Projects, Nowhere Men, Magneto e a própria HQ Visão) é espetacular, criando atmosferas a cada ambiente, ajudando a narrativa. Seus tons de amarelos ora são usados para mostrar um dia “normal” da família Visão, ora usados em flashbacks criando um clima de estopim nuclear. 

Um destaque vai para o enquadramento e as composições usadas para dar mais fluxo a leitura. Mesmo com algumas fullpages que poderiam dar mais impacto em página ímpar ao virar a folha, a escolha dos quadros e os elementos contidos casam com regularidade.

Tudo isso colaborou para que Visão bem falado pela crítica e indicado a vários prêmios como Hugo Awards e Eisner. Porém, um elemento central precisa ser destacado: o roteiro de Tom King (Grayson, Xerife da Babilônia, Mister Miracle) em sua primeira assinatura na Marvel.

Para que seu sistema de processamento funcionasse melhor, Visão deletou de seu disco rígido as emoções originadas de suas memórias e resolveu tomar uma atitude rumo ao conceito de normalidade que ele captou durante sua pequena – mas intensa – vivência com a sociedade humana: constituir uma família. Optou em construir uma esposa e dois filhos gêmeos e foi morar em Cherrydale, há 25 quilômetros de Washington D.C. Até então uma plot já vista.

Muitos questionamentos rondam o argumento do roteirista Tom King na obra, entre eles a condição de Visão e sua família serem sintozóides (androide feito com sangue e órgãos humanos) buscando ser um humano. Mas o que ser humano? Mesmo sendo um super, Visão é um hominídeo com estrutura corporal por cabeça, tronco e membros. Manipula as ferramentas ao seu redor para sua sobrevivência. Se comunica com o próximo, tem raciocínio lógico, conhecimento, expressão e outras características. Na HQ, ele busca uma maior capacidade de se organizar socialmente buscando uma consciência maior de sua existência. Então, o que falta para os Visões serem humanos?

A busca coletividade através de um agrupamento tradicional de família é um ponto também explorado e atrelado na história de King, e a inserção deles na sociedade pelo ponto de vista de todos é uma constante, ganhando cada vez mais força para o final dessa parte da história. Se existe socialização ente eles, transmissão de cultura, geração de afeto, apoio emocional, aceitação interna, renúncia e assunção de responsabilidades, o que falta para os Visões serem uma família?

Com um recurso de narrador omnisciente – que tudo sabe e vê – intruso mas passivo às vezes obstrui algumas oportunidades de subtexto, mas nada além de uma opção do autor, que vai nos ajudar a apresentar um dos grandes epicentros da trama: a resposta dos Visões perante a busca de um conceito de normalidade com o Visão buscando o asseguramento da unidade familiar formada e proteção psicossocial dos seus entes.

Pode parecer uma tese de doutorado em sociologia, mas um das boas habilidades do enredo é trazer tudo isso com objetividade e simplicidade, sem trazer um engodo filosófico ou mesmo a um sofismo. Para alguns, pode configurar falta de aprofundamento em tais questões, mas para esse escriba que vos escreve existe um direcionamento que flui para tais temas sem forçar os personagens ou seus campos. Já adianto que Visão não vai refletir em Marte sentado em pose hamletiana.

Porém, temos outra obra shakespeariana em referência que é utilizada como títulos dos arcos:

“NERISSA — Não gosta do jovem alemão, sobrinho do Duque de Saxônia?
PÓRCIA — Muito repugnante de manhã, quando ainda está sóbrio,
Ainda mais repugnante de tarde, quando está bêbado.
No seu melhor estado é um pouco pior que um homem;
No pior, um pouco melhor que um animal.
Por pior que me possa acontecer, ainda espero poder livrar-me dele.”
(Mercador de Veneza, 1600)

Mas antes de aguardarmos a Panini lançar a continuação “Pouco Melhor Que Um Animal” podemos notar explicitamente que a referência da peça na HQ. Em vários momentos da história dos Visões, eles são alvos de preconceitos raciais, principalmente seus filhos no ambiente escolar, e quando a pergunta sobre a normalidade é externa, muitas vezes golpeia com impacto, sendo bem próxima de temas como antissemitismo em O Mercador de Veneza. Mesmo a peça dividindo opiniões sobre suas abordagens, os trechos caem como uma luva na história em quadrinhos, onde enxergamos as facetas da sociedade perante as tentativas de sociabilização dos Visões.

Visão tem muito a dizer, mesmo com toda a discrição das questões filosóficas e sociais. Ao término da leitura, é uma boa proposta pensarmos que mesmo sem intangibilidade, super força e voo, a história fala sobre nós e nossos conceitos de família, de existência, de normalidade e nossa necessidade de proteção. Até onde as buscas por tudo isso afetarão minha sociedade e até onde a sociedade me afetará com tudo isso?

Lembrando muito um episódio de Black Mirror estrelado pelos Visões que nos apresenta um mundo onde Sintozóides sonham com famílias elétricas, a dica é ler com crença sem certeza alguma do que acabei de relatar, pois como dizia Visão para a esposa Virgínia “Certeza é uma ilusão. Crença é uma constante”.

VISÃO: POUCO PIOR QUE UM HOMEM
ROTEIRO: Tom King
ARTE: Gabriel Hernandez Walta
ARTE-FINAL: Gabriel Hernandez Walta
CORES: Jordie Bellaire
LETRAS: Denise Araújo
TRADUÇÃO E ADAPTAÇÃO: Leo “Kitsune” Camargo e Paulo França
EDITOR ORIGINAL: Wil Moss
EDITOR-CHEFE ORIGINAL: Axel Alonso
CAPAS: Michael Del Mundo e Marco D’Alfonso
TIPO: Quadrinhos
ANO: 2018 (2016 EUA)
EDITORA: Panini
GÊNERO: FICÇÃO/DRAMA
TEOR: Livre
TEXTO: RESENHA DEMONSTRATIVA/ANÁLISE PARCIAL
REVISÃO: NÃO

(Rodrigo Passolargo, escritor, contista, diretor da Fábrica do Mito, ex-Presidente do Conselho Branco Sociedade Tolkien e aluno de Histórias em Quadrinhos do Estúdio Daniel Brandão nos anos de 2016 e 2017 e sempre abre a porta da geladeira do CosmoNerd!)