Vilãs Vilãs

Vilãs

Desde os primórdios, madrastas, bruxas, mulheres fortes e independentes são vistas como más, vis, criaturas sem sentimentos, e sempre são condenadas a um final ruim. Nos dias atuais, isso vem mudando aos poucos. Muitas mídias têm incluindo novas perspectivas sobre essas vilãs, que não são mais más por sempre simplesmente mesquinhas, invejosas ou apenas gostar de ser assim, possuindo um background mais sólido e firme, com motivações que fazem sentido e nos cativam – a exemplo da peça Wicked ou o filme Malévola.

Muitas vezes até mesmo nos vemos torcendo para que as vilãs vençam, pois possuem diversas camadas, são complexas, e muitas vezes os mocinhos ou as mocinhas são unidimencionais, sem um pingo de profundidade, sendo inocentes, ingênuos ou tolos – algo que também está mudando, a exemplo das novas heroínas da Marvel, por exemplo, que começaram a receber mais destaque. Durante muito tempo, essa ideia maniqueísta de bem e mal separadinhos funcionava como uma ideia torta de não afetar a mente infantil sobre o que é certo e errado, surgindo um medo imbecil de que dar profundidade a um vilão pudesse fazer com que ela crescesse sob perspectivas erradas (e isso ainda existe, se lembrarmos da discussão sobre se videogames transformam crianças em criaturas violentas ou não).

“A apresentação das polarizações de caráter permite à criança compreender facilmente a diferença entre as duas, o que ela não poderia fazer tão prontamente se as figuras fossem retratadas com mais semelhança à vida, com todas as complexidades que caracterizam as pessoas reais. As ambiguidades devem esperar até que esteja estabelecida uma personalidade relativamente firme na base das identificações” (Ibidem, p. 9).

Nos primórdios, essa ideia servia para que houvesse uma “lição de moral”, em que a reprodução da luta do protagonista em vencer o mal deveria ser uma alegoria sobre subjugar os males da vida, superar as dificuldades, por mais difícil que seja. Na Poética, de Aristóteles, ele apresenta a noção de catarse, que, em sentido mais literal, significa purificação. Essa teoria incita a ideia de que toda obra é válida, pois, ao assisti-la, você seria expurgado dos sentimentos negativos, por exemplo. No caso infantil, podemos aplicar na ideia de que, ao assistir a um filme que apresente uma vilã  com camadas, de maneira que possa haver uma empatia, ou, como dito, com semelhança à vida, a criança não veria o mal como algo bom e o viveria, mas sim se livraria da ideia de maldade, por já tê-la “vivido” em tela por meio da personagem. Ou seja, por meio da catarse.

A única forma de nos tornarmos nós mesmos é através de nossas próprias realizações” (BETTELHEIM, 2002, p.198).

Sinopse: Madrastas. Rainhas más. Princesas injustiçadas. Mulheres traídas. Vilãs nos acompanham desde os primeiros contos de fadas, destinadas à derrota para que os heróis possam triunfar.

Agora, vamos conhecer as versões delas. De maçãs envenenadas a vinganças de feiticeiras traídas, a antologia VILÃS desperta o lado mais obscuro da fantasia.

As Vilãs

A coletânea traz diversas visões sobre o que é ser uma vilã, o que a torna vilã, como ela age, como ela pensa, o que acarreta a ideia de monstruosidade que ela projeta para o mundo. A sombra, a vilania, é na verdade as ações reprimidas dos seres humanos que estas protagonistas não têm medo de revelar, sendo, assim, consideradas como sendo más, bruxas. Elas não são seres dignos de piedade, compaixão ou amor. Elas vestem o manto que lhes dão.

Elas são vilãs.

O conteúdo implícito a estas produções reforçava aquilo que era adequado e esperado à postura feminina, como a dependência e o respeito ao masculino, bem como o dever de aguardar passivamente regramentos que refletiriam na estabilidade de suas vidas(FOSSATI, 2009, p.7).

A primeira história fala de uma mulher que odeia humanos, e a última coisa que espera na vida é se tornar refém da sobrinha órfã, se encontrando em uma situação em que é obrigada a adotá-la. A própria personagem se vê presa justamente na dualidade entre a ética e o seu real desejo, suas aspirações individuais, que a tornam quem ela é. O “correto”, de um ponto de vista moral, é a tia de sangue cuidar da sobrinha, por mais que haja uma óbvia rejeição por parte da mais velha. A menina mais nova é baseada na personagem Pollyana, aquele antigo livro em que a protagonista tem o “jogo do contente”, em que ela precisa estar feliz o tempo inteiro, pois a vida é cheia de pequenas alegrias e devemos encontrá-las. Por mais que seja uma visão bonita, é irreal ser feliz o tempo inteiro, e a tia questiona isso fortemente, parecendo amargurada e má o tempo inteiro. Em contrapartida, a criança parece incrível, e imediatamente vem a antipatia: como alguém poderia tratar essa menina de maneira tão indiferente? Será que a protagonista está errada? Ela é uma vilã por isso? Esses questionamentos são rapidamente levantados no conto de Karen Alves, e cabe a você, leitor, decidir.

Em A face da inocência, de Deia Klein, a autora traz uma subversão. Quem é, na verdade, a vilã desta história? Aqui, temos uma garota descrita como pura e inocente, que tem a mão prometida a um rapaz que mora com a mãe e sofre em uma relação abusiva com esta. Mesmo assim, Grace, a protagonista, se casa com ele e tenta de tudo para ser a melhor pessoa possível. Ainda assim, temos um embate entre as duas mulheres, em mais um caso em que um homem que não possui personalidade o suficiente para tomar uma ação diante do que acontece no dia a dia. Porém, ao contrário do que se espera, a mocinha não é passiva e muito menos tão indefesa quanto se espera. E no fim, fica a pergunta no ar: há uma vilã? O que é uma vilã? Suponho que, aqui, a autora tenha evocado a ideia de que não importa se estão passando por um momento ruim, há uma esperança. Normalmente, essa esperança vem na forma de uma terceira pessoa, comumente sendo na forma  de um príncipe. Mas, e se a tal da libertação vier da própria pessoa? Ela é culpada ou inocente? É mais aceitável quando o herói é do gênero masculino? Ele tem licença para matar e extirpar os inimigos? Por ser homem, ele sai impune, mas se for uma mulher, ela é um monstor? Fica a reflexão.

Em outro conto do livro, Mal de ojo, da Soraya Coelho, traz um viés um pouco diferente. O que faz de uma pessoa uma vilã? O que a torna um monstro? Nessa história, como já foi dito antes, as personagens ganham camadas e passamos a entender suas motivações, seus desejos e pensamentos, causando uma espécie de empatia entre quem lê/assiste e o ser cheio do que se chama de “maldade”.

Segundo Carolina Fossatti (Cinema de animação e as princesas: Uma análise das categorias de gênero), as vilãs são mulheres consideradas ardilosas e  sinalizam seus objetivos, mostrando ao público que não são exemplos a serem seguidos por nenhuma outra. Mas, e quando não é exatamente assim? É isso que transparece tanto em Mal de Ojo quanto em Marcada, de Nara Odelle. O monstro já nasceu assim ou ele foi criado? Fica a questão.

Sobre o livro

O livro é uma coletânea de contos, então cada história tem sua narrativa própria e uma visão diferente sobre o que ser vilã significa. Cada personagem pode ser tanto carismática quanto imediatamente odiável, seguindo os padrões do que se entende por ser má. Nenhuma delas, inclusive, é descrita como feia, deformada, como as bruxas, as criaturas vis normalmente são representadas.  As ilustrações demonstram isso muito bem, com diversas facetas de beleza.

Nem todas as histórias foram do meu agrado, tiveram duas que eu realmente não curti – mas puramente por gosto pessoal. Os contos seguem o padrão de começo, meio e fim, amarrando bem as pontas soltas, e até mesmo nos fazendo desejar por mais.

A editora fez um trabalho excelente com diagramação, revisão e capa, tudo com qualidade impecável, e um acabamento de dar gosto.

E fica o questionamento: para você, o que é ser vilã?