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Uma TRETA e tanto da A24 na Netflix

Depois de se popularizar como um selo de boas obras, nas quais os realizadores possuem absoluta liberdade criativa para trabalhar, a A24 traz para o catálogo da Netflix uma produção de diretores pouco conhecidos pelo público, numa narrativa pouco convencional que embala a história de personagens de descendência asiática. Com essa descrição, você pode pensar que estou noticiando a compra dos direitos de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo por parte da plataforma (atualmente, o filme se encontra no Prime Video), mas na verdade estou me referindo à série Treta (Beef, 2023), que tem como showrunner o sul-coreano Lee Sung Jin.

A trama mostra o desfecho de um desentendimento no trânsito entre dois desconhecidos. Danny Cho (Steven Yeun) é um empreiteiro frustrado e falido que bate de frente com Amy Lau (Ali Wong), uma empresária batalhadora com uma vida idílica.

A comparação com Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo poderia se estender por mais parágrafos, mas o adequado mesmo é ressaltar o quão envolvente é a 1ª temporada (será que teremos mais?) desta série, que além do criador Sung Jin, (anteriormente roteirista de um ou outro episódio de séries interessantes como a divertidíssima animação Tuca & Bertie) tem na direção HiKari (dando seus primeiros passos, mas já mostrando muito talento em Tokyo Vice e 37 Segundos) e o muito bem relacionado Jake Schreier, que dirige seis dos dez episódios de Treta, e futuramente terá de entregar o aguardado filme Thunderbolts (da Marvel Studios) e episódios de Star Wars: Skeleton Crew (da Lucasfilm) para a Disney.

Mas afinal, de qual Treta estamos falando?

A briga de trânsito supracitada não é, obviamente, o motivo central dos problemas de cada um dos protagonistas, mas sim o estopim para que uma série de situações se desencadeiem. São figuras à beira de um colapso, só precisando de um dia especialmente ruim (como diria o Coringa) para que o caos imperasse em suas respectivas rotinas.

O trabalho da dupla que se odeia está excelente, com belas atuações em papéis que se encaixam perfeitamente no perfil necessário na hora de entregar toda a dramaticidade demandada por esse tipo de história: um retrato realista de como a sociedade está sujeita aos mandos e desmandos do mundo capitalista – da base até o topo da pirâmide social. Isso fica evidenciado pelo modo como Amy Lau (Ali Wong) e Danny Cho (Steven Yeun) possuem tantas semelhanças mesmo sendo tão diferentes em condições financeiras. O capital sempre vai buscar a expansão, mesmo que pra isso vidas humanas tenham que passar por um moedor de carnes, seja literal ou figurativo.

Desse modo, o título original da série da A24, Beef, casa muito mais com esses aspectos por dialogar dentro do contexto do capitalismo e sua relação com a carne bovina (grande motivadora do desmatamento promovido no mundo – especialmente no Brasil, com seus governos ainda permissivos). Mas, para além disso, o capitalismo está produzindo pessoas cansadas, e de uma forma que não é apenas física.

A violência da série se revela (antes de se materializar pela estética das cenas) a partir daí, pois Danny Cho é um empreiteiro pra lá de frustrado. Tenta viver de diversas ideias que o empolgam, mas sua aptidão mesmo está em coisas que ele não enxerga como lucrativas, como ser um músico. A pressão para conseguir um lar para os pais (que estão na Coreia do Sul) nos EUA e a dominância que ele pensa precisar exercer em seu irmão Paul (Young Mazino) o corroem mentalmente, levando-o a se enfiar nos mais controversos empreendimentos – além de ser uma pessoa com certa dose de conservadorismo tóxico. Conhecido eternamente por interpretar Glenn em The Walking Dead, Steven Yeun entrega uma participação primorosa nesta produção.

Ali Wong como Amy Lau
Como não amar um marido que produz uma arte que se assemelha a uma genitália invertida?

Já Amy, a princípio, parece uma mulher pra lá de privilegiada, mas a sua frustração com a vida é tão forte quanto a de Danny. Ela é dona de uma muito bem-sucedida empresa no ramo da floricultura, e o negócio está fazendo tanto sucesso que está prestes a vender toda a sua parte para Jordan (Maria Bello), essa sim uma ricaça que não vê limites para o dinheiro – nem para o modo soberbo e preconceituoso como enxerga as pessoas. Em seu âmago, Amy não se conforma com a falta de atitude do marido, George (Joseph Lee), que dedica seu tempo a ser um pretenso artista com um complexo de Édipo mal resolvido, dada a sua insegurança em relação a aprovação do seu falecido pai e a proximidade infantil com a mãe. Para ter aqueles bens materiais que todos invejam, a personagem de Ali Wong sacrificou praticamente tudo, incluindo sua possibilidade de escolher se queria ou não ser mãe, sendo que, ironicamente, ela acusa seus pais (com os quais ela rompeu laços) de não terem a desejado como filha anteriormente.

Fica a clara impressão, ao longo dos dez curtos episódios, de que esses dois personagens, que se odeiam, poderiam ser amigos inseparáveis caso tivessem a chance de ser conhecerem melhor. Ao invés disso, eles estavam ocupados com suas rotinas autodestrutivas, tirando algum respiro disso tudo no tempo dedicado a beligerância entre si. Tanto que, no poderoso último capítulo, sob o efeito alucinógeno de uma planta ingerida por engano, soa totalmente coerente as falas quando os personagens “trocam” de corpos, e Danny passa a ser Amy – e vice-versa.

Outra pista para isso acaba sendo o modo como os personagens de Beef são pessoas incrivelmente solitárias e carentes, sempre em busca de um apego, e essa necessidade de afeto (ou medo da solidão) habita até as mais perigosas figuras, como Isaac (David Choe), primo que sempre leva Danny para a marginalidade.

Claro que Treta tem seu paradoxo: se a mensagem macro do roteiro é a falta de comunicação num mundo caótico em que vivemos, ao mesmo tempo devemos agradecer por esse mesmo mundo capitalista que nos desgasta, uma vez que foi ele o responsável por promover uma união quase impossível entre duas pessoas? E essa gratidão deveria ser reforçada, uma vez que aquela mesma briga de trânsito evitou um provável suicídio?

Muita coisa positiva pode emergir do caos, e viver idealizando uma vida para si e para a sociedade pode não ser a melhor das opções. Somos seres humanos, e isso ainda não se resolve numa embalagem do mercado – ou num algoritmo de rede social.

Teremos uma 2ª temporada de Treta (Beef) na Netflix?

Independentemente da confirmação de uma 2ª temporada de Treta, acredito que o grande mote da série foi contemplado pelos seus criadores. No entanto, do ponto de vista do drama de seus personagens, há muito espaço para que esta série da A24 ganhe mais episódios na Netflix.