O desapego que os oficiais da justiça nos EUA tem com as regras das instituições é sempre um detalhe importante na narrativa da série True Detective, original da HBO que ganhou merecido prestígio na primeira temporada e muito descrédito pela segunda, trazendo para sua quarta leva de episódios, após uma elogiada terceira temporada, o protagonismo de Jodie Foster numa ambientação do gelado Alasca na fictícia cidade de Ennis. Bem-vindos à Terra Noturna.
A trama se inicia em uma longa noite no Alasca, quando os oito homens que operam a Estação de Pesquisa Tsalal Arctic desaparecem sem deixar vestígios. Para solucionar o caso, as detetives Liz Danvers (Jodie Foster) e Evangeline Navarro (Kali Reis) terão que enfrentar a escuridão que carregam dentro de si e investigar as verdades assombradas que estão enterradas sob o gelo eterno.
Apostas seguras da HBO
Logo de cara, chama atenção as apostas para que essa temporada (sob o comando de Issa López, que escreveu e dirigiu os episódios) tenha seu interesse despertado pelos espectadores. A primeira delas é Jodie Foster, atriz com grande prestígio dentro do suspense nos cinemas e que faz sua estreia como protagonista de uma série nesta produção. Com uma carreira longeva e de muito tempo entre um trabalho e outro, não é um erro afirmar que seu papel mais marcante do longo dos anos foi como Clarice Starling, em O Silêncio dos Inocentes, no qual ela lida com alguns assassinos em série – incluindo o lendário Hannibal Lecter.
Pelos materiais promocionais, também ficava evidente um elemento da fórmula da série presente aqui, que é a dinâmica entre dois detetives que se odeiam na maior parte do tempo. Isso fica personificado na figura de Navarro, interpretada com muita competência por Kali Reis, que possui um passado intenso demais com Danvers (Foster) para que o público saiba tudo logo de cara.
Uma outra aposta, e isso só podemos entender ao longo dos episódios, são as semelhanças mesmo que sutis com a tão amada primeira temporada, para além dos parceiros de investigação com relação conturbada. A própria ambientação no Alasca já sinaliza isso, pois Rust Chloe (Matthew McConaughey) viveu lá por um tempo, levando os espectadores metidos a caçadores de easter-eggs ligarem o sinal de alerta. E esse sinal entra em disparada quando nos deparamos com o símbolo circular apresentado no começo da série, além dos chifres de cervo que podemos ver aqui e acolá… e o fato de um ser sobrenatural chamado Travis Chloe (supostamente, pai de Rust), dar as caras.
O que dá certo em True Detective: Terra Noturna
A inserção de elementos sobrenaturais ajudam a conduzir a narrativa de True Detective: Terra Noturna, e isso pode incomodar alguns que prezam por realismo no que acompanha. Envolver os povos originários nesse meandro ajuda a delinear o debate subjetivo entre o que é crença e realidade, e ter essas pessoas pertencentes ao local “antes mesmo do Alasca se chamar Alasca”, como Danvers mesmo diz, envolvidas nos problemas da cidade como o abuso industrial promovido pela mineradora (que está contaminando a água da população), fortalece a legitimidade do roteiro. Afinal, são delas o direito de ancestralidade.
A despeito disso, vale observar que na proposta da série essas vertentes (crente e ateia) não precisam necessariamente andar separadas – vide o final catártico, com um pé na fantasia, ofertado pela primeira temporada, quando Rust passa por uma experiência para além da vida após longos episódios negando a existência de Deus.
A ambientação em Ennis é outro ponto certeiro, pois o clima gélido é ótimo para as pretensões de suspense e terror cósmico. As personagens vivem neste local, no qual a noite se prolonga por dias a fio, e os dramas que cada uma carrega – até o ponto onde colidiram no passado – dão o tempero necessário para conduzir o espectador com certa garantia até o clímax. Foster não aparenta se esforçar tanto para mostrar uma personagem dura, maculada intensamente pela vida e que trata todos com o desdém de quem tem absoluta certeza de possuir a razão. Enquanto Reis, através de Navarro, mostra uma oficial que não consegue manter com tanta eficiência essa rígida camada por ser atormentada por um caso não resolvido no passado.
O que faltou
Seis episódios é muito tempo para desenvolver uma trama de ambientação reclusa e um mistério que se desdobra em mais algumas subtramas? Talvez, mas a edição final do trabalho de Issa López mostrou um episódio final com certa pressa nas resoluções, um erro que pode acabar custando muito da experiência final de quem assiste. Não fala a favor de López também o fato de ter deixado de lado personagens com potencial narrativo, como a diretora da mineradora e seu superior de departamento policial, figuras que claramente tinham mais a oferecer à história, que acaba sendo concluída podendo oferecer muito mais. Faltou também uma certa coragem (ou tempo?) para explorar mais profundamente alguns dos elementos sobrenaturais que a própria escritora nos apresentou no começo.
O grande plot do final, que evoca uma particular luta de classe envolvendo mulheres e como a sociedade as tornam invisível em determinados momentos, é uma grande sacada do roteiro que acaba perdendo o peso por conta do final suprimido.
Por mais que tenha mostrado acenos às suas origens, esses problemas contribuíram para que Terra Noturna não seja uma unanimidade em relação à audiência, e menos ainda com o criador original Nic Pizzolatto, pois o mesmo chegou a replicar análises de pessoas decepcionadas com a 4ª temporada de True Detective. Supõe-se, então, que o nome dele como produtor executivo nos créditos de Terra Noturna seja meramente figurativo, e ele não tenha participado de nada efetivamente para estes episódios ambientados na fictícia Ennis.
E parece que o descontentamento de Pizzolatto com sua própria cria vai continuar, pois a HBO já anunciou que a 5ª temporada de True Detective irá sim acontecer, e com Issa López novamente no comando.