Quando Neil Gaiman entrou para o mundo dos quadrinhos, ficou frustrado com as barreiras que encontrou – principalmente dentro da DC -, sem ter espaço para liberdade criativa, algo que, para um autor como ele, é essencial. E podemos ver esse resultado em The Sandman, uma das histórias em quadrinhos mais famosas e importantes do mundo. Lançada em 1988, a história do rei do Sonho possui 75 volumes principais, além de prequels, spin-offs etc. que foram escritos por outros autores e outras autoras, e tais volumes vêm sob o selo de “Sandman apresenta”. Na época em que o primeiro volume da série de HQs foi publicado, a Vertigo não possuía uma divisão de títulos adultos, sendo Sandman seu precursor. Gaiman pegou emprestado, inicialmente, o universo criado pela DC, porém, ele logo se desvinculou, e seu poder criativo foi tão grande, que acabou por reinventar e sobrepôr versões de personagens da empresa.
A base de fãs criada é grande, e muito fiel. Há anos é pedido que haja uma adaptação para as telas da história do rei dos sonhos, mas Neil Gaiman é uma pessoa cuidadosa com a sua obra. E agora, em 2022, 34 anos depois, finalmente saiu na Netflix a série The Sandman e podemos dizer que, cara, valeu a espera.
A história se inicia com Roderick Burgess (Charles Dance), um autodenominado mago, que tenta capturar a Morte (Kirby Howell-Baptiste) para ressuscitar seu tão amado filho. Porém, o feitiço dá errado e ele acaba aprisionando seu irmão mais novo, Morpheus (Tom Sturridge), o Rei dos Sonhos. Frustrado com a falta de reação do Perpétuo, Roderick o mantém cativo por 100 anos, até que seu filho acaba, sem querer, o libertando, iniciando, assim, a jornada de Sandman para recuperar seus talismãs – capacete, areia e rubi. Mas é muito mais do que isso.
Morpheus é um herói com defeitos trágicos que nos lembra a segunda fase do Romantismo, com aquela pegada gótica, um pouco pessimista, além de que o personagem possui, inegavelmente, um ego frágil com uma autoconfiança absurda. Interpretado pelo maravilhoso Tom Sturridge, Sandman nos conquista por meio da sua jornada, que, primeiro, é sobre se encontrar, depois torna-se sobre entender o seu lugar no mundo – tema explicitamente exposto no episódio “O som das asas dela”, em que o rei do Sonhar encontra sua irmã mais velha, Morte. O protagonista, após ter ficado tanto tempo aprisionado, saiu com uma visão modificada da humanidade – que encontra-se totalmente diferente do que ele lembrava, o que causa certa dificuldade para o Sonho, pois, até ali, o Perpétuo jamais havia pensado na possibilidade de mudança, de renovação, e ele deixa claro em suas conversas com Lucienne.
Como diria Neil Gaiman, “O rei dos sonhos aprende que é preciso mudar ou morrer, então toma sua decisão“.
Falando em mudança, a série traz pequenas alterações em relação ao quadrinho original na forma de renovações, trazendo a história para tempos atuais – no caso, 2021 – e, assim, atualizando a trama, os personagens, os cenários, tudo. E esse ar novo é uma delícia. Mas, que fique claro, as alterações em nada modificam a natureza original de Sandman ou a sua essência.
Temos, por exemplo, um antagonismo mais claro e marcante por parte de Desejo (Mason Alexander Park), personagem que mal aparece, mas se tornou ê queridinhe* de todo mundo. Não consigo pensar em outra pessoa no papel, sinceramente.
*Desejo não tem gênero, logo, linguagem neutra se faz necessária ao se referir a elu.
Outro personagem que é apaixonante na série é o Coríntio, cujo ator, Boyd Holbrook, conseguiu refletir muito bem o pesadelo, tornando-se cativante e assustador ao mesmo tempo, com uma sutileza nas ações, conquistando as pessoas com seu carisma nato, sua beleza e na base do gogó. Rei da enrolação. Em tela, mal conseguimos desviar os olhos da sua figura imponente, sempre com um sorriso que parece genuíno para nos acalmar. A cada aparição sua, tememos pela vida de qualquer personagem que estiver em cena, mesmo estando no núcleo principal. Ninguém está a salvo do Coríntio quando ele está afim de matar, cumprindo seu propósito macabro. Sua relação com Sandman é um dos pontos fortes da trama, reforçando a questão de encontrar seu lugar no mundo.
Rose Walker, interpretada por Vanesu Samunyai, faz parte da segunda parte da narrativa do rei do Sonhar, protagonizando o arco A casa de bonecas, e é interessante notar como equilibraram a trama para que Morpheus não ficasse tanto no plano principal da história, pois, aqui, explora-se o papel deste no mundo e na vida dos humanos. Sandman não é apenas o senhor dos Sonhos, ele É o sonho, e somos levados a considerar que ele está sempre na periferia das nossas narrativas. Afinal, como demonstrado no episódio 5, “Sem parar”, o que são os seres humanos sem sonhos? Sem a capacidade de sonhar com dias melhores?
No geral, as atuações são incríveis, tanto do elenco de peso quanto do elenco “desconhecido”, com personagens que conseguem evocar a complexidade original da trama, sem perder o fio da modernidade. A narrativa, em si, é muito bem contada, trazendo uma cadência deliciosa, escorrendo em um ou outro momento, afinal, ninguém é perfeito, mas que, no fim, torna-se uma série muito bem construída, com quase um passo a passo para que o público novo possa entender e apreciar conosco, o público velho e calejado, essa obra maravilhosa.
O CGI dá umas falhadas, e a construção de cenários deixa a desejar em alguns momentos, embora, em outros, como a visita ao Inferno, encham nossos olhinhos com maravilhas bem construídas e bem pensadas. A partir dos detalhes, conseguimos ver o quanto a equipe se esforçou para tornar a série tão única quanto os quadrinhos, mesmo que, possivelmente, sendo limitada pela produtora.
A trilha sonora tem função narrativa, andando conosco em cada cena, em cada momento, ajudando na nossa imersão da história (que já não precisa de muito) e abrilhantando os episódios.
The Sandman é uma série que pode ser um tico cansativa para um público não muito acostumado a refletir a cada episódio, algo necessário para digerir o que se está assistindo ali, mas que provavelmente agrada a todo tipo de pessoa com a sua autenticidade, seu levante de questões sérias e que se mantém atuais, e o carisma dos personagens.
Estou bastante ansiosa para ver como será a adaptação dos próximos arcos, e vocês?