A culinária exerce um enorme poder na sociedade. No auge da pandemia, quando a maior parte do mundo estava trancada em casa, cozinhar tornou-se uma forma de passar o tempo e acalmar a mente. Na TV, realitys de gastronomia são um enorme sucesso de audiência. Até mesmo nas redes sociais somos bombardeados com vídeos de receitas variadas. Preparar um prato, por mais simples que possa parecer, é um ato carregado de significado. Porém, quando olhamos para uma cozinha profissional, o choque de realidade é enorme. O caos que reina num ambiente restrito, abarrotado de pessoas distintas, pode ser insuportável para alguns. Curiosamente, a cultura pop conta com poucos produtos capazes de capturar essa essência enquanto contam uma boa história. The Bear, série que chega ao Brasil pelo Star+, é uma joia rara nesse meio. Que merece as três estrelas do Guia Michelin.
A trama acompanha Carmen ‘Carmy’ Berzatto (Jeremy Allen White), um renomado chef de cozinha que comanda o melhor restaurante do mundo. Ou comandava. Sua realidade agora é tentar salvar o antigo restaurante de seu falecido irmão mais velho Michael (Jon Bernthal). Longe do glamour da cozinha sofisticada, Carmy luta contra as dívidas, problemas do cotidiano e os demônios internos que afligem sua mente e seu corpo. Longe de ser apenas uma série sobre culinária, The Bear é um saboroso e complexo estudo de personagens. Tratando da pressão e da masculinidade tóxica em um ambiente pouco explorado no meio do entretenimento. Assim como as cebolas cortadas incessantemente, cada membro da equipe possui suas próprias camadas.
O showrunner Christopher Storer abre mão de um didatismo na concepção dos personagens, deixando que suas atitudes diárias no The Original Beef of Chicago transpareçam suas personalidades. Com isso ele evita que a trama se arraste, dando foco total para o que realmente interessa. Nenhum diálogo é leviano em The Bear. O contraponto entre os personagens é o tempero que torna a série tão saborosa. Se Carmy é o cozinheiro experiente moldado por abusos e pressão extrema, Sydney (Ayo Edebiri) surge com um olhar mais puro sobre a culinária. Ambos buscam o mesmo objetivo, mas por meios diferentes. Ainda tem Richard (Ebon Moss-Bachrach) que age como um mensageiro do caos capaz de roubar os poucos segundos de paz do ambiente.
Além de um local para conceber belos e saborosos pratos, Storer transforma a cozinha em um caótico divã. Importante notar como os personagens masculinos, extremamente problemáticos, lidam com seus medos e suas inseguranças. Nunca por meio do diálogo, optando por agressões físicas e verbais. Num acúmulo de situações tempestuosas que inevitavelmente desabam sobre a equipe. Chega a ser sufocante assistir cada episódio da temporada. Vale notar como as pausas para respirar são sempre fora da cozinha, no espaço onde cada personagem se mostra mais vulnerável. E até longe do restaurante as conversas giram em torno de comida, como um vício que não tem cura.
Nos aspectos técnicos, The Bear também brilha. Com cortes rápidos entre os ambientes, a câmera passeia numa espécie de trincheira de pratos sujos, comida no chão e ânimos exaltados. A mixagem de som acentua o barulho de panelas, talheres e legumes sendo fatiados numa experiência sensorial única. A montagem repete diversas cenas de alimentos sendo preparados, reforçando justamente a sensação da rotina do restaurante. O relógio na parede agindo como um carrasco sem emoções, ditando o tempo de cada ação. Tudo culmina no sétimo episódio quase todo filmado em plano-sequência, num dos melhores momentos de uma série de TV em 2022.
The Bear é o tipo de série que não surge todos os dias. E pior, que acaba não recendo a devida atenção na era do fast food do entretenimento. O FX já anunciou que a segunda temporada está confirmada, e pensando numa analogia para encerrar esse texto, cheguei na seguinte conclusão: é um almoço na casa dos avós. Aqueles que não importa o quanto você coma, sempre tem espaço para mais.