Há alguns anos, após o lançamento de Liga da Justiça (Snyder e Whedon), foi anunciado que haveria um novo filme do homem-morcego e que o título seria apenas The Batman. Na época, o projeto seria encabeçado por Ben Affleck como diretor e ator e por Zack Snyder, porque este também faria parte do Snyderverso. Contudo, o projeto sofreu com várias mudanças, foi se modificando ao passo que as críticas do público e da mídia especializada chegavam aos ouvidos dos executivos da Warner, tendo em vista que a recepção do Snyderverso foi sempre bem mais pro lado negativo, o natural era que esse projeto fosse constantemente mudado. No fim das contas, Matt Reeves (Rocketman, Planeta dos Macacos) assumiu como diretor, Ben Affleck saiu do papel e surgiu a pergunta: “Quem será o novo Batman?”. E eis que o mundo foi surpreendido com o nome de Robert Pattinson para o papel do bilionário que se traja de justiça à noite. E como surpreendeu.
Batman é um personagem recorrente em todas as produções da DC, seja no cinema ou nas séries de televisão, Bruce Wayne/Batman estão presentes, mesmo que não em corpo físico mas como citação, referência. Ponto que prova isso é o fato de que a maior parte da divulgação do filme novo do Flash é sobre o Batman de Michael Keaton, que retorna para o cinema. Quando se tem tanta estima por um personagem como esse, é natural que as expectativas sejam elevadas em níveis estratosféricos, e que leva também a uma pergunta bem óbvia: Como abordar novamente esse personagem? E Matt Reeves, junto de Peter Craig no roteiro do filme, achou essa resposta. Se valendo de três histórias clássicas do herói, o roteiro cria uma roupagem autêntica nesse novo trabalho do homem-morcego. Histórias essas que são: O Longo Dia das Bruxas, Ano: Um e Batman: Ego. Poderia ser um tiro no pé tratar dessas histórias como uma pura adaptação delas juntas em um filme, mas o que realmente é aproveitado são os conceitos centrais desses trabalhos.
Depois de todas as abordagens de Bruce Wayne sendo um homem com duas personalidades distintas – para o mundo dos famosos e ricos, é o playboy excêntrico que sempre compra o que não está a venda, sai com modelos em carros luxuosos e, para a população e polícia, é um homem que se veste de morcego e combate o crime à noite -, nesse novo trabalho nos deparamos com um Bruce Wayne (Robert Pattinson) muito mais quebrado, depressivo, que tem dúvidas, é mais humano e falho. Assombrado por um passado de terror por ter presenciado o assassinato dos pais, Bruce é um homem que não tem mais familiaridade com as emoções comuns, a não ser a raiva e o sentimento de vingança que o motiva a acabar com o submundo que afunda Gotham no desespero e no crime.
Tomado por esses ideais, vemos a construção coesa de um personagem bem mais pé no chão que seus predecessores — até mais do que o de Christopher Nolan —, o filme nos mostra o quanto Wayne já é dependente de seu alter ego, quase como que um viciado. Ele não é completo, e, em suas próprias palavras: “Eu não ligo para o que acontece comigo, Alfred” – algo não somente dito, mas demonstrado ao longo do filme. Diversas vezes Bruce aparece sujo, com roupas cobertas de lama, o cabelo desgrenhado, os olhos manchados com a tinta preta de sua maquiagem de guerra, a marca da máscara em seu rosto. Nas raras cenas onde é dia —ainda que nublado — vemos também que ele não se dá mais tão bem com a luz, sempre mostrando desconforto e usando óculos escuros. “Em 2 anos vivendo pela noite, eu me tornei um animal noturno”.
Inexpressivo e recluso dentro de sua caverna, mal consegue esboçar um sorriso ou demonstrar algo que fuja de seus status quo, Robert Pattinson entrega uma apatia convicente e genuína em sua interpretação, o silêncio, a fala rouca, as roupas pretas e seu andado fúnebre gritam o que seu personagem viveu, o seu olhar que consegue observar o trauma do orfão filho do prefeito assassinado mostra o sentimento de desolação de quem foi privado do amor dos pais pelo terror que sua cidade cuspiu para fora. Já o outro lado da moeda também não fica muito atrás nos componentes de criar uma imagem ameaçadora e imponente da figura noturna de Batman. Começando por sua armadura, que já possui várias marcas de arranhado, o que denota que já passou por diversas situações, com antebraços armados com diversos gadgets, e sua famosa batarangue – que fica presa em seu peito e também é o símbolo de seu traje. Uma armadura que aparenta não ser tão desconfortável — vide máscara marcando o rosto — ao herói, mas em seu incômodo, atribui e prova o ponto que Bruce apontou sobre si mesmo.
O som e o batmóvel
O som é um elemento crucial na composição desse novo Batman. Seus passos têm um som pesado, quase que como um ferro que encosta no chão. É um passo pesado e fúnebre. O som de algumas peças de couro de sua armadura também são quase que crepitantes, o que confere bastante o elemento do esquisito a essa figura, afinal, estamos falando de um homem que se veste de morcego. A voz do Batman sempre foi uma característica marcante do personagem, porém, Pattinson foi por um caminho mais discreto, em que, até então, é um Batman que usa de poucas palavras e é objetivo com suas falas; apesar disso, ainda assim é uma voz que rouca e que impõe sua assinatura no personagem.
E o elemento sonoro não se limita apenas ao seu traje de morcego, mas também ao seus apetrechos, como, por exemplo, o seu batmóvel, que tem uma primeira aparição pouco antes de uma cena de perseguição, à la Cristine, o Carrro Assassino. Das sombras, os faróis acendem, a turbina entra em chamas e o motor rosna quase que como um grito de um monstro que acabou de acordar, e também seu traje de voo anfíbio que, quando plana no ar e dá um rasante contra um prédio, emite quase que o silvo de uma flecha.
Batman vai além da ação em sua Gotham City
A decisão de fazer um filme neo noir de investigação leva a caminhos bastante interessantes em diversos aspectos, principalmente no que diz respeito ao próprio Batman, que tem a alcunha de o melhor detetive do mundo. Se antes tínhamos filmes do herói com uma ordem hierárquica de gênero que era, em primeiro lugar, ação e, segundo, de investigação — muitas vezes nem em segundo cof cof Joe Schumacheer cof cof —, aqui temos um balanço bem equilibrado nestas duas categorias. Todos os elementos que compõe uma história noir estão presentes: o detetive soturno e misterioso, o parceiro do detetive, que, no caso, é Jim Gordon (Jeffrey Wright), a femme fatale Mulher-Gato (Zoë Kravitz), e também tudo que envolve o design de produção.
Vemos uma Gotham City novamente com os aspectos góticos, assemelhando-se também a obras clássicas de cyberpunk, como Blade Runner, em diversos pontos, com grandes arranha-céus e que parametrizam a discrepância social na cidade, a chuva constante durante à noite que parece sempre durar mais que o dia, misturados com elementos de grandes metrópoles modernas, com gigantescos painéis de led com anúncios de propagandas, luzes ofuscantes, a fumaça constante dos bueiros, o amálgama de sujeira e ruas cheias de pichações, e a desesperança por uma cidade refém dos mafiosos. Gotham precisa de personalidade, ela é uma cidade viva e intrínseca nas histórias do homem-morcego, e não ser apenas uma Chicago escurecida. E esses aspectos não se limitam só a cidade, mas como a própria mansão Wayne, que mais parece um castelo por dentro.
A direção opta por muitas vezes deixar a câmera se esgueirar em certos espaços como se observasse as cenas de longe, criando-se um senso de que ninguém em Gotham está a salvo, que todos estão sendo observados, assim como também contempla vários planos abertos para situar a cidade. Não ficando também refém de criar uma imagem contemplativa do Batman usando contra-plongés ou coisas do tipo, mas usa planos detalhes, sombras e jogos luzes formando uma atmosfera para as cenas de tensão e ação. Como nas cenas de ação, onde vemos o jogo de luz, ou a luta na boate em que prevalece a luz vermelha e intensa, em contraste com a escuridão do ambiente. Vale a pena mencionar que essa nova roupagem do Batman não funciona como um SUPER-HERÓI imbatível, na verdade, ele é bem vulnerável. O vigilante bate e os bandidos revidam, não ficam esperando o desfecho da luta; ele sofre as consequências de dar as costas pra um capanga, toma tiro à queima-roupa e, FINALMENTE, alguém decidiu puxar a capa e usá-la contra ele. É um Batman que, mais que nunca, tem que escolher seus momentos para lutar.
A ação é bem coordenada e é aliada na montagem e no som; o barulho dos socos, chutes, tiros etc. são muito impactantes e criam uma atmosfera bastante realista do que está acontecendo em tela. Destaque para a cena de perseguição, onde Batman vai atrás de Pinguim (Colin Farrell), que, apesar de um pouco longa demais, consegue ser divertida de assistir. A fotografia do longa consegue criar um ambiente hostil e pouco esperançoso para a cidade onde tudo é sombrio, úmido e amarelado pelas luzes da noite, como já dito, e a sensação é de que a luz do sol nunca irá raiar de novo, como se um novo amanhecer não fosse chegar para Gotham tão cedo. E a presença da luz vermelha é recorrente durante toda a projeção, provavelmente porque como o filme é PG13, houve uma considerável maneirada no sangue da violência empregada, mas isso acaba sendo compensado com o uso da luz escarlate que exprime a sede de vingança da cruzada do morcego.
O elenco também não decepciona, principalmente quando se trata dos vilões. Colin Farrell está irreconhecível não só pelo trabalho bem-feito da maquiagem e do figurino, mas por conta da sua interpretação do personagem Pinguim. Ele emprega uma personalidade carismática ao passo que é extremamente cínico e mau-caráter, dono de uma boa parte do alívio cômico do filme — alívio esse que é bem pontual e funcional. Zoë Kravitz consegue ser a femme fatale ameaçadora que seduz enquanto coloca a faca no pescoço, sendo cínica por uma questão de sobrevivência. John Turturro é uma baita surpresa no papel de Falcone, no qual com o pouco tempo de tela que tem consegue ser detestável e um exímio mentiroso sem parecer fazer esforço para isso. E o destaque vai para Charada (Paul Dano), pois existem nuances bem interessantes acerca da personalidade desse vilão, principalmente nos dias de hoje, em que ele traz consigo traços fortes dos incels, a óbvia psicopatia e o senso deturpado de trazer “justiça” para o mundo que todo vilão do Batman tem. Foco aqui para a cena em que há o diálogo de Charada e Batman na prisão, que é tensa, crescente e explosiva, e o silêncio da trilha sonora torna tudo mais concreto. Há gritos, indignação e é onde entendemos o que os efeitos da presença do herói noturno está causando em Gotham, a deturpação daquilo que ele tenta inspirar é subvertido pela mente de uma cidade doente.
Além de que é interessante notar que nesse filme o herói perde. O plano de Charada dá certo. Gotham é inundada, a cidade entra em lei marcial e a guarda nacional é chamada. Batman serviu apenas como uma redução de danos, nada mais. Charada também confronta diretamente os privilégios de uma vida nascida em berço de ouro, o poder e a preocupação pública de quem tem holofotes a vida toda apenas pelo seu nome. Algo nunca visto antes em um filme do personagem.
O longa também conta com diversas rimas visuais durante a projeção. Duas em especial: o começo do filme, com um voice over de Bruce, e o final, que também usa esse recurso. Também temos as cenas da entrada na boate, no qual existem três versões dessa cena no filme: a primeira, onde Batman pede licença e invade; a segunda, onde Bruce vai para especificamente para falar com Falcone; e a terceira, em que ele simplesmente invade o local – mas todas foram feitas sob a mesma perspectiva. Em contrapartida, temos um filme LONGO demais. 175 minutos que acabam virando desnecessários, principalmente quando existe vários planos de uma mesma cena com ângulos diferentes, como a cena final de Batman e Mulher-Gato correndo de moto. Existem uns seis planos diferentes deles fazendo a mesma coisa.
A trilha sonora fica à cargo de Michael Giacchino (Homem Aranha: Sem Volta Pra Casa), que faz um trabalho espetacular, sobretudo com o tema principal do herói. Existem diversos elementos góticos na trilha e o que torna o tema principal mais memorável é sua progressão com apenas dois acordes. Ela cria tensão e se alia em uma das melhores coisas do filme, que é construir com calma seus grandes clímax. É uma trilha que não cai no marasmo, é soturna e melancólica, especialmente quando ela usa os arranjos de uma música que permeia o filme, que no caso é Ave Maria, ela sempre aparece em momentos fúnebres e fica mais assustador quando o próprio Charada a canta na sequência de diálogo da prisão.
The Batman é uma excelente e autêntica leitura do homem-morcego nos cinemas. Bem mais real que os seus antecessores, com uma Gotham viva em sua morbidez e cheia de personalidade, aliado a personagens carismáticos e com originalidade, sem cair no ridículo. Um filme neo noir cheio de investigação e que mostra que o herói ainda tem um longo caminho a percorrerr até virar o ícone e o símbolo que deve ser. The Batman é honesto e entende que seu protagonista é cheio de privilégios, levando em consideração diversas discussões acerca desse personagem que por muito tempo foram ignoradas. The Batman é o filme que os fãs da DC queriam e que os fãs de thrillers policiais vão adorar.