Terminei de assistir a primeira temporada da série Sombra e Ossos, da Netflix, e fiquei me questionando: “Por que TODAS as mulheres, por mais incríveis que sejam, têm suas vidas girando ao redor de homens?” Então vim aqui para, juntamente com vocês, discutirmos o assunto.
Gostaria de deixar claro que é um artigo sobre a série apenas (da qual já escrevemos uma crítica), pois ainda não li os livros relacionados a essa história. Plus, vou partir do principio que você já assistiu. Então, simbora.
A narrativa da escolhida
Todo mundo conhece essa, pois lemos, assistimos, escutamos sempre sobre esse tipo de plot, em que temos um(a) protagonista que era só uma criatura ordinária e de repente tem o poder de transformar o mundo inteiro ou algo assim. É o alecrim dourado da literatura, mais conhecido como “A Jornada do Herói”, ou mesmo “A Jornada da Heroína”.
” […] a jornada começa quando a heroína, notando as dinâmicas da sociedade patriarcal em que vive, identifica o arquétipo feminino como passivo, manipulador, não produtivo, sem foco, inconstante e emocional demais” (Medeiros, Stéfanie Garcia. A JORNADA DA HEROÍNA: ESTRUTURA NARRATIVA PARA ROTEIROS DE FICÇÃO. 2019)
A protagonista de Sombra e Ossos se vê como sendo comum, rejeitada, desengonçada. Alina, desde o princípio, é diferente, não por ter poderes, mas por ser mestiça. Na introdução da personagem, que se torna cartógrafa por falta de opção (justamente por não ser boa atirando, lutando, costurando…), ela sofre xenofobia e racismo, causando um sentimento perpétuo de não pertencimento. Sendo órfã, a única pessoa que a ajuda a passar por tudo isso é seu melhor amigo e crush, Maly. Porém, apesar disso, a desvaloriza, que, assim como a própria protagonista, acredita no fato dela não ter atributos especiais. Isso é MUITO comum nas narrativas protagonizadas por mulheres. De acordo com pesquisadores da área de psicologia, isso serve como forma de ligar nós, mulheres inseguras e com a autoestima minada, com a personagem principal e desejarmos o destino dela, ao se descobrir poderosa e necessária.
Por alguma razão, a série mostra Maly flertando com uma Grisha (uma pessoa com dons “mágicos”, que aqui eles chamam de pequena ciência). É nesse momento que apresentam Zoya, uma Aero. Seu arco narrativo se resume a ter inveja da protagonista por ter a atenção que ela queria dos personagens masculinos.
“O primeiro estágio da jornada da heroína acontece de forma simultânea com o segundo: a jovem protagonista, ao notar que certas pessoas, posições e eventos tem mais valor que outras, busca para si o glamour, independência, prestígio, autoridade e dinheiro controlados pelo arquétipo masculino. Temos, então, a identificação com o masculino“ (Medeiros, Stéfanie Garcia. A JORNADA DA HEROÍNA: ESTRUTURA NARRATIVA PARA ROTEIROS DE FICÇÃO. 2019).
Como costume, a protagonista descobre que tem um poder lendário, incrível, que pode salvar a todos. Ela é levada para treinar no chamado Palácio Pequeno, junto com o General Kirigan e outros Grishas. Apesar de ser extremamente poderosa, podendo conjurar luz e outras coisinhas, Alina ainda se sente deslocada e se espelha em Aleksander (General Kirigan) e se apoia nele, pois é tudo o que ela quer ser: seguro, independente, poderoso… Óbvio que, como ela é mulher, isso se transforma em uma espécie de paixão, formando o famoso triângulo amoroso. Aliás, metade dos episódios que deveriam tê-la treinando, se focam em cartas que ela escreve para Maly, e, ao não ter resposta, e se “libertar”, é que consegue controlar seu poder.
Na Jornada do Herói, é o momento em que a pessoa se desprega de seu passado e parte para a sua jornada.
“Agora, a heroína aventura-se sozinha pela estrada de provações, de forma a descobrir seus pontos fortes e habilidades, bem como desmascarar suas fraquezas” (Medeiros, Stéfanie Garcia. A JORNADA DA HEROÍNA: ESTRUTURA NARRATIVA PARA ROTEIROS DE FICÇÃO. 2019).
Exceto que Alina não parte ainda para a sua jornada. Infelizmente, até aqui na história, ela é apenas um bibelô. Seu poder serve para entreter os ricos e poderosos. A única pessoa que não a enxerga assim é o General Kirigan, tendo cenas deles se entrosando e rolando uma certa tensão sexual entre eles, ao qual Alina se entrega, reforçando ser uma protagonista que precisa de um homem para se desenvolver, pois, “graças a ele” é que ela finalmente para de se sentir deslocada e que pertence a algum lugar.
Em teoria, ela faz amizades no palácio, com zero construção para isso. Do nada, duas garotas se apegam a Alina e, ocasionalmente, as três estão conversando. Também, em teoria, há a amizade dela com Gênya. Aparentemente, no livro, esta personagem é uma das mais interessantes, mas, na série, ela é sub-utilizada, assim como a maior parte das mulheres aqui. Não há, de fato, uma ligação de Alina com outras personagens femininas. Provavelmente, por escolha mesmo, resolveram só jogar de qualquer jeito que ela tinha sim amigas, entretanto, não desenvolvem a relação entre as três, de forma que naturalizasse ainda mais o modo como a protagonista se sente no Palácio Menor quando diz encontrar-se cada vez mais à vontade, como se houvesse ali um lugar para ela, um pertencimento que nunca obteve.
Todo o arco de Alina no Palácio deveria ser relacionado a ser treinada e a “[…] curar as feridas psíquicas para se reintegrar ao meio social.” Em uma perspectiva Junguiana, nessa trajetória de transformação psicológica, a alma é o lugar em que a pessoa tem que sofrer transformação, ou seja, seu crescimento pessoal, seu arco de amadurecimento. Na série, deveria ser o momento em que a protagonista se desprende da sua vida infantil, seu passado com Maly, e assim seguir em frente. Porém, ela só fez trocar uma coisa pela outra, e agora ela se “amarra” ao Darkling, que a valoriza e a apoia incondicionalmente. Não que ele não faça isso, mas mudaram só de um homem para outro. Novamente, o arco de Alina é preso a um cara do qual depende emocionalmente.
Quando descobre que foi “traída”, que ele na verdade não é um cara tão legal quanto pensou que fosse, é que Alina parte, de verdade, para a sua jornada. Porém, novamente, a narrativa a joga nos braços de um cara. Dessa vez, de volta para Maly, que aprende a valorizá-la. Tudo em sua história gira em torno da aceitação masculina, sendo que, para que a sua jornada de complete, ela precisa do desprendimento e bastar-se por si, mesmo tendo apoios secundários. Alina deveria achar o seu Eu individual, mas, em momento algum, ela chega lá, pois está sempre presa a um ego masculino. Até mesmo o seu momento de glória na série, em que percebe que foi escolhida pelo cervo e utiliza o seu poder para mostrar superioridade, é abafado com o ataque de outro homem a ela, assim como a luta entre os interesses amorosos da protagonista. No fim, mesmo sendo poderosa, Alina ainda é subjugada e deixada de lado por narrativas masculinas.
“Na maioria dos contos de fada, a heroína é tirada do seu estado de espera, seu estado de inconsciência, e instantaneamente e dramaticamente transformada para melhor. O catalisador dessa mudança mágica é geralmente um homem” (MURDOCK, 1990, l. 1152).
As outras personagens
Já falei de Zoya, e a verdade é que não tem muito o que acrescentar sobre ela. Talvez a parte do final onde ela finalmente abre mão de agir como inimiga de Alina, mesmo não gostando dela, ao perceber que o seu querido General Kirigan na verdade era o Herege Negro.
Em um núcleo secundário, também temos Nina, que é basicamente uma narrativa à parte, em que ela é capturada por um caçador de bruxas e está sendo levada para a morte, até que o navio afunda e é obrigada a sobreviver com seu captor, Matthias. A sua primeira cena é ela lutando contra cinco caras, e quase conseguindo escapar. Depois, Nina apenas serve como um meio para tornar Matthias mais brando em relação aos Grishas (que o povo dele chama de bruxos e bruxas, em uma inspiração clara na Inquisição) e ser o seu interesse romântico. Os atores têm uma ótima química, e a personagem dela é maravilhosa. Uma pena que só sirva como suporte para um homem.
Gênya, infelizmente, tem o mesmo destino. É mostrado que ela sofreu o pão que o diabo amassou por ter sido entregue nas mãos do rei aos 11 anos, e serve apenas como uma espiã e soldada para Kirigan – uma maneira que ela encontrou de se vingar do que sofreu, sendo que foi o Herege que a pôs naquela situação. Vai entender. Novamente, uma mulher na série cujo destino depende de um personagem masculino, ao qual ela serve.
A única personagem que é livre de tudo isso é Inaj. Tanto a história dela quanto a de seus pares, Kaz e Jasper, são a melhor coisa da série. São três personagens interessantes, complexos e a busca deles é a mais bem construída. Mas foquemos em Inaj.
Ela foi tirada dos pais quando criança e vendida como escrava a um bordel, de onde Kaz a comprou. Como forma de gratidão, Inaj trabalha com ele, sendo uma mulher muito habilidosa, tanto com facas como para desaparecer na multidão. Ela é praticamente uma ninja. A sua construção é a mais sólida na narrativa. Ela é letal, rápida, inteligente, corajosa, é religiosa e leal. Tem seu próprio código de honra, que inclui não matar, e, ao encontrar com Alina, fica encantada e a considera uma Santa – já que teoricamente ela é um ser mítico.
Apesar de Inaj andar com homens na série, sua personagem não gira em torno das vontades de Kaz, por exemplo. Ele a trata como igual, assim como Kasper, e não há uma diminuição da sua pessoa por ser mulher. E nem mesmo interesse romântico, como acontece em todos os outros casos da série. Inaj é a única que parece realmente seguir a sua jornada de libertação, chegando ao self que necessita, sendo um indivíduo por si e não parte de algo que outro quer.
Protagonismo feminino de Sombra e Ossos
Na maioria dos livros ou das séries com personagens femininas que consumi são idênticas na sua forma. Somos todas criaturas desajustadas, esquisitas, que, por alguma razão, ou tem o chamado da jornada ou é a escolhida com o poder de salvar o mundo inteiro, mas reluta, por não se sentir o suficiente. E essa última narrativa é a que mais se encaixa em como nós, mulheres, nos sentimos. Mesmo ao atingirmos o patamar de heroínas, muitas vezes essa sensação permanece.
“No começo, este sucesso em vários aspectos é empolgante, mas logo as demandas aumentam e a heroína encontra-se sem energia e tempo para aguentar tudo que é exigido: ela sente que nunca vai ser o suficiente. E, acrescido a isto, a heroína tem de lidar com o fato de que não importa o quão bem sucedida ela é, o mundo exterior é hostil às suas escolhas.” (Medeiros, Stéfanie Garcia. A JORNADA DA HEROÍNA: ESTRUTURA NARRATIVA PARA ROTEIROS DE FICÇÃO. 2019).
Na série de livros A Mediadora, de Meg Cabot, por exemplo, temos uma protagonista considerada como bad ass. Ela é uma mediadora, tendo a obrigação de ajudar os fantasmas a seguirem para o outro lado, seja ele qual for. E Suzannah não é uma adolescente muito paciente e boazinha, ela cai no braço com as tais assombrações, vive se metendo em confusão por causa disso, quase morre umas 30 vezes e, ainda assim, sua narrativa acaba em um triângulo amoroso forçado entre ela, um fantasma e um babaca, até o ponto em que as ações dela são exclusivamente em prol de homem.
Em A Seleção, de Kiera Kass, a protagonista America é apresentada como uma garota transgressora, rebelde, irônica, que faz de tudo para lutar contra o sistema. Mas, também, na sua apresentação, sua felicidade está atrelada a um homem, e o resto da coleção só reforça isso.
Se pegamos exemplos como Percy Jackson, por mais que no futuro haja um par romântico para ele, em momento algum sua felicidade ou suas ações estão atreladas a isso. Ou Harry Potter, mesmo que Hermione seja a verdadeira heroína.
Na maioria dessas narrativas juvenis com protagonismo feminino, o alvo supremo é terminar com um cara. Até Jogos Vorazes, que se esperava não haver romance porque se passa no meio guerra, o shipp foi real e Katniss foi forçada a escolher um homem para beijar e, no final, casar.
Quero deixar claro aqui que eu não sou contra romance, que a protagonista tenha um namorado, ou o que for. É o fato de que, na maioria das histórias, a vida e a felicidade dela está amarrada a de um homem, quase obrigatoriamente, enquanto nas histórias em que há um protagonista masculino, o romance é apenas algo que faz parte, se é que tem. O modo como nós mesmas nos tratamos na literatura chega a ser triste. Estamos em 2021, e as narrativas com protagonismo feminino ainda se focam em se apaixonar. Há exceções? Óbvio. Mas a regra ainda é essa.
Sabemos que há uma máxima social de que a nossa vida gira em torno de que, eventualmente, vamos nos casar, ter filhos ou filhas, viver em função da nossa casa, do nosso marido e das nossas crias, e viver exausta, sem vida, mas feliz para sempre.
“Uma heroína não encontra seu caminho movendo-se em direção à luz, como os homens, mas sim movendo-se em direção às profundezas de si mesmas.” (Medeiros, Stéfanie Garcia. A JORNADA DA HEROÍNA: ESTRUTURA NARRATIVA PARA ROTEIROS DE FICÇÃO. 2019)
Em Sombra e Ossos, aguardei pacientemente pelo momento em que Alina se desvincularia dessa necessidade de estar ligada ao masculino e, quando achei que esse instante iria chegar, ela volta para o início. A série traz um mundo interessante, obviamente muito bem pensado e construído, a pessoa que pensou na fotografia dela tá de parabéns, quem fez os figurinos também, porém, os caminhos que optaram por levar a protagonista foram, no mínimo, insatisfatórios. O Trio Corvo é a melhor parte da série.
Sinceramente, eu pretendo ver os livros e descobrir se a narrativa literária segue essa mesma premissa de prender Alina a figuras masculinas ou se foi uma infeliz escolha para a série, de forma a compactar parte do conteúdo e fazê-lo ficar mais “enxuto” para as telonas. Assim como espero que, com o sucesso da série, haja sim uma segunda temporada e possam melhorar nesse aspecto, deixando o enredo principal minimamente interessante.