O domínio hegemônico que a Marvel Studios manteve ao longo da última década nos cinemas fez com que público e crítica (definições que significam cada vez menos com a comunicação instantânea das redes sociais, onde todos são as duas coisas ao mesmo tempo) definissem o trabalho da empresa como “fórmula Marvel”, ou seja, uma série de elementos que se repetem nas produções com o intuito de agradar e prender o público ávido por super-heróis. Algo pouco falado, no entanto, é que no campo das séries também existe uma outra fórmula, uma espécie de receita hispânica que se deu pelo sucesso global de La Casa de Papel, um dos maiores fenômenos após sua chegada na Netflix em 2018. Sky Rojo, mais uma exclusividade da rede de streaming, é fruto desse movimento – que ganha aqui algumas melhorias.
A trama acompanha Coral (Verónica Sánchez), uma prostituta. Ela trabalha, junto com dezenas de outras colegas, sob o comando de Romeo (Asier Etxeandia), aliciador de mulheres que criou um sistema onde cada prostituta, na condição de profissional, acaba de tornando uma escrava do trabalho pois não consegue pagar a dívida que possui com o “seu dono”, por mais sexo que faça em troca de dinheiro. Porém, Gina (Yany Prado), ao tentar negociar sua saída para fora da casa de prostituição, acaba atacando Romeo ao ter seu pedido negado. Para defender a colega da morte certa, Coral e uma outra companheira, Wendy (Lali Espósito), acabam envolvidas num crime hediondo que certamente terá muitas consequências.
La Casa de Papel, só que melhor
A supracitada receita hispânica à qual me refiro vem, obviamente, de La Casa de Papel, que tem Álex Pina como criador. Ele concebeu outras atrações, como a também um tanto famosa Vis a Vis, mas é agora com Sky Rojo que o autor parece ter atingido a melhor elaboração dessa fórmula. A produção lança mão, mais uma vez, de planos mirabolantes numa trama de assalto e perseguição, mas com menos intensidade, permitindo assim alguns respiros. A mescla de gêneros também passa por elementos de faroeste em alguns momentos, beneficiando a intenção dos produtores em render, sempre que possível, uma cena no estilo videoclipe musical.
A narrativa intercala a linha temporal da trama com flashes do passado, onde, aos poucos, vamos sabendo detalhes pertinentes como o quão Coral estava envolvida com Romeo e seus aliados, além do misterioso passado da moça e os motivos dela ter ido parar ali, uma vez que chama atenção o fato de Coral ter ido parar ali por vontade própria e não do modo usual, que é sendo vendida ou convencida de que terá dias melhores se aceitar homens em troca de dinheiro.
Um detalhe interessante no episódio onde ocorre uma tensa cena no celeiro de um sítio, é uma clara referência à série La Casa de Papel, onde vemos uma fantasia como a que ficou marcada pela série, com a máscara do artista Salvador Dalí. Seria uma dica de que teremos um universo expandido das séries espanholas dentro da Netflix? É provável que não, mas como um nerd entusiasta de qualquer crossover, quero acreditar que sim.
Carisma em tela
De todo modo, a série consegue apresentar uma dose satisfatória de carisma. O problema é a falta de profundidade aplicada nos personagens principais. Quando isso (raramente) acontece, tudo fica mais interessante, principalmente com a protagonista Coral e sua compulsão por consumir remédios nada leves. Suas companheiras na trama, Gina e Wendy, conseguem oferecer alguns momentos divertidos e uma interessante dinâmica de amizade, que será constantemente testada.
Dentre as figuras mais conhecidas pelo grande público, o único nome que se destaca é o de Miguel Ángel Silvestre, que dá vida a Moisés, um fiel capanga do cafetão Romeo. O ator fez parte do elenco da saudosa série das irmãs Wachowski, Sense8. É mais um caso onde uma oportuna profundidade melhora bastante o personagem, que possui um problemático irmão como colega de trabalho.
A questão moral
Para além da ágil e empolgante trama principal, há uma discussão pertinente que é a conduta moral por parte de quem paga por sexo. Em dado momento, uma das garotas joga na cara de um cliente que ele financia o sequestro de diversas mulheres que acabam indo parar em situações de completo abuso, e sequer se importam com elas nem mesmo para perguntar como estão. Esse é um tema muito importante de ser discutido, mas ao ir apenas até certo ponto do debate, o discurso de Sky Rojo acaba caindo em contradição.
Quando o cafetão Romeo é colocado como um grande magnata do mundo da putaria na narrativa para explicar que a Espanha é o país com os maiores números de prostituição na Europa (vou confiar nessa informação), o que se subentende é que todo o mercado se espelha no modelo de negócio criado por ele. Logo, aliado ao apontamento de dedo citado acima, fica uma crítica que coloca qualquer prostituição na caixa do tráfico internacional de mulheres, sendo que há sim aquelas que optam por negociar dinheiro em troca de sexo ou então aquelas que não estão nessa situação de abuso.
A contradição, desse modo, reside em tentar trazer um discurso que empodera as mulheres mas, ao mesmo tempo, desvirtua uma profissão, que, apesar de não ser devidamente regulamentada, é mais do que legítima do ponto de vista liberal.
Vale a pena assistir Sky Rojo?
Vale. Entendendo que a série não se aprofunda como poderia nessa questão moral em relação ao sexo por dinheiro, há muito proveito nos poucos e curtos episódios disponíveis na Netflix. Você irá maratonar rapidamente e ficará com um pouco de raiva da falta de conclusão ao final da 1ª temporada. Mas não se preocupe, que mais episódios chegarão em breve 🙂