Miss Violence usa cenário absurdo para alertar sobre assunto assustadoramente banal
A menina entra em cena, recebe os parabéns da família, posa para fotos, tiram o bolo da geladeira e começa uma dança na sala. Ela está completando 11 anos de idade. Logo de cara percebemos que algo não está certo, seja no semblante da garota ou na seca reação da avó ao saber que espera mais um neto. Então, da forma mais natural possível e com um sorriso no rosto, ela se atira da sacada do apartamento para a morte. A câmera acompanha paralisada a menina morta, lá do alto, enquanto os créditos iniciais aparecem na tela. Essa é “apenas” a introdução de Miss Violence (2014), filme grego dirigido por Alexandros Avranas.
A trama é centrada na família comandada pelo pai (Themis Panou), que após o suicídio de Aggeliki (Chloe Bolota) tenta levar sua vida adiante, querendo transparecer que a fatalidade foi na verdade um acidente. Aos poucos vamos conhecendo o que de fato ocorre nessa casa de perfeita higiene e organização, que está sob a constante vigilância do patriarca.
Quem for levado a pensar que o filme trata sobre suicídio e os motivos para tal ato que fique avisado que esse tema é apenas a cereja podre do estragado bolo dessa família disfuncional. Verdade seja dita, quem for assistir Miss Violence sem ter ouvido nada a respeito do filme antes é provável que fique chocado em alguns momentos, porém não é uma violência gratuita, mas sim uma estratégia esperta: A introdução abre as portas para nosso imaginário e o filme joga suas cartas de forma gradativa mexendo assim com a inteligência do telespectador.
A mensagem mais marcante que ficou do filme, e essa interpretação pode variar de acordo com a pessoa que está assistindo, é de que quem é conivente com toda a violência mostrada pode ser tão culpado quanto a pessoa que a comete. Essa figura está personificada na avó (Reni Pitakki), que além de transmitir essa mensagem também desperta em nós o sentimento de revolta com tamanha aceitação. E o cardápio de horrores que Miss Violence aborda é farto: pedofilia, exploração e violência infantil, incesto e até fraude em programas sociais. As artimanhas para driblar os investigadores do governo são tão descaradas que podem impressionar até o crítico mais fervoroso do Bolsa Família brasileiro, já que para manter as boas impressões o personagem de Panou comanda todos à mão de ferro, mesmo que da maneira mais questionável possível.
Essa rigidez no comando gera o medo e apreensão por parte de todos na casa onde eles são constantemente surpreendidos, e as melhores cenas que retratam isso se dá na metodologia de filmagem de Miss Violence, que na sua maior parte é composta por planos fixos, algo parecido com o mexicano Depois de Lúcia (2012). Para enriquecer a fotografia temos espalhados pelos cenários quadros do pintor Giovanni Bragolin, que segundo uma das lendas envolvendo seu nome já fez um pacto com o demônio e se pôs a pintar crianças chorando por aí, numa perversa referência à situação das crianças que tiveram o azar de nascer nessa família. Preste atenção nesse detalhe quando assistir.
Discorrer a respeito de Miss Violence sem estragar surpresas do filme é um tanto difícil, mas pode ir tranquilo (e preparado) para essa experiência cinematográfica certamente singular que o diretor Alexandros Avranas nos trás nesse clássico contemporâneo do cinema grego, que testa nossa sensibilidade de forma inteligente. O filme se transforma de tal forma que vale também uma segunda conferida, você absorverá a sequência inicial de forma totalmente diferente.
#SetembroAmarelo: Como dito, o filme não trata diretamente o suicídio mas propõe a reflexão para um mal que motiva diversos atos do tipo: a violência doméstica. Nos inteirarmos a respeito do tema só tende a contribuir para o auxílio a essas pessoas que por ventura passam por talvez não a situação extrema retratada no filme (que também podem ocorrer), mas qualquer uma que coloque vidas em riscos através de relacionamentos abusivos.