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Seriam os filmes da Marvel Studios uma dramédia?

Uma reclamação recorrente que ouvimos sobre os filmes Disney-Marvel é a ideia de que eles são muito superficiais e galhofas. As pessoas querem um pouco de realismo e, teoricamente, seus filmes de super-heróis não entregam o que o público quer: conexão, sentimentos conflitantes, um toque de realidade. Mas será que é isso mesmo?

Marvel vs DC: narrativas realistas ou absurdas?

Uma das brigas atuais é sobre se o filme é “realista” ou não (isso, claro, falando dos filmes de super-heróis), o que chega a ser hilário quando pensamos que querem realidade em uma história sobre um cara que veio do espaço e é o ser mais poderoso do planeta. Mas é isso que acontece, e essa é a justificativa de muitos fãs para odiarem uma e amarem outra – ou, mais especificamente, o diretor responsável.

Nos primórdios dos quadrinhos da DC Comics, por exemplo, os personagens não possuíam nem passado trágico nem conflitos. Era o herói VS os bandidos. Se você pôr as mãos nas primeiras histórias do Batman, por exemplo, ele era basicamente um cara rico e entediado que resolveu lutar contra o crime. Seus inimigos não possuíam complexidade, nem camadas, e nem mesmo o próprio protagonista tinha isso. A primeira aparição da Batwoman, hoje em dia uma personagem não só intensa, mas com uma narrativa própria e poderosa, era a de uma mulher apaixonada pelo herói e que, para chamar a sua atenção, tornou-se “heroína”. Seus itens envolviam versões ridículas das mesmas armas usadas pelas Três Espiãs Demais, e várias promessas do Batman de casar com ela e fugindo. Essa era a profundidade das histórias.

Então veio Stan Lee, aquele cara que ninguém conhecia e que nem quadrinhos queria escrever, mas foi induzido pela esposa a tentar e acabou se tornando apenas um dos maiores nomes da área, com diversos personagens icônicos que fazem sucesso até hoje. Um deles é um rapaz que surgiu franzino, ganhou os poderes por acaso, resolveu usá-los de maneira egoísta e teve que ver o tio que o criou morrer por irresponsabilidade sua – mesmo que indiretamente. Reconheceu? Sim, Peter Parker foi o primeiro “mocinho” dos quadrinhos (entre DC e Marvel) a ter não só um passado trágico, mas uma vida difícil. Ao longo da sua história, vemos o adolescente amadurecendo por detrás da máscara, aprendendo, às vezes, da pior maneira, a usar suas habilidades – como quando Gwen Stacy morre. Apesar das pessoas culparem o Duende Verde, ela poderia ter sido salva… Se o Homem-Aranha soubesse usar seus poderes totalmente. Infelizmente, quando sua teia chegou ao corpo da moça, ele puxou com tanta força que o pescoço dela quebrou. E, assim, o nosso menino teia tem que conviver com essa culpa (algo que vemos no arco Homem-Aranha Azul).

A partir desse personagem, vários outros ganharam espaço (inclusive, algumas primeiras aparições são na revista dele), pois viu-se que os jovem se identificaram de tal forma, que o Homem-Aranha ficou muito famoso. Assim, os criadores de quadrinhos pararam e pensaram “Epa! Isso dá lucro!”, e assim as histórias trágicas icônicas que conhecemos nasceram, como o Batman tendo seus pais assassinados (ou seja, quem realmente matou os pais de Bruce Wayne foi Peter Parker!) e ganhando inimigos que vão além de serem meros vilões, marcando a cultura pop para sempre, como Coringa, que ganhou até mesmo o próprio filme e tem fãs pelo mundo inteiro.

Ou seja, o ser humano é uma criatura social, que necessita de conexão e, ao assistir algo, busca-se uma certa representatividade – não necessariamente voltado para minorias, mas relacionado a como nos sentimos. Um(a) personagem sem profundidade pode nos divertir, como é o caso do filme Aquaman, que se segura no carisma do seu ator protagonista. Entretanto, o que se espera é que hajam camadas e, internamente, quem sabe, nos sentirmos um pouco como aqueles(as) super-heróis(heroínas). As pessoas querem imaginar que aquilo poderia ser real, acontecer ali, perto delas, ou até mesmo com elas e, com isso, acham que, porque um filme tem piadas para aliviar um pouco a tensão, ele é automaticamente raso e atribuem isso à Marvel. Porém, será que isso é verdade?

Homem de Ferro e Transtorno de Estresse Pós-traumático

Muitas pessoas consideram o terceiro filme da trilogia do Homem de Ferro como sendo um dos piores filmes. Antes eu concordava quase plenamente, agora discordo com ressalvas. Segura o pensamento que vamos chegar lá.

A apresentação do personagem é bem simples, e o primeiro filme (2008) é claramente de origem, mas uma com um arco bem definido de onde quer chegar, e o faz muito bem. Tony Stark é somente mais um bilionário playboyzinho, ao mesmo tempo em que também é um gênio, no qual suas brilhantes criações ajudam a sua fortuna a crescer, além da fama, do qual ele se aproveita enormemente, sem um pingo de responsabilidade pelas próprias ações, e egoísta a ponto de machucar as outras pessoas e não se importar. Seu ego é maior do que a sua conta bancária. E aqui as coisas ficam interessantes, quando, ao ser sequestrado pelo grupo terrorista autodenominado 10 anéis, Tony é obrigado a encarar o resultado do seu trabalho em primeira mão. Sabemos que a indústria da guerra é extremamente lucrativa e os EUA é um país que monta nisso desde, sei lá, sempre. E, em Homem de Ferro (2008), Stark é obrigado a encarar que seu real legado é a morte. Ao ser “resgatado”, temos os primeiros indícios de que o futuro Homem de Ferro não está bem psicologicamente. Ele se nega a ir ao hospital, senta-se para falar com os repórteres e, sem consultar mais ninguém, decide fechar a fábrica de armas no qual todo o seu império é baseado. E, então, ele constrói a sua armadura como uma forma de se proteger e destruir as bases dos seus novos inimigos, derrotando o próprio legado. Já no primeiro filme, Tony Stark sofre do chamado Transtorno de Estresse Pós-traumático, mas, como sempre, ele se reveste de sarcasmo e se isola, mesmo com Pepper ou Rhodes tentando se aproximar e ajudá-lo.

Muitas pessoas são afetadas de maneira duradoura quando algo terrível acontece. Em algumas, os efeitos são tão persistentes e graves que são debilitantes e representam um transtorno. Via de regra, os eventos mais propensos a causar TEPT são aqueles que invocam sentimentos de medo, desamparo ou horror. Combate, agressão sexual e desastres naturais ou provocados pelo homem são causas comuns do TEPT. No entanto, ele pode ser causado por qualquer experiência avassaladora e possivelmente fatal, como violência física ou um acidente de automóvel.” (FONTE: MANUAL MDS)

Aqui também confrontamos a primeira crítica sólida: os 10 anéis que sequestraram Tony são constrolados por Obadiah, o sócio de Stark. E como isso é uma crítica, vocês me perguntam. Veja só: logo no início do filme, temos uma apresentação rápida das relações de poder dentro das Indústrias Stark por meio de capas de revistas, onde Obadiah é mostrado sozinho, reinando absoluto, mas só até o verdadeiro herdeiro e gênio Tony Stark ter idade para tomar de conta do seu império como o astro principal, e as capas se tornam o jovem na frente e o sócio literalmente atrás e nem um pouco feliz. A uma primeira vista, os inimigos parecem ser do Oriente Médio – algo bem clichê -, até descobrirmos que eles foram contratados e são apenas capachos do real vilão da história: Obadiah, um estadunidense. O perigo de verdade vem de dentro, não de fora, a ponto do grupo “inimigo” ser descartado com uma facilidade enorme pelo roteiro, enquanto o sócio de Stark é realmente uma pedra, ou melhor, uma armadura no seu sapato. Ao final desse primeiro filme, Tony se assume como o Homem de Ferro, ainda sem se entender direito como um super-herói, ainda sem conseguir pedir ajuda e com sérios problemas mentais que prefere nem olhar.

Em Homem de Ferro 2 (2010), vemos o protagonista com todos os sintomas de quem vive em sofrimento psicológico, que se materializa nas suas atitudes autodestrutivas. Tony descobre que o elemento que o mantém vivo também está o matando aos poucos. O medo o leva a ser imprudente, impetuoso e impulsivo – o que faz sentido, pois, ao fim do primeiro filme, vemos um Tony Stark encontrando um lugar só seu, de verdade, formando uma identidade totalmente nova, que vai o afastando da “antiga”, quando não possuía responsabilidade alguma e só pensava em si. Agora, o protagonista se enxerga como um salvador único do mundo, e dono de uma tecnologia que, em teoria, só ele consegue desenvolver e outros países e cientistas nem conseguem arranhar a superfície… Se não fosse por Ivan Vanko, que prova que ele estava completamente errado, trazendo consequências desastrosas, mas que são totalmente culpa sua – como a sua armadura “extra” parar nas mãos sedentas do governo por meio de Rhodes, que enxerga o amigo como alguém irresponsável a ponto de não merecer o que tem. E antes disso, Tony havia feito parte de um julgamento em que tentavam obrigá-lo a entregar a sua propriedade intelectual e tecnológica ao seu país, e quando o seu melhor amigo o rouba, Stark sente-se traído. De novo.

Um dos embates principais desse filme é o mesmo do anterior: a tecnologia Stark sendo utilizada pelas mãos erradas e causando estragos quase irremediáveis, seja pelas mãos de Hammer, do governo ou de Vanko.

No filme também temos a primeira aparição de Natasha, se passando de uma simples secretária para ficar de olho em Stark. Desde o primeiro longa já tinhamos envolvimento com a S.H.I.E.L.D por meio de Coulson, agora fica mais aprofundado com a Viúva Negra e Nick Fury agindo diretamente para impedirem Stark de se matar e ajudando-o a encontrar o que precisa para sobreviver ao seu lento envenenamento. Rola uma forçação de barra quanto à descoberta de um novo elemento que substitui o antigo e não irá matá-lo, mas temos que relevar em prol do plot principal, que envolve novas consequências relacionadas ao seu antigo legado mortal e a vingança de Ivan contra ele, já que seu pai está morto (e é o verdadeiro culpado). O mais interessante é que, nesse segundo filme, é explorado o quanto Tony Stark não está sozinho e ele precisa sim de ajuda, mesmo que não saiba como pedir. Ah, e a relação dele com a Pepper nessa continuação é muito bem construída, com ela não servindo mais de “faz-tudo”, mas com ele finalmente percebendo e dando os créditos e a valorização que Pepper merece. Inclusive, podemos perceber como Tony evita seus sentimentos por ela durante boa parte do filme, pois tem certeza de que vai morrer, logo, não quer levar esse sofrimento para o amor da sua vida, e somente após a sua “cura” é que ele se permite, formando um dos melhores shipps do MCU.

Um aspecto interessante é a relação Ivan Vs Homem de Ferro. Dentro da narrativa, o foco do vilão não é simplesmente matar o seu antagonista, ele enxerga a derrota do super-herói de uma maneira bem mais realista: Tony sempre agiu como se fosse intocável e sua armadura fosse o suficiente para deter qualquer ameaça possível, entretanto, Vanko prova que ele não é isso. Nunca a frase “Você sangra?” foi tão real! E a ideia do vilão é essa: a partir do momento em que Tony perde credibilidade, ele vence, não importando se depois disso Ivan vai ser preso ou não. O mundo passa a duvidar do Homem de Ferro, mesmo que tenha vencido esse novo obstáculo.

Então temos o famigerado Os Vingadores (2012), em que Tony Stark quase morre para proteger a Terra. Mas estou colocando a carroça na frente dos bois. Ele foi o primeiro super-herói nas telonas a ser convidado oficialmente para a Iniciativa Vingadores (isso sem termos ainda os outros filmes que, agora, são seus precursores na ordem cronológica de acontecimentos), e a se negar a isso. Nos seus dois longas solo, pudemos observar a personalidade antissocial de Tony, que se recusa, AINDA, a trabalhar em equipe. Apesar disso, no primeiro filme dos Vingadores, o Homem de Ferro topa aparecer como consultor, principalmente para poder descobrir o que a S.H.I.E.L.D tanto esconde, um fofoqueiro de primeira. Seus diálogos com os outros personagens são interessantes de se analisar, com ele sempre usando o sarcasmo para mascarar o seu desconforto e desconfiança – afinal, quantas vezes ele já não foi traído, não é mesmo? Com Steve Rogers, é quase um embate de machos alpha, porém, Tony serve como combustível para que o Capitão América pare de apenas obedecer e comece a questionar – algo que vai seguir a sua trajetória por um bom tempo. Inclusive, a relação de respeito mútuo entre ambos nasce nesse mesmo cenário de ação, quando necessitam trabalhar juntos para que todos possam sobreviver e, depois, no meio da luta contra os Chitauri, cedendo a liderança para Steve – e digo “cedendo” pois sabemos que Tony tem muitos probleminhas em receber ordens ou trabalhar em equipe. Esse longa explora bem essas questões do Homem de Ferro, principalmente a modificação do “eu” para “nós”, a ponto do personagem considerado como o mais narcisista e egocêntrico (depois do Loki) agir da maneira mais altruísta de todas ao quase morrer salvando o planeta Terra.

Quando encontramos Tony Stark novamente em Homem de Ferro 3 (2013), o personagem inicia o filme com um diálogo reflexivo e claramente assumindo seus B.O. ao dizer que nós somos, muitas vezes, os responsáveis por criar nossos demônios. E o filme inteiro é ele contando sobre a sua irresponsabilidade afetiva e social, e as consequências disso, pois atos que ele cometeu no passado foram esquecidos, principalmente após tudo o que aconteceu na vida dele a partir do primeiro Homem de Ferro (2008). Se bem que, pelo que o próprio Tony assume, já estavam esquecidos de qualquer forma. O filme inicia com uma cena que é bem nostálgica, quando o protagonista ainda só pensava em si e vivia de maneira irresponsável e caótica. Em uma tacada só, ele despreza duas pessoas que serão importantes: Aldrich Killian e Maya Hansen. Mas vamos por partes.

Tony está claramente sofrendo, de maneira mais intensa, com o Transtorno de Estresse Pós-Traumático. Ele já havia sido explorado nos outros filmes, mas agora é acompanhado de crises de pânico (no filme eles usam a palavra “ansiedade”, mas é porque esse tipo de crise configura como parte do transtorno de ansiedade) pesadas, que o deixam confuso, desesperado e com medo. Se você nunca teve uma crise de pânico na sua vida, considere-se sortudo, mas, a nível de conhecimento, a sensação é a de que você vai morrer e dura entre 20 a 40 minutos, em média. Robert Downey Jr. consegue transmitir bem o sentimento pelo semblante e as ações do personagem, mas a narrativa parece impedir que o assunto vá mais a fundo, então é tudo muito rápido. Ainda assim, o poderoso Homem de Ferro não consegue dormir, e, em suas noites insones, gasta horas e horas desenvolvendo e aprimorando suas armaduras. Sim, no plural. Mantendo ainda sua vibe de não pedir ajuda, Tony tenta desesperadamente esconder esse fato de Pepper – com quem agora mora junto – e de Rhodes. Embora o que ele precisasse mesmo fosse de uma boa terapeuta.

O evento traumático pode reaparecer repetidamente na forma de memórias indesejadas involuntárias ou pesadelos recorrentes. Algumas pessoas têm flashbacks, durante os quais elas revivem os eventos como se eles estivessem realmente acontecendo em vez de simplesmente se lembrarem deles. Também é possível que a pessoa também tenha reações intensas a coisas que a relembrem do evento.(FONTE: MANUAL MDS)

Com a “reaparição” dos Dez Anéis e agora o vilão Mandarim, Tony reage à ameaça de maneira impulsiva, principalmente por estar a flor da pele. O seu gatilho emocional  (resposta mental e física, que envolve emoções, pensamentos e comportamentos mais específicos, conectados principalmente a experiências passsadas) parece advir dos eventos de Os Vingadores (2012) e sua quase-morte no espaço. Por ser uma figura pública, ele é lembrado o tempo inteiro dos acontecimentos, e o fato de não ter controle sobre suas emoções, seu corpo e seus pensamentos o deixa desesperado a ponto de chamar o Mandarim para o X1 – o que, obviamente, foi um erro que quase matou a ele e Pepper. Quando se depara com a situação de estar em outro estado, sozinho, com sua armadura – sua proteção – descarregada e inutilizada, Tony tenta não ser abraçado pelo sentimento de desamparo, encontrando forças, sem querer, em um novo amigo: Harley, uma criança solitária e sem figura paterna, que imediatamente se agarra à oportunidade de estar na frente de um super-herói e alguém que lhe dá atenção, por mais que seja uma meia-boca. Aliás, durante mais da metade do longa, Tony está despido da armadura que criou para si, o que é um símbolo muito forte do seu estado emocional.

Novamente é apontado o fato de Tony sofrer de Estresse pós-traumático, e de forma tão aparente que uma criança conseguiu perceber. Aliás, Harley se torna, durante todo esse tempo, uma muleta emocional para Tony, meio que um ponto de apoio no caos em que ele se encontra, enquanto tenta desvendar o mistério por detrás da explosão que quase matou Happy. As cenas de ação são bem criativas, já que Tony está despido da sua proteção de metal, e as suas inteligência e habilidade para pensar rápido são utilizadas em larga escala – como diria Harley, ele é um mecânico, então pode construir coisas para ajudá-lo a derrubar o novo inimigo. E, novamente, o vilão é apontado como alguém de fora, quando na verdade é alguém de dentro do país, em mais uma crítica à indústria da guerra estadunidense, que provê um inimigo externo como desculpas para invadir países e vender armas em grande escala. Killian é um bom antagonista, com sua complexidade pautada em alguém que não tinha nada e, por sorte do destino, apostaram as fichas nele e tornou-se algo que nunca imaginou que seria: poderoso, rico, ter uma boa aparência etc. A resolução de Stark no final do filme é importantíssimo para o resto da sua jornada, quando resolve destruir todas as armaduras, fazer a cirurgia que tanto postergava para tirar os fragmentos da bomba de perto do seu coração e tirar um tempo para si e Pepper. E por que é tão importante? Porque, para Tony Stark, ser o Homem de Ferro é parte da sua identidade.

Chegamos aos acontecimentos em Vingadores: A Era de Ultron (2015). Os Vingadores são uma equipe agora que, após Capitão América 2: O Soldado Invernal (2014), precisam desmantelar – de novo – a Hydra. Na instalação que estão invadindo, eles buscam pelo cetro (o mesmo do primeiro filme dos Vingadores), que, nas mãos da organização criminosa, é uma arma poderosa. E aqui temos uma das ironias do arco da Feiticeira Escarlate: ela mexe com a mente de Stark, cutucando uma ferida profunda que ele finge não existir – o medo de perder a todos que ama -, o que culmina na construção de Ultron – e sabemos como isso termina para ela.

Tony Stark dando os primeiros passos como Homem de Ferro. Reprodução: Marvel.

Com o cetro em mãos, Stark imagina as possibilidades de explorá-lo para criar um escudo ao redor do planeta, ao que impedisse qualquer invasão futura de acontecer, para que possa colocar a cabecinha no travesseiro e dormir sem pensar em uma nova onda de alienígenas tentando matar todo mundo, talvez esquecendo que boa parte dos seus inimigos vieram do seu jardim e não do espaço, mas tudo bem. Para isso, ele manipula o dr. Banner para ajudá-lo e, escondido da equipe, tentam criar Ultron, sem imaginar que a inteligência artificial criada veria a proteção do mundo de uma maneira mais distorcida e exagerada do que ele, apontando a própria humanidade como o verdadeiro inimigo – e, de certa forma, não está errado, não é mesmo?  Devo frisar que boa parte das ações tomada por Stark nesse são guiadas principalmente pelos seus medos, aqueles que não o deixam dormir direito. Tony não sabe lidar. Sua ideia de cuidar da sua saúde mental é delegando a necessidade de proteção do mundo para algo inumano, culminando na criação de Ultron. Resumo da ópera: façam terapia.

Capitão América: Guerra Civil (2016) é uma voadora com dois pés nos peitos de Tony Stark. A sua primeira cena é com uma lembrança do seu passado, revivendo uma cena em específico com seus pais para mostrar uma nova tecnologia ao seu público, uma que serve para ajudar a tratar traumas – quem diria, não é mesmo? Essa cena é importante, pois demonstra o vácuo sentimental que o personagem tem, principalmente em relação a seu pai, Howard Stark – que pulou de playboy irresponsável para um pai frio e distante. Em sucessão a esse momento, um pouco abalado, ele é abordado pela mãe de uma vítima de Sokovia, que o culpa diretamente. Nesse filme, em específico, a palavra-chave de Tony é “culpa”.

Assim, quando Ross vem com o discurso sobre responsabilidade, sobre terem cruzado fronteiras internacionais e agido por conta própria, sem autoridade alguma a não ser a que deram a si mesmos, é inevitável que Tony Stark apoie o Tratado de Sokovia. Como se não bastasse, Visão lança mão do seguinte discurso: “Nos oito anos desde que o Sr. Stark se anunciou como Homem de Ferro, o número de pessoas aprimoradas conhecidas cresceu exponencialmente e durante o mesmo período o número de eventos com potencial fim do mundo subiu em uma taxa notável […] Estou dizendo que pode ser uma consequência, a nossa força convida para o desafio, o desafio incita o conflito, e o conflito gera catástrofe.”.  Existe aqui uma culpabilização que não faz muito sentido quando falamos dos outros vingadores, mas, de fato, relacionado a Stark, após toda a sua trajetória, podemos analisar que… bem, todos os seus inimigos foram direta ou indiretamente culpa dele. E Sokovia também.

A situação é uma espécie de virada de mesa. Stark iniciou seu arco lá trás como alguém arrogante e acima da lei – afinal, tem uma tecnologia que ultrapassa qualquer coisa que o governo tenha feito -, enquanto Steve era apenas um soldado, obedecendo cegamente. Perante os eventos de Guerra Civil, Tony Stark se mostra em um estado permanente de ansiedade, abraçado por sentimentos negativos. Ele tenta desesperadamente fazer com que Steve, dessa vez, siga as regras impostas. Apesar de Tony insistir que separar os Vingadores é errado por dar armas ao inimigo, o personagem tem problemas em relação a abandono, que são intensificados pelo “tempo” que ele e Pepper estão tendo no relacionamento, pois, depois dos últimos filmes, abraçar o Homem de Ferro como sua identidade é doloroso para ela, que precisa vê-lo em estados deploráveis de saúde mental, sempre sofrendo com o peso de precisar salvar o mundo, se privando de diversas coisas para manter a sua tecnologia afiada para enfrentar quaisquer dificuldades, entre outras coisas.

Logo, com a omissão de Steve sobre a morte de seus pais e a tentativa deste em salvar o assassino deles é demais para Tony, que está sobrecarregado com sentimentos intensos de traição, abandono e medo. Rogers era um amigo para ele, e vê-lo preterindo Bucky dói mais do que tudo. Suas ações contra o Capitão América são 100% movidas por pura raiva. E, no fim, Tony vê, novamente, sua família se esfarelando. Aliás, devo comentar que, em Vingadores: A Era de Ultron, o ideal de Stark era acabar com o time, ele não ser mais necessário. Quando seu plano vai pro ralo, o seu desespero se torna latente. Afinal, ele nunca vai poder “ir para casa”, como ele mesmo insiste.

Em Homem-Aranha: De Volta ao Lar (2017), isso fica mais claro ainda. Em um papel que beira à paternidade, Tony tentar proteger Peter de várias maneiras e fica bravo quando ele não obedece. Sem experiência com adolescentes ou em ser pai, o nosso querido gênio bilionário filantropo comete os mesmos erros de seu pai, tentando proteger a cria, mantendo-se distante e evitando um diálogo, mantendo as conversas entre eles mais como ordens. Claro que nosso cabeça de aranha quer se provar merecedor da confiança do “pai”, que é o que todo adolescente faz. Mais de uma vez Tony “aparece” para dar bronca, dizendo que ele tem que ficar preso à vizinhança, com pequenos trabalhos. Sem um contexto correto, Stark pode ficar parecendo apenas um ditador, mas temos que lembrar o tamanho da cobrança que ele faz para si mesmo. Sua ideia é proteger Peter, mas o tiro sai pela culatra, ou não, já que o rapaz se prova mais do que confiável para dar conta de grandes ameaças – o que, secretamente, faz com que Tony fique orgulhoso e até sugere que ele pode estar pronto para andar com os grandes, ao que o próprio Peter diz que não. O fardo que Stark carrega é grande demais, e Parker sente não estar pronto de verdade para levá-lo.

Chegando em Vingadores: Guerra Infinita (2018), Tony vê a materialização dos seus piores pesadelos na forma de Thanos e, por mais que lute com todas as forças para evitar que o inimigo consiga seu intento louco, não vence. De novo, Stark tem que ver toda a sua família se transformar em pó, além de metade do universo. Após o retumbante fracasso, observando toda a tragetória dele, talvez fosse esperado que mergulhasse em autopiedade, abrisse ainda mais a ferida do luto, porém, o que realmente acontece é que Tony abraça o “fracasso”. Durante todo o seu arco, não ter controle sobre a situação o enlouqueceu, causou transtornos e dores psicológicas. Em Vingadores: Ultimato (2019), vemos um Tony Stark modificado. De certa forma, em paz com a situação toda. Não há nada que ele possa fazer, e ele simplesmente… deixou que esse fato se assentasse. Tanto que, quando Steve e os outros tentam convencê-lo que encontraram uma forma de trazer o universo ao normal, ele nega. Está bem casado, isolado da sociedade que tanto causou sofrimento a ele, com uma filha fofa e linda, vivendo a vida que, desde o começo, deveria ter tido com Pepper, longe do caos, sem carregar o peso do mundo nsa costas.

Infelizmente, Tony é um cientista, e a sementinha da dúvida, uma vez plantada, faz com que ele procure por respostas e, por ser um gênio, as encontra. Velhos hábitos nunca morrem, e Stark veste novamente a identidade que tinha deixado de lado: o Homem de Ferro. Com a viagem do tempo possível, o arco do personagem ganha mais camadas, e, principalmente, o fim de ciclos dolorosos – como a conversa que tem com o pai, onde finalmente chega a conhecê-lo e ouve tudo o que sempre quis. Tudo isso para, quando chegasse o momento correto, o único fim possível para Tony Stark estivesse com o terreno todo pronto, podendo finalmente descansar após o seu sacrifício final, indo para um lugar de descanso, onde o medo, toda aquela dor, não pudesse ir junto. Como diz Pepper, agora ele pode dormir em paz. Afinal, ele É o Homem de Ferro.

Capitão América e o homem bom

Em 1941, nascia o Capitão América para o mundo dos quadrinhos, sendo o primeiro super-herói engajado na luta contra o nazismo. Ele foi criado para esse contexto de Segunda Guerra Mundial, com o intuito mesmo de ser esse herói patriótico, um símbolo de “tudo o que faz com que os Estados Unidos sejam o melhor lugar do mundo para se viver” (fala de Joe Simon, um dos criadores do personagem). A princípio, o personagem foi rechaçado, pois, pasmem, os Estados Unidos, em grande parte, acreditava nos mesmos ideiais nazistas e vendiam armas para os dois lados da guerra, pouco se importando com quem ganhasse, desde que o próprio país mantivesse o lucro. Não esperavam, é claro, um ataque à própria nação, afinal, sabemos como é o ego dos estadunidenses, não é mesmo? E não só entraram na guerra, como até hoje boa parte do mundo acha que eles tiveram, de fato, um papel importante nessa vitória. Spoiler: não tiveram.

Os interesses estatais dos Estados Unidos, como agente do sistema internacional, manifestaram-se por meio da identidade nacional forjada pelas práticas que expressavam seu destino manifesto, doutrina nacional que influenciava a crença de que os americanos têm uma obrigação divina de salvar o mundo” ( COSTA, Priscila Borba da. O Destino Manifesto do Povo Estadunidense: Uma Análise dos Elementos Delineadores do Sentimento Religioso Voltado à Expansão Territorial. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE HISTÓRIA)

Por meio da indústria cinematográfica, os Estados Unidos passaram a vender a ideia do “jeito americano de ser”, ou o “sonho americano”, e, 9 meses antes do país entrar na guerra, o nosso Capitão nasceu, com ideais patrióticos de liberdade, igualdade e justiça. E, em 2011, saiu Capitão América: O Primeiro Vingador. Steve Rogers, apesar de ser franzino, fraco e doente, possui todos esses valores norte-americanos e pretende entrar na guerra e ajudar os seus compatriotas a vencerem o grande inimigo: Hitler. Inclusive, temos aqui um marcador externo muito importante para a narrativa do primeiro filme: o corpo. É a partir dele que o futuro Capitão América recebe tantos nãos. David Le Breton, sociólogo, salienta que, antes de qualquer coisa, a existência é corporal, sendo essa a primeira forma do ser humano. E essa forma é o que demarca a história de Steve do começo ao fim, pois, a princípio, é descartado facilmente e é até retificado mais de uma vez sua incapacidade física, principalmente nas inúmeras cenas em que o põem em contraste com os outros aspirantes a soldados. Mas isso não impede o personagem de tentar mais uma vez, pois, apesar do seu corpo parecer inútil aos olhos do exército, seu espírito inabalável é o que desperta em Erskine a curiosidade por ele e, assim, encontrar o que tanto precisava para o seu experimento: um bom homem. E sabemos que Steve é. Mas também foi uma pessoa rejeitada, abandonada, espancada e ignorada durante toda a vida, então mesmo quando não pôde ir para a guerra por ser propriedade do governo, um objeto que custou caro demais para arriscarem perder – novamente a questão do corpo -, ele é facilmente manipulado para vender a guerra aos cidadãos norte-americanos. Também, para o jovem, não basta apenas ter o corpo saudável, é necessário o reconhecimento. Durante essa passagem de tempo, vemos Steve não só ganhar confiança em si, como ficar deslumbrado com todos os aplausos, a atenção, o interesse das pessoas neles – todas as que o trataram mal no passado. Até que a realidade cai como uma bomba no colo dele ao perceber que não passava de um macaco de circo e, pela primeira em toda a sua vida, se impor ao ir resgatar não só o seu melhor amigo, como todos os soldados aprisionados pelo inimigo. Afinal, a guerra é o lugar dos homens honrados e seu trabalho de propaganda é apenas uma atividade de auxílio que não merece o mesmo valor e respeito, e, ao se deparar com a realidade dura e fria, é que se percebe, novamente, como alguém “abaixo” deles.

Steve Rogers passa de um moço ingênuo para um verdadeiro soldado e líder, lutando com toda a sua força e inteligência, usando todo o conhecimento que ganhou durante seu treinamento militar, ganhando o respeito após mostrar que consegue fazer sozinho o que um exército não conseguiu. E, para provar ainda mais esse distanciamento de ser apenas uma propaganda do governo para vender a guerra, ele nem se dá ao trabalho de comparecer a entrega de uma medalha de honra, mesmo que, graças a ele, os Estados Unidos se tornem uma unidade importantíssima para a vitória nessa guerra. Principalmente, contra um novo vilão, o Caveira Vermelha e a Hydra. Seus momentos finais no filme são essenciais para entendermos ainda mais o personagem, que não hesita em se sacrificar para o bem maior – o legado do homem bom.

Os amigos fiéis Rogers e Bucky. Reprodução: Marvel

Em sua segunda aparição nas telonas, vemos Steve Rogers em Os Vingadores (2012) ainda com o espírito de soldado. Ele nasceu e cresceu em um contexto de guerra, e acordar em meio à paz é confuso para ele, além da consciência latejante de tudo o que perdeu naqueles 70 anos em que esteve “dormindo”. Ele é um homem fora do seu tempo, incompleto, perdido. Ao entrar para a Iniciativa Vingadores, um propósito de vida surge ali ao voltar a ser um soldado, algo que Stark questiona. O fato curioso é que Steve sempre foi transgressor, e nunca serviu de maneira cega, procurando fazer o que é o correto desde sempre. Seus ideais são incorruptíveis. Mas, ali, como um Vingador, Rogers inicia sua nova carreira novamente de maneira ingênua, mas somente até ser apontado que confiar demais nas intenções do governo é meio que um erro, voltando às velhas origens em que buscava por si a verdade. Esse primeiro filme é importante para mostrar quem o Capitão América pode ser nesse novo mundo, tomando rapidamente a liderança, utilizando os pontos fortes dos seus companheiros e companheira para derrotarem o inimigo. Steve Rogers volta a ter um propósito.

Em Capitão América: O Soldado Invernal (2014), essa personalidade transgressora é novamente ativada quando se vê confrontado com a organização para o qual trabalhava, totalmente dominada pela Hydra, sua antiga inimiga. Lógico que não iriam querer o Capitão América por perto, mas a perseguição só acende o fogo dele, que, junto com Natasha, Hill, Fury, e o Falcão ajudam a derrubar. O passado bate à porta de Steve, que parece viver em um looping baseado em derrotar a Hydra, ao mesmo tempo em que ele se esforça para seguir em frente.

Em Vingadores: A Era de Ultron (2015), essa dualidade de passado e presente é bem forte. Claro, Steve busca caminhar nesse presente muito mais do que olhar para trás, pois nesse “novo” mundo, ele ainda é necessário – porém, podemos observar que a identidade de Capitão América se sobressai a sua pessoal e, ao contrário de Tony Stark, que teve anos e anos para errar antes de se encontrar como Homem de Ferro, esse fator não é algo positivo para ele. Logo no início, na festa, ele tem uma conversa com Sam, no qual o amigo pergunta se ele já encontrou um lar/casa no Brooklyn e Rogers responde que não acha que pode pagar por uma (lembrando que a única ocupação dele é… bem, ser o Capitão América). O Falcão está acostumado a lidar e a aconselhar ex-soldados(as) que perderam tudo, e esses pequenos incentivos para que siga em frente que ele dá a Steve são dolorosos para o mesmo. Na brincadeira de levantar o Mjölnir, o público esperava que o queridinho do Capitão América levantasse o martelo e ficou se questionando quando não aconteceu. A teoria, até então, era culpa – por causa do que ele sabia sobre Bucky e os pais de Stark, e… há controvérsias. Apesar do que Christopher Markus e Stephen McFeely responderam aos fãs nesse twitte:

Eu diria que ele ainda não era merecedor. Ele ainda tinha o segredo sobre os pais de Tony para resolver (em tradução livre), o co-diretor de A Era de Ultron, Anthony Russo disse que o Capitão não levantou em respeito a Thor.

Em nossas mentes ele era capaz de empunhá-lo, sim. Ele não sabia até aquele momento em “Era de Ultron” quando tentou levantá-lo. Naquele momento o Capitão percebeu que poderia levantar o martelo, mas por causa de seu senso de caráter e humildade, e por respeito ao ego de Thor, ele decidiu não fazê-lo.” (FONTE: https://screenrant.com/captain-america-mjolnir-worthy-explained-russos/ – em tradução livre).

Em outro momento do filme, somos levados para a visão que a Feiticeira Escarlate o faz ter – o futuro que deveria ter sido e nunca foi, sua prometida dança com o amor da sua vida. E sabemos, em Capitão América: O soldado invernal, que Steve até tentou sair com outras mulheres, teve até o pedido desengonçado que ele faz à agente 13 antes de saber que ela era da S.H.I.E.L.D e, mais tarde, eles trocam um beijo em Capitão América: Guerra Civil – o que provoca várias perguntas bizarras sobre a linha do tempo dele, visto que ela é sobrinha de Peggy e já temos o spoiler de que ele volta no tempo para viver a vida com ela, logo… O que Kevinho estava pensando, não é mesmo?! Teoricamente, Sharon deveria saber que ele é seu tio, ou talvez ela só não se importasse em “furar o olho” da tia, e cogitaram oficializar os dois como casal – e provavelmente viram que seria uma péssima ideia. A própria atriz, Emily, afirma que ri da cena, e Hayley Atwell, que faz a agente Carter, também ri da situação, afirmando que ele provavelmente contaria a ela sobre o beijo. De qualquer forma, o MCU se faz de doido e finge que o beijo foi um delírio coletivo.

No fim de A Era de Ultron, o Capitão que começou desejoso de todo aquele passado, está disposto a desistir disso e seguir em frente, de verdade dessa vez. É o primeiro vislumbre que Steve tem de si mesmo e não do super-herói que visualizam nele, mas, se observarmos de perto, ao se tornar líder oficial dos Vingadores, com uma instalação e “soldados” para pôr em ordem, é quando ele afirma estar em casa – e é um contexto muito parecido com o qual ele tanto desejou no seu primeiro filme. Um em que é necessário sempre estar pronto para a batalha. Podemos pensar em duas possibilidades: ou ele abraçou a identidade Capitão América como sendo a mesma de Steve Rogers, ou continua tão perdido quanto no começo – mas com uma sensação de perspectiva. Em Capitão América: Guerra Civil (2016), o personagem está 100% inserido nessa vida de combater o mal e salvar os inocentes, personificando toda a ideia maniqueísta de bem e mal que normalmente os quadrinhos vendem, porém, nesse filme, é subvertida essa ideia ao mostrar que super-heróis também podem causar a morte de inocentes, mesmo que apenas com o chamado “dano colateral”. A população mundial divide-se entre os que estão satisfeitos com o trabalho feito pelos Vingadores e os que sofreram perdas nesse meio, com a opinião de que eles mais causaram mal do que bem (em tese, se não há super-heróis, não há vilões para se combater, apenas os crimes cotidianos). Assim, o governo dos Estados Unidos quer colocar os Vingadores sob o controle de um painel especial da Organização das Nações Unidas (ONU), chamado de Acordos de Sokóvia, onde esses super-heróis precisam ser responsabilizados.

Tony Stark, vivendo sob a asa da culpa (afinal, ele tem muita mesmo), pula de cabeça no acordo, enquanto Steve Rogers, que já viveu sendo limitado pelo governo uma vez, não se empolga com a ideia, afinal, com esse controle, eles só poderiam agir onde e quando esse painel da ONU permitisse. Apesar de enxergar como sendo necessária essa responsabilização, mesmo não sendo exatamente culpa deles boa parte das perdas, esse acordo viria a podar a ação deles, podendo até mesmo impedir que seja feito o que precisa ser feito – algo que preocupa imensamente o Capitão.

O Capitão seria a síntese da ideologia militarista norte-americana: um herói intervencionista, que toma a justiça pelas próprias mãos, contra governos estrangeiros que representariam “o mal”, justamente por seguirem outro modo de vida que não o norte-americano. A única arma usada pelo Capitão – um escudo – representaria a ideia de que os EUA só atacam para se defender; o fato do Capitão agir de forma independente – do governo ou de instituições – faz parte da ideologia liberal capitalista da “livre iniciativa”, onde pessoas vestem uniformes e saem caçando criminosos (no caso do Capitão, espiões e agentes terroristas) por sua própria conta” (FONTE: SOUSA, Nano. “Capitão América: Herói ou Vilão?” 2003)

Descobri que Bucky “está envolvido” no assassinato do rei de Wakanda faz com que Rogers imediatamente se jogue no perigo, afinal, são amigos de infância, praticamente um irmão. E também porque, sendo ambos supersoldados, o Capitão seria o mais indicado para fazer essa prisão. Até descobrir que Barnes, na verdade, está sendo incriminado. E nesse filme, o instinto de bom homem de Steve funciona em 100%, não só para ajudar um amigo, mas para fazer o que é certo – que é derrotar o Barão Zemo e encontrar os outros supersoldados antes dele, para que não cause um mal maior. Ele não quer lutar contra seus amigos ou o governo, entretanto, ao acontecer exatamente o que previu, que é ser necessário em um canto e ser barrado pelo governo (sabemos da burocracia governamental), o Capitão América não hesita em entrar em um embate contra eles. Fazendo um quote do próprio personagem: “Nosso trabalho, é tentar salvar o máximo de pessoas que pudermos. Às vezes não significa todo mundo. Mas você não desiste.”. Apesar de sua amizade com Stark parecer ficar balançada, Steve se esforça para mostrar a ele que cometeu um erro ao não contar sobre seus pais – o que me lembra as falas do próprio Tony sobre o Capitão América não ter um “lado ruim”.

Quando chegamos em Vingadores: Guerra Infinita (2018), vemos um novo fôlego no personagem. Sabemos, por Thor: Ragnarok, que se passaram pelo menos dois anos desde os últimos acontecimentos com Steve Rogers e os outros. Mais do que nunca, vemos o quanto o Tratado de Sokóvia podaria a equipe quando ele retorna, mandando Rhodes prendê-lo, sendo que o planeta está sob o ataque – de novo – de alienígenas e criaturas que Ross não pode combater com suas armas humanas. Os princípios que moldam o Capitão América permanecem basicamente os mesmos. Em uma fala sua, mesmo sabendo que destruir a pedra da mente poderia salvar metade do universo, ele afirma que “não negociam vidas” e, assim, tentam de tudo para salvar o Visão e poder separá-lo da pedra. Já sabemos que falha, mas o Capitão não seria ele mesmo se ao menos não tentasse – parte de sua índole envolve persistir até o último instante, o que normalmente é positivo, mas, nesse caso, as consequências foram além do que qualquer um deles poderia imaginar. Em Vingadores: Ultimato (2019), Steve, assim com os outros, tem que sobreviver ao fato de que, 5 anos atrás, eles até mataram Thanos… E deu em nada. Tendo que encontrar um novo propósito, ele une o que aprendeu em vida, sobre seguir em frente mesmo perdendo tudo, e faz um grupo de ajuda – talvez a única coisa que pudesse fazer, pois o mundo inteiro está abalado.

Em um breve parênteses, sabemos que, por mais que Steve se esforce para seguir em frente e viver, essa é a única coisa que ele nunca fez. Steve Rogers, desde que acordou, 70 anos depois do seu tempo, nunca baixou o manto de Capitão América. Em Ultimato, é a primeira vez que o vemos fazendo algo que não seja ser um super-herói, e sim apenas o apoio de pessoas que precisam dele. Algo por Steve, não para o Capitão. É quanto Lang reaparece, Tony encontra a solução para a viagem no tempo e devolve o escudo. Steve tem dúvidas quanto a voltar a ser o Capitão América, aceitar o manto novamente, mas Stark insiste e aqui temos uma espécie de reconciliação entre velhos amigos. O que é importante para ambos os arcos, que caminham para fins específicos. O de Steve Rogers, curiosamente, é literalmente o ditado “Um passo para frente, dois para trás”, pois, após salvar os amigos, ter aquela linda luta final usando o Mjolnir, tem a oportunidade única e pelo qual, mesmo sem admitir, sempre esteve esperando: a de voltar e ter a vida que sempre sonhou ao lado de Peggy. Em paz. Estabilidade. Uma vida.

E assim, finalmente, separar quem é Steve Rogers do Capitão América e passar o manto para Sam.

E aí? Ainda acham que os filmes da Marvel são rasos? Não se desespere, o universo da Marvel é vasto demais para ficarmos apenas nos dois, não acham? Logo mais, a parte 2!