Representação LGBTQIA+ nos desenhos animados

Como alguém que nasceu nos anos 1990 e foi uma criança nos anos 2000 com acesso à TV a cabo, cresci assistindo os desenhos animados no Cartoon Network, Nickelodeon, Disney Channel, Jetix (é o novo) e por aí vai. Costumo dizer que alguns deles foram fundamentais para a minha formação, como Lula Molusco, minha alma gêmea. Não é porque fiquei adulta que deixaria esses mundos animados para trás. Na verdade, quanto mais amadureço, mais entendo o quanto são incríveis.

Se você se identifica com esse relato, deve ter percebido também o aumento das tentativas de incluir personagens LGBTQIA+ nas animações (quer dizer, muito mais as duas primeiras letras da sigla), não só porque nossa compreensão está mais aguçada, mas também porque há um real esforço e uma maior permissividade em tentar mostrá-los por parte de quem cria e financia.

Vou tentar traçar uma cronologia e elencar algumas razões para esse fenômeno, mas, com esse texto, o que quero é dar meu depoimento enquanto espectadora apaixonada por desenhos que, junto com eles, foi se permitindo reconhecer, aceitar e assumir sentimentos por pessoas do mesmo gênero.

Assim, vou listar animações icônicas para a representação queer que mais me marcaram, até porque eu não teria como falar de todas. Não por acaso, a maioria das que escolhi  tem um caráter comercial, foram produzidas nos Estados Unidos e direcionadas a uma grande audiência. Por conta disso, havia o interessante de que mantivessem um determinado discurso em relação aos sujeitos LGBTQIA+, seja por meio de uma representação distorcida ou pela sua completa ausência.

American Way of Life

Lá atrás, antes da criação de desenhos animados, televisão e do capitalismo, as três grandes civilizações antigas – romana, grega e egípcia – eram politeístas e aceitavam a homossexualidade, até como forma de instrução pedagógica. Segundo estudiosos dessas mitologias, havia união homoafetiva entre divindades, o que é um forte indício da aceitação desse tipo de relacionamento em uma cultura. Com a instituição do cristianismo pelos impérios romanos, a homossexualidade passa a ser vista como pecado e se torna motivo para castigos, prisões e mortes. Como é impossível dissociar religião de cultura na civilização judaico-cristã, esses valores LGBTfóbicos são fortemente assimilados pela nossa sociedade.

Dando um salto para o século XX, pairava nos Estados Unidos, durante a Guerra Fria, o medo representado pela ameaça vermelha. A disputa ideológica se acirrava e era muito importante para o país defender com unhas e dentes o seu estilo de vida, reafirmando sua superioridade e perseguindo tudo aquilo que poderia questioná-lo. Provavelmente, não havia maneira melhor de propagar seus valores capitalistas (misóginos, racistas, hétero e cis-normativos) do que por meio de produções culturais.

A trama discursiva dessas produções (desenhos animados) opera tanto nas formas de representar a natureza, quanto na produção de nacionalidade/etnia, raça, gênero e sexualidade” (KINDEL, 2003).

Em um país no qual homossexuais foram perseguidos no serviço público até os anos 1960 e que expressamente proibia relações entre  pessoas do mesmo gênero, não seriam os desenhos animados que iriam se opor ao padrão estabelecido, no qual a homossexualidade não fazia parte. Assim, as obras audiovisuais nessa época desconsideravam a existência de pessoas queer, para que não houvesse risco de transmitirem ideias “erradas” ao público. Na animação, isso ocorria de modo ainda mais inflexível, porque era considerada um gênero voltado exclusivamente para o público infantil, ideia que ainda predomina atualmente, inclusive. Até hoje, ouvimos o discurso de pais que não querem que seus filhos “aprendam a ser gays com os desenhos”.

Porém, a comunidade LGBTQIA+ sempre existiu e, como qualquer outra, sentia a necessidade de ser representada. Por isso, alguns personagens passaram a ser adotados por esses sujeitos por conta de características e trejeitos que provocavam uma certa identificação. Um deles é o famoso Pernalonga que, já nos anos 1940, usava batom e saia 

Se por um lado a minoria não heterossexual tentava criar seus ícones, por outro, a intenção desses personagens, muitas vezes, era ridicularizar as características associadas aos homossexuais. Em outras, seus nomes eram utilizados como termos pejorativos, mesmo que não houvesse confirmação sobre sua homossexualidade no enredo ou por afirmação de seus criadores. Eram apenas especulações apoiadas em estereótipos grotescos, ou apenas pequenos desvios em relação às masculinidade e feminilidade.

Anos depois, para deixar bem expresso que as suspeitas sob o Pernalonga eram falsas, deram a ele uma namorada, Lola, uma coelha de lacinho e cílios grandes. Velma, do Scooby-Doo, tomou um rumo parecido que chega a ser triste. Ela era presumida como lésbica por causa do seu visual e, mais tarde, inventaram um interesse (forçado) romântico dela pelo Salsicha, sem sal algum.

Anos 1990

Em 1989, o mundo presenciou a queda do muro de Berlim e, sem o inimigo russo, a necessidade de defender a bandeira dos EUA e tudo que ela representava foi um pouco dissolvida. É claro que isso não aconteceu de repente, pois desde os anos 1960, movimentos que questionavam o orgulho e o modo de vida estadunidense ganhavam força. Em 1969, um ano depois da onda de protestos contra a Guerra do Vietnã e por direitos civis, ocorre o Stonewall Inn em Nova York, um “basta” na repressão policial contra homossexuais e travestis (1).

Voltando aos desenhos animados, nos anos 1990 foi possível perceber uma amadurecimento em relação às histórias. Passou a ser mais comum que as séries de animação tivessem um arco dramático para toda a temporada e não apenas episódios com narrativas independentes. Além disso, poderiam explorar outros terrenos que não fosse a comédia, aprofundando mais na subjetividade dos personagens.

Aliás, a animação para adultos em forma de sitcom, caminho aberto com Os Flintstones, também foi ganhando espaço. Em um episódio de Os Simpsons, Patty, a irmã da Marge, confessa que está noiva de uma mulher. Dentre tantas cenas pesadas, de violência explícita que o seriado apresenta, este foi o capítulo em que colocaram um aviso de “conteúdo impróprio para menores” na abertura.

Nessas animações para adultos, os pessoas queer começaram a aparecer, mas sua personalidade se resumia à orientação sexual, como se fossem ninfomaníacos. Apesar disso, só de mostrar que a atração entre pessoas do mesmo gênero existe já foi um avanço. Pra você ver como a barra era baixa…

 

 

Enquanto isso, lá no Japão, a animação era desenvolvida de modo um pouco diferente. O público alvo não era necessariamente o infantil e os romances entre gays e lésbicas aconteciam de forma quase tão natural quanto às relações heterossexuais. Porém, quando essas produções chegavam nos EUA, sofriam cortes e mudanças grotescas na tradução, fazendo parecer, por exemplo, que Haruka e Michiru, casal de Sailor Moon, eram na verdade duas primas muito próximas. E eram essas sobras da censura estadunidense que chegavam para nós.

 

Eu era muito pequena para entender esse anime de verdade, ao contrário de Sakura Card Captors, que assisti já um pouco mais consciente. Mesmo assim, confesso que não entendia o crush de Tomoyo por Sakura, nem a tensão romântica entre Touya e Yukito. Tudo bem, pode ser que eu não fosse a criança mais atenta de todas, mas atribuo a razão disso ao fato de que minha mente foi moldada para não admitir atração entre dois homens e duas mulheres. Para mim, isso não existia. Não poderia existir. Eram, no máximo, interpretações depreciativas daqueles que enxergavam imoralidade em tudo.

A década de 1990 é também conhecida como o Renascimento da Disney, e assisti aos filmes lançados na época umas dezenas de vezes. Pesquisando sobre seus vilões, encontrei uma tal de Codificação queer, que se refere a um personagem que demonstra traços contrários ao que se espera do seu gênero, mas que nunca são reivindicados como queer pelo seu criador. Acredita-se que Andreas Deja, animador de Scar e Jafar, adotou a própria personalidade como inspiração para criá-los, já que também é gay. Essa afirmação não foi confirmada, mas é possível perceber que esses dois vilões apresentam uma “masculinidade feminina”, em que sua construção mescla atributos visuais relativos aos homens com signos, características e visualidades socialmente consideradas femininas (BALISCEI, 2019).

Úrsula, por sua vez, foi inspirada em Divine, uma drag queen famosa nos cinemas. Por causa de sua maldade, voz grossa e atitudes indelicadas (ou, como diria Lorelay Fox em um vídeo que se detém mais nesse tema, sua “vibe caminhoneira”), também se afasta do que é considerado feminino. Por que será que era tão recorrente personagens assim estarem associados ao Mal? (2)

Fora do circuito comercial de longas-metragens e séries, havia mais liberdade para os artistas e a representação LGBTQIA+ já aparecia com mais frequência. Foi nesse meio que o animador brasileiro Otto Guerra lançou o curta Rocky e Hudson, os cowboys gays, em 1994. Acho que a aparição deles mais reforça estereótipos do que realmente representa, mas, assim como nos casos anteriores, já é alguma coisa.

Anos 2000 (saudades)

Antes de casais e beijos gays terem aparecido de maneira explícita, essa preocupação maior com um público não infantil e com a construção de arcos dramáticos mais sólidos permitiu que os enredos das séries animadas, ao tocarem em conflitos mais profundos, pudessem insinuar a existência de sujeitos e relacionamentos LGBTQIA+. No entanto, ainda era preciso disfarçá-los.

Um exemplo disso é Hey Arnold, série criada nesse contexto de maior liberdade da década de 1990 e, até seu fim em 2004, acompanhamos os dilemas de um menino que está deixando de ser criança. Sempre que me lembro de algum episódio, assimilo uma nova camada, principalmente quando a história girava em torno de Helga G. Pataki, uma das minhas personagens favoritas de todos os tempos. Mas o destaque, desta vez, vai para o Professor Simmons.

No episódio em que Helga e Arnold o visitam no Dia de Ação de Graças, os dois presenciam uma troca de farpas entre a mãe de Simmons e Peter, um dos convidados. “Não sabia que Peter vinha hoje”, diz ela. Ele retruca: “Tem muita coisa que você não sabe”. Mais tarde, o criador da série Craig Bartlett desejou feliz mês do orgulho ao Prof. Simmons em suas redes sociais, confirmando que, o que a mãe dele não sabia era mesmo o seu relacionamento com Peter.

Essa sugestão não foi suficiente para que eu compreendesse na época, mas ao rever, esse subtexto faz todo o sentido. Diferente de uma certa autora de livros infantojuvenis que, antes de usar as redes sociais para declarações transfóbicas, confirmava fatos externos à sua história sem desenvolver direito, como a sexualidade de seus personagens. Mas, em respeito a toda a comunidade LGBTQIA+, melhor não falar mais dela.     

Um dia desses, reassisti Seis Dezesseis (6teen), inclusive as temporadas que não ganharam tradução brasileira, nem foram exibidas no Brasil. Recordo que adorava o casal Nikki e Jonesy, por ele ser um Don Juan que se apaixona de verdade por ela, mesmo eles dois sendo bem diferentes. Mas, vendo com os olhos de hoje, fiquei bem desconfiada da heterossexualidade de Nikki.

Para minha surpresa, essa suspeita se confirma no episódio em que Nikki conhece Jean e, sem perceber, prefere passar mais tempo com ela do que com seu namorado. Ao final, Jean revela que realmente sente atração por mulheres, mas que nada aconteceria entre ela e Nikki. Esta, por sua vez, dá a entender que não tinha interesse em deixar Jonesy, mas os roteiristas foram até ousados para a época, deixado bem nítido que Nikki é, “no mínimo”, bissexual. Sabe-se lá com quem ela ficaria ou qual casal eu shiparia se a série fosse feita atualmente…

Não podia deixar de falar do desenho animado que é justamente o responsável pelo senso de humor de toda uma geração. Ele mesmo, Bob Esponja Calça Quadrada, cuja sexualidade foi sempre discutida e a homossexualidade refutada. Agora, é um dos símbolos gays da Nickelodeon e, desde já, quero deixar evidente que adorei sua saída do armário. Mas não acho que a falta de interesse romântico ou a manifestação de certas características façam dele, necessariamente, um homossexual.

De todo modo, a personalidade de Bob não gira em torno de sua orientação sexual, o que é um ponto positivo, pois naturaliza a existência de quem é como ele. O mais importante é que seja feliz, preparando hambúrgueres de Siri e caçando água-viva.

bob esponja lgbtqia

Enfim, chegamos. Mas ainda há muito o que trilhar

Depois de tudo isso, deu para perceber que a comunidade LGBTQIA+ não começou a aparecer nos desenhos animados do dia para a noite. Mas, de fato, essa presença começou a ficar mais explícita e frequente ao longo da última década. Estúdios grandes estão dando seus primeiros passos, colocando beijos e casais não heterossexuais como coadjuvantes em cenas curtas. Ainda é complicado trazer isso à tona em produções voltadas para a infância, pois representar sujeitos queer parece algo muito sensível para grande parte dos pais, que são de gerações anteriores e se mantém conservadores quanto ao tema. Por isso, toda vez que vejo, nem que seja uma pequena insinuação, já considero uma vitória.

Antes do streaming, quando a TV por assinatura era mais popular, os grandes canais também não davam tanta liberdade, pois dependiam da veiculação de comerciais que, à época, não consideravam lucrativo apoiar a causa LGBTQIA+. Apesar disso, os criadores de A lenda de Korra fizeram o possível para tornar Korra e Asami um casal no fim da série. O clarão que envolve as duas não permite que vejamos o beijo, mas, se você comparar, elas terminam na mesma posição de Aang e a Katara no final de Avatar: A lenda de Aang. Além disso, um dia depois que o episódio foi ao ar, os criadores Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko confirmaram em suas redes, para que não houvesse dúvidas.

           

O mesmo não aconteceu em She-Ra e as Princesas do Poder, animação produzida pela Netflix, plataforma que sempre se mostrou mais receptiva para a diversidade. O que acontece ao final de She-Ra é uma delícia de beijo entre Catra, a vilã em boa parte da trama, e Adora, a heroína. Sem cortes e sem censura.

Noelle Stevenson, responsável pela criação do desenho, é uma pessoa não-binária que colocou muito de si na concepção dos personagens. Ela não só teve a liberdade para dar o fim que queria para Catra e Adora, como também desenvolveu na série casais queers como algo tão normal quanto os héteros.

Stevenson faz parte dessa turma que nos anos 1990 eram crianças vidradas em desenhos e agora, adultas, produzem suas próprias animações. Além de uma nítida influência nos animes japoneses populares dessa época, podemos ver que essas obras são uma forma que as artistas têm de expressar, dentre outras coisas, sua sexualidade. Bem, quem é fã já deve saber que eu também estou falando de Rebecca Sugar, que fez parte da equipe de Hora de Aventura (3) e criou o desenho com mais açúcar, mais tempero e tudo o há de bom da galáxia: Steven Universo.

Steven é um menino meio humano, por parte de pai, meio alienígena, por parte de mãe. Esta, chamada Rose, veio de um planeta em que só existe o gênero feminino e chegou à Terra com outras três extraterrestres: Garnet, resultado da fusão de Rubi e Safira (que se casam, inclusive), Ametista e Pérola, que nutre um amor não correspondido pela mãe de Steven. O protagonista descobre que também tem o poder da fusão e se une à Connie, por quem é apaixonado. E a pessoa que resulta dessa união entre Steven e Connie é, adivinha: Stevonnie.

É incrível que hoje uma pessoa não-binária como Rebecca possa se basear nas próprias vivências para desenvolver em sua obra personagens não cis-normativos, como Stevonnie, e relações não heteronormativas, como a de Rubi e Safira. E a trama elabora com riqueza os conflitos e as descobertas decorrentes desses amores e fusões.

Tenho primos pequenos que adoram Steven, She-Ra e a Hora da Aventura porque, acima de tudo, são séries divertidas. Ao mesmo tempo, hoje em dia, as crianças têm a oportunidade de crescer assistindo histórias que admitem a diversidade de gênero e de sexualidade de modo bem mais natural do que acontecia na minha infância. As animações que citei mostram que uma animação inclusiva pode também conquistar um grande público. As portas foram abertas e espero que possamos ver, no futuro, uma diversidade ainda mais representada, com os diversos sujeitos da comunidade LGBTQIA+ nos desenhos animados.

Notas:

(1) Stonewall é um bar gay em Nova York e também o local onde ocorreram os motins considerados um marco para o movimento de libertação gay e para a luta moderna pelos direitos LGBTQIA+ nos EUA. Ocorreram na madrugada do dia 29 de junho, até hoje considerado o mês do orgulho queer.

(2) Na época, a comunidade LGBTQIA+ ainda era muito vista como vilã graças ao HIV, o “vírus gay”, que na década anterior havia provocado milhares de mortes.

(3) Não deu para colocar no texto porque é muita coisa para falar e precisei fazer escolhas. Mas tenho que dar a devida atenção ao casal Marceline e Jujuba em Hora da Aventura, romance que tentam disfarçar nas primeiras vezes que aparecem juntas, mas as duas deixam escapar que têm um passado. No episódio What Was Missing (temporada 3, episódio 10), Marceline canta uma música para Jujuba, em que a letra começa com ofensas e evolui para uma declaração de amor cheia de ressentimentos, indicando que elas tiveram um relacionamento que acabou mal resolvido. E o melhor, quem fez o storyboard desse episódio foi Rebecca Sugar.

Referências:

BALISCEI, João Paulo. O VILÃO SUSPEITO: o que há de errado com a masculinidade dos vilões da disney?. Diversidade e Educação, [S.L.], v. 7, n. 2, p. 45-70, 20 fev. 2020. Lepidus Tecnologia. http://dx.doi.org/10.14295/de.v7i2.9422.

KINDEL, Eunice Aita Isaia. A natureza no desenho animado ensinando sobre homem, mulher, raça, etnia e outras coisas mais. 2003. 195 f. Tese (Doutorado) – Curso de Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.