Ao se falar de filmes brucutu da década de 1980, um dos nomes que pipocam na nossa cabeça de cara é Rambo: Programado Para Matar, cuja estrela é ninguém menos que um dos ícones da época: Sylvester Stallone. O longa foi lançado em 1982, sendo baseado no livro “First Blood” de David Morrell, que possui diferenças marcantes em relação à sua versão cinematográfica, mas falaremos sobre isso depois.
A melhor coisa sobre “Rambo: Programado Para Matar” é que, ao contrário dos seus outros compatriotas cinematográficos brucutus, esta obra não foi feita para exaltar a figura masculina, seus ideais patrióticos ou o poder das armas. Não, o filme nasceu como uma denúncia ao modo como os EUA tratavam seus ex-soldados, que, após a guerra, foram abandonados à própria sorte, tornando-se muitas vezes instáveis, depressivos, e pessoas em situação de rua, por falta do suporte do seu próprio país e da sociedade, que os rejeitou por conta das crueldades cometidas durante a Guerra do Vietnã.
E como tal personagem tornou-se um emblema brucutu? Bom, isso aconteceu a partir do seu segundo filme, quando simplesmente desmembraram o significado profundo do personagem e o transformaram em uma criatura tão rasa quanto um pires. Agora, Rambo é apenas mais um símbolo dos EUA, mas, um dia, ele foi um símbolo contra – inclusive sendo o filme chamado de obra comunista, coisa de esquerdista, por ter um teor antiguerra. E tem coisa mais esquerdista do que ser contra a guerra?
Contexto Histórico em Rambo
“Rambo: Programado Para Matar” saiu durante o governo de Ronald Reagan, em 1982, uma era muito conservadora e marcada pelo militarismo e sentimento de derrota devido à Guerra do Vietnã – e já sabemos como os EUA aceitam perder. O cinema estadunidense, principalmente na década de 1980, tornou-se uma grande propaganda anticomunista, exagerando e muito nos feitos desses “vilões”, que poderiam surgir a qualquer momento para nos eliminar, vendendo a ideia de que só havia dois lados: os EUA e quem discordasse desse grandioso país.
A quantidade de filmes feitos sobre a Guerra do Vietnã é extensa, principalmente na época, com alguns focando em apontar as atrocidades cometidas durante esse período, como “Apocalypse Now” (1979) e “Platoon” (1986), enquanto outros exaltavam o país, talvez para aplacar a ferida aberta que a derrota dos EUA deixou. Mas nosso foco aqui é “Rambo: Programado Para Matar”, que, apesar de ser considerado uma propaganda antiguerra, sua denúncia é outra.
Vamos voltar um pouco e dar uma leve contextualizada nesse período histórico para entendermos melhor o sentimento geral da nação e o nascimento dessa obra.
Durante a Guerra Fria (1947 a 1991), o “mundo” ficou dividido ideologicamente entre EUA e URSS (capitalismo x comunismo), e um dos eventos históricos que mais marcaram esse período de divisão foi nada mais, nada menos, que a grande derrota dos EUA: a Guerra do Vietnã (1954-1975). Esse famoso conflito começou logo depois de outro, a Guerra da Indochina (1946 a 1954), em que vietnamitas lutaram contra tropas francesas pelo fim do domínio francês na chamada Indochina Francesa (que obviamente não existe mais). Os vietnamitas ganharam, mas precisaram assinar sua “independência” na Conferência de Genebra (1954), que ainda determinava que o país ficaria dividido entre Vietnã do Sul e Vietnã do Norte, para ser unificado no ano seguinte, com eleições.
Porém, como esperado, o líder do Vietnã do Sul, Ngo Dinh Diem, recusou-se. De acordo com ele, o Vietnã do Norte era incapaz de participar de eleições livres e aí resolveram cair na mão, claro.
Como sabemos, os Estados Unidos sempre estão de olho em qualquer país que possa provar que o seu sistema econômico e social está errado, e já apoiavam o Vietnã do Sul, então, assim que a guerra eclodiu, os EUA forneceram todo o suporte necessário para os amiguinhos, como armas e treinamento militar.
Afinal, o que aconteceu para que um país tão poderoso, no caso, os EUA, a ponto de “repartir” o globo com a URSS se desse tão mal na única coisa que sabem fazer melhor do que todo mundo?
Até 1963, os EUA só participavam de forma indireta, e sua justificativa para o mundo era o medo da expansão comunista. Na época, o presidente era Kennedy, que não queria um envolvimento direto, mesmo enviando helicópteros, armas, equipamentos e outras tecnologias de guerra. Afinal, os tais vietcongues estavam dando um pau neles, o que preocupava imensamente aquele mundo capitalista. Porém, o presidente Kennedy é assassinado, então subitamente essa política mudou e, supostamente, embarcações estadunidenses teriam sido atacadas pelo Vietnã do Norte, “forçando” o país a se envolver de forma direta na guerra.
Agora, o Vietnã do Sul não estava mais apanhando sozinho, pois estava perdendo a guerra junto com os EUA. Apesar das táticas violentas de guerra aprendidas na 2ª Guerra Mundial darem muito certo (artilharia terrestre com suporte de ataques aéreos), as ofensivas de guerrilha funcionavam ainda mais contra o exército inimigo.
Apesar dos protestos nos EUA e no mundo contra a Guerra do Vietnã, a verdade é que as pessoas no país americano ainda eram muito a favor, já que ego é bem o forte deles. Mas, com o tempo, o número alarmante de soldados estadunidenses mortos começou a preocupar até mesmo essas pessoas, que começaram a pressionar o governo em relação à guerra.
Além disso, os soldados norte-americanos começaram a propagar crueldades que eram noticiadas mundialmente, como genocídios a vilarejos de civis em busca de guerrilheiros, massacrando a população vietnamita inocente. Claro, os conflitos ainda se arrastaram durante anos, mas os EUA foram obrigados a se retirar com o rabo entre as pernas e todas as tentativas de ajudar o Vietnã do Sul a vencer sem eles não deram em nada, resultando na vitória do Norte, ou seja, o comunismo venceu.
Com tudo isso, a visão geral da população em relação aos ex-combatentes estadunidenses que participaram da guerra tornou-se muito negativa, sendo chamados até mesmo de matadores de bebês. Esses veteranos tornaram-se marginalizados, sendo vistos com desconfiança, e sendo a eles atribuídos muitos sentimentos, desde a culpa por terem perdido a guerra, até o modo como lutaram nela.
“Rambo: Programado Para Matar”
John J. Rambo (Sylvester Stallone) inicia a história descobrindo que o seu último companheiro de guerra morreu por causa de um “câncer trazido pela guerra” (causado pelo agente laranja usado contra os vietcongues). Enquanto segue seu caminho a pé pela estrada, passa por uma cidadezinha cujo xerife, Will (Brian Dennehy), não o deixa entrar e trata de expulsá-lo, pois este seria apenas mais um vagabundo arruaceiro.
O xerife lhe dá uma “carona” até o limite da cidade, em sua clara mensagem de que não é bem-vindo, mesmo sem ter feito coisa alguma. Seu tratamento violento e preconceituoso faz com que Rambo fique confuso. O ex-soldado ainda pergunta o que o xerife tem contra ele, e o homem é uma metralhadora de ofensas, reiterando com força de que ele é a lei. Por fim, a autoridade o prende por vadiagem e desacato à lei só porque o homem tenta voltar à cidade. Nesse momento, há uma percepção da revolta interna do ex-soldado sobre a injustiça que sofre, pois sua clara intenção, exibida em um diálogo rápido com o xerife, é de encontrar um lugar para comer, provavelmente tomar alguma coisa, um quarto… uma passagem rápida.
São cenas extremamente desconfortáveis, devo dizer, e com muita atenção aos detalhes. Vemos a respiração curta de Rambo; sua expressão, antes apática, agora acolhe sobrancelhas franzidas e uma boca amuada; ele abre e fecha a mão, tentando não dar ouvidos ao xerife, que propositalmente o provoca. O poder escorre de seus dedos ao saber que pode fazer o que quiser que não haverá consequências, já que ele é a própria lei (segundo ele mesmo).
Ao chegar à delegacia, vemos o ex-boina verde (força militar de elite que se tornou conhecida por sua atuação na Guerra do Vietnã, especialistas em táticas de guerrilha etc.) sendo destratado de forma cruel, com a polícia o cutucando de todas as formas, como a um vadio qualquer de rua – o que já não estaria certo – exagerando na violência policial, que chamam de “brincadeira”. Só por puro deleite, o suco do masculinismo, provações de macheza perante outros homens. Rambo vai ficando cada vez mais à flor da pele, completamente engatilhado a cada violência sofrida, que vai lembrando ao homem de coisas que gostaria de manter enterradas, mas ainda tentando resistir ao máximo à própria mente para não atacar ninguém. Ao exagerarem na suposta brincadeira, Rambo reage mal e foge da delegacia, tornando-se o homem mais procurado dos EUA depois disso.
Ainda que a obra contenha muita ação, esta não é o foco da história. A sua principal denúncia é sobre a crueldade que os ex-combatentes sofreram após a guerra e sobre como lidaram com a memória traumática que carregam. O filme aborda como a guerra marcou essas pessoas que, após lutarem pelo país, foram rechaçadas, abandonadas pelo próprio governo, a própria população, e transformadas em marginalizados pela mesma nação que prometeram servir.
A memória de Rambo, assim como de outros homens, continua a mesma: o ex-boina verde precisou tornar-se uma máquina de matar, incapaz de levar uma vida normal. Carregado de traumas e desilusões, e exposto a todos os tipos de tortura e violência possíveis, foi abandonado à própria sorte, sem qualquer ajuda psicológica ou social. Sua incapacidade de adaptação e de reação fazem com que o homem, que tenta apenas seguir com sua vida, seja facilmente engatilhado a reagir à violência, que é o que sabe fazer melhor. O abandono ao qual foi relegado por seu país, que antes lhe prometera estabilidade e reconhecimento, e o tratamento dado pela população são as grandes críticas contidas na obra.
Quando um dos ex-superiores do ex-soldado vai até a delegacia para acalmá-lo, recebemos uma frase que, sem dúvida, é uma das mais poderosas do filme, revelando a maior profundidade do personagem. “Eu só quero o que todos querem, que é um lugar para chamar de lar. Mas, não há mais nada.”
A atuação de Stallone é tão profunda que é como se realmente fôssemos capazes de sentir a dor dele, a confusão, a revolta, a revolta consigo mesmo por ter sido vítima de uma nação que não se importa e só o usou como uma ferramenta e depois o descartou. A dor e o sentimento de vazio na atuação do ator, que nos revela uma alma abandonada pelo próprio país, seu próprio povo. Enxergamos, então, a responsabilidade do Estado, a sujeira escondida debaixo do tapete e a queixa de quem é tratado com o descaso do pós-guerra. O sofrimento infligido em civis e soldados pela guerra, e o fato de terem que conviver com isso ao serem deixados à própria sorte, sem amparo, sem perspectiva de um futuro.
Por isso, pode-se dizer que o primeiro filme de Rambo não é exatamente um filme brucutu, mas sim uma obra brucutu mais profunda, que busca desmistificar o estereótipo do soldado forte e invencível, trazendo uma perspectiva crítica sobre os impactos da guerra e a negligência do governo em relação aos seus veteranos.
First Blood, de David Morrell
Ao contrário do filme, em que o personagem não mata ninguém diretamente, sendo sua única vítima um policial que morreu de forma acidental (o cara tava se pendurando para fora do helicóptero para atingir Rambo, que jogou uma pedra no vidro, assustando o piloto, que manobrando de forma evasiva, faz com que o policial caia e morra), no livro, John Rambo mata mais de duzentas pessoas num frenesi de ódio e trauma.
Ao contrário da sua contraparte cinematográfica, o personagem não aceita os abusos do xerife Will tão bem, não medindo esforços para mostrar com quantos paus se faz uma canoa. Porém, o foco principal do livro é a crítica à Guerra do Vietnã, em que o personagem teria reflexões críticas e bem contundentes relacionadas ao tema, até porque Rambo respira a guerra em cada momento da sua história.
O final também tem uma diferença gritante com o filme, que busca no discurso impactante e a prisão de John Rambo a sua “redenção”, digamos assim, enquanto no livro ele decide cometer suicídio para que não possa machucar mais ninguém. Por não ter consumido o livro, o meu limite de conhecimento sobre a obra acaba aqui.
As continuações cinematográficas
“Rambo: Programado Para Matar” deveria ter sido o último da sua linhagem, mas como tudo o que faz sucesso, Hollywood resolve fazer continuações infinitas. Em Batman: Cavaleiro das Trevas, Harvey Dent diz “Ou você morre herói… ou vive o suficiente para se tornar um vilão”, e o caso de Rambo é totalmente real. Já a partir da sua continuação, “Rambo II: A Vingança do Herói”, o personagem é completamente deturpado.
Enquanto o primeiro filme era uma história antiguerra, uma denúncia ao modo como a sociedade estadunidense tratou e trata os seus soldados, do segundo em diante é uma glorificação à guerra e a romantização da figura violenta masculina, em que agora Rambo se tornou os ideais estadunidenses, a violência invencível e incansável, com uma figura mais forte e sempre coberta de óleo, não um homem traumatizado e à margem, mas um diamante bruto que o exército moldou, praticamente a própria violência ambulante, controlado apenas pelo seu amor à pátria.
A figura de Rambo muda da água para o vinho, mas ainda tentam, ao menos no segundo, uma repetição do primeiro, em que o próprio país ainda é o inimigo… mas não tanto quanto o Vietnã e a Rússia. Os diálogos nada ajudam e a tentativa de repetir o discurso do final do primeiro é triste. Dá uma vergonha. É lastimável perceber como tanta gente não se lembra do primeiro filme, nem mesmo como o Rambo foi concebido e por quê, para ter recordações exclusivas de um homem sarado, de cara fechada, que representa o colonizador branco frente a países que precisam da sua superioridade para… nada, porque ele só os invade para salvar pessoas do seu próprio país.
Antes vítima do próprio sistema para opressor estadunidense, uma perda deplorável para o hall de personagens bem construídos, mas um massivo ganho para personagens brucutus, sendo eternizado como um dos queridinhos neste meio.
ALGUMAS FONTES
- Cadernos do Tempo Presente (11: A Trilogia Rambo: O Cinema e a Guerra Fria, de Clara Regina Almeida), Edição n.º11;
- A virilidade no cinema hollywoodiano da Guerra Fria: uma análise da propaganda político ideológica e expressões de masculinidades na franquia Rambo, de Emília Silveira SILBERSTEIN e Giulia Dela Pace SANTOS;
- WE DON’T WANT PEOPLE LIKE YOU HERE‛: RAMBO E A SOCIEDADE AMERICANA DO PÓS-VIETNÃ, Mario Vitor Fernandes Mansano.
- “O que foi a Guerra do Vietnã?“, por Daniel Neves