Raised by Wolves é uma experiência de gosto familiar. Quase tudo na série remete à sensação de um “já vi isso antes”. Mas calma, que esse déjà vu não é necessariamente algo ruim. Isso por que a nova produção da HBO Max (streaming da HBO), ao misturar doses balanceadas de referências bíblicas e discussões filosóficas em uma engajante ambientação futurística, surpreendentemente alcança um resultado que atribui frescor ao tão desgastado gênero sci-fi.
O que fica evidente em um primeiro contato com a série é a reimaginação do paraíso bíblico. Adão e Eva dão lugar aos personagens Pai (Abubakar Salim, voz de Bayek em Assassins Creed: Origins) e Mãe (Amanda Collin). A subversão começa quando vemos que ambos são máquinas e não seres de carne e osso. Com o suposto fim da raça humana, os dois androides são designados a, em um árido planeta chamado Kepler-22b, cuidar de bebês com objetivo de dar início a uma nova civilização. O detalhe curioso é que esses bebês devem ser educados sob as diretrizes da ciência e da não existência de um Deus criador.
No outro núcleo da série, descobrimos que parte da população conseguiu sobreviver fugindo em uma nave – chamada de arca, em mais uma alusão à Bíblia. Entre eles, está Marcus Drusus, interpretado pelo ator Travis Fimmel (o Ragnar de Vikings). O personagem guarda alguns segredos, mas de início podemos ver que ele faz parte dos Mitraicos (adoradores do Sol) – referência ao Mitraísmo, um dos principais cultos religiosos que fazia oposição ao cristianismo na Roma Antiga.
Com isso, podemos ver que a produção estabelece uma dicotomia entre devotos e não devotos. Acontece que as coisas não são tão simples assim. Um olhar mais atento logo perceberá que o lado “descrente” do pêndulo na verdade é o que representa o alvorecer de uma espécie de novo cristianismo. Toda a trama que envolve Pai e Mãe (céticos da existência de Deus, mas que têm no homem seu Criador), é guiada por vários “easter eggs” tanto do Novo quanto do Velho Testamento. Temos a representação da árvore do fruto proibido, a simbologia da cruz, alusão a Cain e Abel, Maria e José, o Salvador. Se você conhece as histórias bíblicas, tem tudo para se empolgar com cada referência reimaginada na série.
Criada por Aaron Guzikowski – tendo ninguém menos que Ridley Scott (Blade Runner: O Caçador de Androides) como um dos produtores e diretor dos dois primeiros episódios –, Raised by Wolves vai além das referências religiosas. Não sendo à toa Scott estar envolvido na empreitada, a série interplanetária ecoa universos como o de Alien – mais precisamente seus filmes mais recentes Prometheus (2012) e Covenant (2017). Outra referência bem evidente é a da ambientação futurística de O Exterminador do Futuro, trazendo flashbacks de um mundo em guerra com humanos combatendo Necromantes, máquinas ultraavançadas programadas para aniquilar os ateus opositores dos Mitraicos.
Sem engatar de início, não demora para a trama envolver por completo o espectador. Não espere embates filosóficos aprofundados, mas é interessante retomar discussões recorrentes do universo sci-fi como a existência de alma entre máquinas criadas pelo homem. Ou mesmo o caminho de humanização dessas máquinas, que, assim como em Blade Runner, demonstram muitas vezes mais humanidade que os próprios humanos.
Mesmo não trazendo temas inteiramente originais, Raised by Wolves é um abundante manancial em meio ao deserto criativo de produções do gênero. Com boa trama e uma surpreendente direção de fotografia (créditos para Emery Ross) para os moldes televisivos, fica a expectativa de que a série siga firme entregando – em episódios futuros, que certamente virão – novos capítulos dessa instigante jornada da fé futurística.