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Preacher em como NÃO construir personagens femininas

Antes de tudo, gostaria de deixar claro que esta autora nunca leu os quadrinhos de Preacher (sim, eu sei, é um pecado), então a crítica é exclusivamente voltada para a série – atualmente disponível na Amazon Prime.

Nascida em 2016 e finalizada com quatro temporadas em 2019, a série traz temas complexos, mas que, no frigir dos ovos, é sobre a instituição da igreja, a hipocrisia desta e dos seus fiéis e, pincipalmente, sobre Deus. Mas o meu foco aqui são apenas duas personagens, Tulip O’hare (Ruth Negga) e Lara Featherstone (Julie Ann Emery), que deveriam ser mulheres incríveis e independentes que acabaram caindo no conto da carochinha de que a sua completude vem da figura masculina.

Sinopse de Preacher

Preacher conta a história de Jesse Custer (Dominic Cooper), um pastor cheio de vícios que acaba possuído por uma entidade chamada Gênesis, agora foragida do Paraíso. Quando Jesse e Gênesis se tornam um só, os anjos enviam o Santo dos Assassinos (Graham McTavish), um matador do século XIX, para perseguir esse homem tão poderoso. Ao lado da ex-namorada Tulip O’Hare (Ruth Negga) e do recém-conhecido vampiro Cassidy (Joseph Gilgun), Jesse embarca numa misteriosa jornada para entender melhor seu novo dom e para, enfim, encontrar Deus.

Bem, antes de tudo, Preacher é uma boa série. Ela transita entre caricaturas e críticas sociais muito bem. Apesar disso, uma coisa que me incomodou bastante foi o fato de termos personagens femininas fortes no elenco principal que orbitam homens abusivos e as outras são ou cruéis ou prostitutas (no geral). Ou seja, uma visão bem medíocre sobre as mulheres, não é mesmo?

Tulip O’hare e a maldição dos O’hare

Tulip tem um passado no mínimo escroto. Seu pai, seu herói de infância, era um criminoso condenado e que até tentou sair dessa vida e ganhar dinheiro honestamente, mas falha e acaba morto. A garota cresceu em um meio violento e com o lema de vida de que há uma maldição nos O’hare que faz com que nunca façam nada certo. Apesar disso, consegue dar a volta por cima e se tornar uma mulher foda. Aprende a lutar e a usar armas, é uma estrategista brilhante, sarcástica e muito dona de si… Exceto quando se trata de Jesse Custer, o preacher/padre.

Jesse Custer é um babaca 100% narcisista e arrogante, mesmo que tudo o que tenha conseguido na vida – após fugir da avó psicopata (mais uma figura feminina com conotação negativa na história) e encontrar Tulip – tenha sido graças à namorada. “Até o fim do mundo” é o lema do casal, algo extremamente furado, pois Jesse mais a leva para o fundo do poço do que para a eternidade juntos. A primeira prova disso é um flashback que mostra uma situação que, não sei por que cargas d’água, tenta fazer com que você tenha pena de Jesse.

Veja só: eles teoricamente tinham a vida “perfeita” que tanto queriam. Estavam apaixonados, faziam assaltos bem-sucedidos e iam ter um bebê, mas tudo dá errado em um dos “trabalhos” deles por causa de Carlos, um suposto parceiro de roubos, e, no meio da putaria, Tulip tem um aborto espontâneo.

AVISO: conteúdo sensível relacionado a aborto! 

Um aborto espontâneo não é rápido, limpinho e bonitinho como os filmes, as séries ou qualquer outra mídia tenta passar. É sofrido. Ele é definido como a morte do feto – em termos grosseiros, claro – e existem vários tipos de aborto.

Se um aborto espontâneo ocorreu e o feto e a placenta foram completamente expelidos, não é necessário nenhum tratamento. Se algum tecido do feto ou da placenta permanecer no útero após um aborto espontâneo ou se o feto morrer e permanecer no útero, pode-se esperar que o corpo expulse-o por si só (o que demora dias, envolvendo sangramento constante, cólicas horríveis, além dos fatores psicológicos), senão, há a remoção cirúrgica ou o uso de medicação para induzir o trabalho de parto para que o corpo possa expelir o “conteúdo”.

Ou seja: é uma situação violenta para a pessoa que estava grávida, o que pode causar danos psicológicos dependendo de como tudo ocorrer.

Fim do conteúdo sensível!

Tulip teve que lidar com esse luto praticamente sozinha pois Jesse leva a situação como se tivesse acontecido tudo só com ele. Fica em casa, bebendo, fumando maconha, fingindo que vai arranjar um trabalho decente e calmo, porque ele ainda quer ter um filho pra conseguir a vida que tanto sonha em ter. Apesar dos pesares, Tulip dá a volta por cima e realmente tenta ter um emprego honesto. Ela se esforça para dar o que Jesse tanto quer: um lar heteronormativo, com papai, mamãe e bebê, uma casinha bonita e uma vida tranquila. Oras! Ela até mesmo cozinha. Quando chega do trabalho e ele faz o clássico “mulher, me passa uma bebida”, Tulip obedece, mesmo sabendo que ele passou o dia com o cu sentado naquela poltrona e ela está exausta.

Temos o clássico de todo relacionamento que está fadado ao fracasso. Tulip e Jesse não são parceiros mais, não há amizade, nada. Não há diálogo entre eles. Tulip nunca diz o que ELA quer ou deseja, enquanto ele não para de falar sobre isso, sendo tudo sobre ele. O que ocorre é que ela passa a tomar pílulas anticoncepcionais e a roubar novamente, tudo escondido dele, pois ser uma mulher honesta e boazinha não está funcionando, principalmente quando toda a responsabilidade do lar cai em cima dela (onde será que vimos isso, não é mesmo?).

Por um acaso, ele descobre. Como Jesse já se sentia uma vítima exclusiva de Deus e da vida, dá vazão a toda raiva, frustração, enfim, tudo, e abandona Tulip para se tornar padre e iniciar o plot de Preacher. Até o fim do mundo, não é mesmo?

Jesse Custer tem um complexo de Édipo (alô Freud?), então resolve tomar de conta da igreja e do rebanho que foi do seu pai um dia. O problema é que ele não faz ideia de como ser um padre (fiquei me perguntando se você só vestir uma roupa de padre e ir em frente, se não tinha que ter feito um ordenado e tal), então o vemos falhar e falhar, até que Gênesis entra nele e o ego dele, nem um pouco pequeno, aumenta. E como tudo isso influencia Tulip? Em TUDO! Mas chegaremos lá.

Dentro da própria cidade em que Jesse é padre vemos vários exemplos de personagens femininas que são péssimas. A administradora da igreja, Lucy, é apaixonada secretamente pelo padre, mas transa com o prefeito porque este é apaixonado por ela e o trata feito lixo. É uma mulher solitária, frustrada e que batalha para criar suas crianças da melhor maneira, mas odeia tudo. Temos a esposa do cara mais durão da cidade (depois de Jesse) que é o estereótipo da mulher dominadora que é pervertida; a mãe religiosa que odeia o mundo, mas ama a Deus mesmo depois do que aconteceu com a sua filha (ela culpa Eugene, mais conhecido como Cara de Cu) e por aí vai. São representações mentirosas? Não. Mas todas as mulheres tem conotação negativa. TODAS.

Voltando para Tulip, após ser abandonada pela primeira vez, vai trabalhar em Nova Orleans com um chefão do crime e o cara acaba se apaixonando por ela (e não vejo como não. Que mulher, viu?). Eles se casam e Tulip parece feliz, até que tem um motivo para ir atrás de Jesse e faz sem hesitar. Ele é, basicamente, a motivação de vida dela – como vai ser mostrado vezes e vezes ao longo da série. Toda a sua inteligência, paixão, força, tudo parece morrer quando não está com Jesse ou correndo atrás dos objetivos dele.

A princípio, quando reencontra Jesse, achei o comportamento dela bem perturbador, pois ela praticamente tenta arrastá-lo à força para uma vingança que acredita que vai consertar tudo entre eles. Depois eu entendi. Claro, não torna okay o modo como ela agiu, mas você consegue ver uma mulher desesperada para consertar as coisas. Na cabeça dela, se realizassem a vingança contra quem supostamente foi o causador de todas as dores que seguiram na vida dos dois, o culpado por Jesse ter ido embora, pela perda do bebê, tudo ficaria bem de novo. Ela e Jesse seriam novamente um casal apaixonado até o fim do mundo. Qualquer pessoas que vê a série sabe que não é esse o caminho, mas é difícil ver as opções quando você nem sabe que elas existem. Como dito antes, a vida de Tulip seguiu apenas um caminho (ok, teve uma curvinha quando casou) e é o que ela conhece.

Ao longo das temporadas, percebemos cada vez mais o quão foda é Tulip e o quanto Jesse PRECISA dela para realizar qualquer coisa na própria vida. Em um outro momento de abandono, depois que ele a deixa novamente para trás e se vê sozinho, percebe que não sabe fazer nada e o que realmente o ajuda a seguir em frente é Gênesis. Sem isso? Bem, o padre não seria ninguém além de um zé doidim com ódio no coração e que destila raiva e violência com a mesma frequência com que respira.

E Tulip vive esse relacionamento abusivo e tóxico, sendo sempre abandonada, tratada mal, mas voltando sempre seu propósito de vida para ser o mesmo do de Jesse de novo e de novo várias vezes. Assim como ele descobre que sem ela não sabe fazer bulhufas, ela percebe que, sem ele, não sabe e nem tem o que quer fazer da vida! Gostaria muito de dizer que isso não acontece, que mulheres incríveis não caem na falácia de viver em função de macho. Porém, todavia, entretanto, a realidade é outra. Tulip tinha tudo para ser além do estereótipo da mulher fodástica que vive e morre pelo macho escolhido pela graça divina, mas não é.

Tulip está tão envolvida nos dramas de Jesse que, quando ele a abandona para ir atrás de Deus, até tenta se convencer que pode fazer o que quer e não precisa dele, mas em menos de cinco minutos se vê esvaziada de propósito na vida. Afinal, ela só esteve existindo para satisfazer os caprichos de Jesse, logo… O que faria sozinha? Você pode argumentar que ela tem Cassidy, mas vai estar errado. O vampiro é um cara maravilhoso que, infelizmente, foi levado ao drama de Jesse e Tulip e acha que são amigos de verdade. Convenhamos, ele era constantemente perseguido e rechaçado, lutando para viver da “melhor” maneira possível – que é se drogando até não sentir mais algo – …Bem, Cass obviamente não tem muita base para entender o que é um relacionamento saudável. E é ai que está o errado. Jesse trata Tulip do jeito que quer, pois o amor dela é garantido. Ele pode fazer o que quiser que ela sempre vai voltar e caso ele vá embora, ela não vai só passar pano pro comportamento dele como vai atrás dele de novo, como um cachorrinho procurando seu dono que o deixou na estrada para morrer.

As relações tóxicas/abusivas/destrutivas/doentias são, não raro, formadas por indivíduos com características do transtorno de personalidade narcisista ou antissocial de um lado e pessoas exacerbadamente empáticas ou emocionalmente dependentes do outro. Dificilmente cria-se uma situação destrutiva por um longo período entre pessoas emocionalmente saudáveis, pois não toleram e rompem rapidamente. Já entre narcisistas e dependentes emocionais cria-se uma simbióse.” (FONTE: https://www.contioutra.com/entenda-como-funciona-o-ciclo-do-abuso-em-um-relacionamento-toxico/)

Tulip sabe que o vampiro a ama e o trata do jeito que quiser, pois ele nunca vai embora, reproduzindo, assim, o padrão de comportamento de Jesse – que, por acaso, também trata Cassidy como capacho. E Cass, quando chega ao limite, finalmente admite essas coisas e para de aceitar – o que é uma vitória a todos que querem se livrar de relacionamentos abusivos. E sobre Tulip, já dizia aquela frase “Ou se morre herói, ou se vive o suficiente para se tornar vilão“.

Infelizmente, a série acaba com o endosso do relacionamento abusivo dela com Jesse, ambos juntos e “felizes” – porque, sim, eles são vendidos como o casal perfeito, já que um fodido entende o outro. Aliás, ele ter um final feliz é sacanagem, visto que é um babaca de primeira, porém, a vida na verdade é assim. Os babacas muitas vezes demoram para receberem o que merecem. E nessa série, justiça divina é meu c*. E digo isso de maneira meio literal, pois Deus na série é um escroto, mas isso é papo para outro artigo.

Lara Featherstone

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No meio da série Preacher, Tulip se depara com uma personagem muito parecida com ela mesma, mas que trabalha para o inimigo: Featherstone, uma agente da organização mundial/secreta Graal, sendo subordinada direta ao Herr Starr, o líder do Graal – que busca eliminar quaisquer falsos profetas para que, num futuro próximo, eles apresentem o verdadeiro Messias e possam causar o Apocalipse.

A princípio, Featherstone aparece fingindo ser uma mulher fugindo de um relacionamento abusivo para Jesse. Na segunda vez, ela se apresenta para Tulip como alguém que está se escondendo do ex que a maltratava. E tudo isso resume, na verdade, a vida da personagem. Lara Featherstone entrou para o Graal por causa de Herr Star e, sonha com o reconhecimento dele, esperando até mesmo algo além de uma relação profissional. Toda a sua tragetória é ridicularizada para poder contrapor Tulip, que precisa se sobressair. Quando ambas estão juntas, são rivais.

Novamente, a clássica narrativa de que mulheres são inimigas. Imagine duas de personalidade forte que trabalham por objetivos que convergem, mas que são totalmente diferentes! O resultado em Preacher é uma desastrosa disputa feminina, que termina com ambas se entendendo mutuamente. Infelizmente, Featherstone acaba por perder tudo por causa de Star. Em sua suposta redenção e reviravolta, ela estaria disposta a sair daquele ciclo de abusos, mas sua hesitação é a sua perdição. Foi boa a tentativa, e faz todo o sentido dentro da narrativa e da construção da personagem, já que ela é resumida como uma mulher determinada, inteligente e forte, mas que vive e respira o que Herr Star determinar. O pico alto de sua vida foi quando ele a convidou para algo mais sexual, que foi decepcionante para ela, obviamente, pois Star apenas queria que ela desse prazer a ele (hm…. onde será que eu já ouvi isso?).

No fim, Lara Featherstone foi uma personagem que representou todas as mulheres que acham que podem ser felizes com determinada pessoa e faz de tudo, do bom e do ruim por ela, e no fim perde tudo.

Infelizmente, são duas personagens que eu gostaria que tivessem tido mais, mas terminaram sendo capacho de homem até o fim da vida. E, para a minha maior tristeza, esse é um retrato bem fidedigno do cotidiano. Todo mundo conhece aquela mulher maravilhosa, inteligente, forte e que aprendeu a se desdobrar em 500 porque está com alguém que se pendura nela e acha que fazer o mínimo é o suficiente, mas se ela fizer o mínimo… Bem, o mínimo é o fim do relacionamento, levar xingamentos e o estigma de que se é desequilibrada. O resto você pode imaginar.

Preacher pode ser uma boa série, mas peca demais na construção das figuras femininas em todos os sentidos. E fica a seu critério imaginar se isso é um retrato da vida real ou se é apenas porque foi escrita e dirigida por homens.