Porque o problema não é só o Oscar – Produção asiática e preconceitos | Molho Shoujo #6

Por Beatriz Carvalho

Irashaimase, clientela otaku! Como foram de carnaval? Dentre as muitas fantasias inspiradas em memes, uma das que mais surpreendeu foi a das pessoas que saíram para folia de “Parasita vencedor do Oscar”. O impacto cultural dessa narrativa foi gigante e conseguiu algo que nem mesmo a onda hallyu trazida pelo kpop, nem a Netflix disparando 500 doramas (e filmes) por dia na cara de todo assinante conseguiram fazer: mostrar para sociedade ocidental que o oriente não é um mundo mágico filosófico despregado da realidade comum. Nesse texto tentarei dar algumas das razões para isso e quais diferenças realmente esperar. Se você andou se empolgando com as listas de filmes e doramas que começaram a circular depois do abalo que Parasita causou, é bom dar uma olhada nelas.

Orientalismo

Se nos EUA a produção audiovisual coreana e de diversas outras origens não são reconhecidas pela barreira linguística, o monolinguismo da população “norteamaricana”, no Brasil elas também não têm chance  por algo tão ruim quanto: O orientalismo. Ou seja, a mistificação estereotipada dos povos do oriente médio e extremo oriente. Nós, brasileiros, como consumidores de produtos culturais, constantemente nos gabamos de assistir ouvir diversas produções em seus idioma originais, temos uma forte pressão por filmes e desenhos legendados, fazemos piada de quem não curte ou não consegue acompanhar legendas, mas mesmo com a nossa aproximação econômica – China e Japão são respectivamente o primeiro e terceiro maiores parceiros comerciais do país, além da  crescente colaboração com a própria Coréia do sul – e sócio-cultural – temos a maior colônia japonesa fora do Japão, sendo pelo menos 1,5 milhão de pessoas, nós não conseguimos aceitar nenhum destes três países como semelhantes a nós, enxergando-os por uma ótica eurocêntrica herdada ainda do período colonial, ora como um exemplo impossível (e irreal) de organização, diligência e pleno desenvolvimento, ora como produtor de músicas, quadrinhos, séries e desenhos que são voltados para um público altamente específico ou de pessoas “orientalistas”, ou descendentes, ou crianças, ou fãs surtadas. Dessa forma, para mim, é quase enervador que  mesmo com serviços de streaming esfregando as produções destes países, dos filmes aos dramas/doramas, na face de todo mundo, tenha sido necessário que primeiro uma instituição tão desgastada quanto o Oscar reconhecesse a genialidade e a proximidade de uma narrativa sul-coreana com o ocidente para só então darmos uma chance e panfletarmos outras narrativas como essa.  

Se você quer saber mais sobre esse tópico, esse texto é muito interessante e apresenta uma explicação bem mais extensa sobre o que é orientalismo e como isso afeta as mulheres asiáticas.

O estereótipo da (tele)novela

Já não bastasse o orientalismo, nós também temos preconceito com uma forma bem particular da nossa própria produção artística, a telenovela. Não é raro ver pessoas definindo dramas/doramas como “novela japonesa”, essa pequena definição já repele muita gente por si só. 

Assim como a demografia shoujo, a telenovela sofre com o estereótipo de produto raso, voltado para um público fútil e comumente associado a mulheres. Quando definimos os dramas/doramas como “novela japonesa”, além de racista, reforçamos uma série de estereótipos misóginos que construímos para nossa novela na produção alheia. A questão da definição e da estereotiparão pela comparação é tão forte que nós nem nos damos conta de que até mesmo aquela sua série alemã que todo mundo acha o auge da reflexão humana entender (a.k.a Dark) é muito semelhante a uma novela, assim como toda série. Afinal, pela definição, o gênero novela se caracteriza estruturalmente por: pluralidade dramática (vários enredos são desenvolvidos),sucessividade (as coisas são desenvolvidas de forma sequencial, embora a ordem possa ser subvertida), tempo, espaço, linguagem (que se adequa ao tempo e espaço em que a narrativa se sita), personagens e enredo (que é mais breve que o romance, então a maior diferença de uma série pra uma (tele)novela é o simples fato de que a série tem mais de uma temporada, mas se só tiver uma é uma (tele)novela sim.) Quando se fala na telenovela temos algumas alterações pela mudança de meio da narrativa, que não é mais escrita, mas estruturalmente é a basicamente esse esquema. 

Temática

Há quem argumente que a estrutura pode ser a mesma, mas a temática é diferente, portanto, a dificuldade em aceitar produções audiovisuais asiáticas é justificada. É nesse argumento em que se unem o orientalismo e o estereótipo da telenovela. É perfeitamente aceitável consumir uma série cuja duração mínima dos episódios é de uma hora, mas tem a dose “certa” de drama e ação e fala de um universo de fantasia padrão. Mas não é aceitável consumir um drama/dorama cuja a duração mínima dos episódios é de uma hora, mas se passa na Coreia do sul/Japão/China, pois esta é dramática demais e “só foca em romance”. 

Sinto muito informa, meu amigos, mas apesar de nós entendermos drama como uma história , ou momentos, de sofrimento e conflito, o drama coreano e o dorama japonês têm este nome por representarem conflitos da vida cotidiana, logo, temos do sofrimento à comédia, da ação ao desenvolvimento psicológico tanto quanto em outros produtos culturais. Talvez a maior diferença e a maior barreira real sejam o modo de apresentação visual e a atuação que tende a ser mais expressiva ao ponto de parecer exagerada para nós. Mas se nós aguentamos o Cavill por uma temporada inteira fazendo cara de quem vai soltar uma flatulência e dizendo “humm fuck”, não me parece que o modo de atuação seja realmente uma barreira para o brasileiro gostar de alguma coisa. 

Tá, mas então, eu tô dizendo que não têm nenhuma diferença sensível entre produção de séries e doramas? Eu tô dizendo que não tem diferença entre Parasita e o Dorama da das garotas que moram em uma pensão enquanto fazem faculdade?

A resposta para as duas perguntas é não. Existe uma diferença real na velocidade do desenvolvimento dos enredos nos doramas e nas “séries”, principalmente no quesito da construção de relações humanas. Mesmo em doramas em que o romance é o ponto principal da história, pode-se levar a temporada inteira para que o casal se consolide e as relações de amizade também se estabelecem de forma não-convencional para o ocidente. De maneira geral, os dramas mantêm o conflito até o fim da temporada, enquanto as séries americanas, por exemplo, trabalham com conflitos mais curtos intercalando-os desenvolvimento do conflito principal. Contudo, conflitos longos também são características das séries e filmes franceses e estes nunca enfrentaram a mesma resistência, com as mesmas justificativas racistas/estereotipadas e misóginas que os dramas/doramas enfrentam.

Também não digo que todos os filmes e doramas presentes nos streamings têm a mesma qualidade de Parasita. Há diversos gêneros, diversos públicos e diversas intenções envolvidas, assim como nas produções ocidentais. Se, para algumas pessoas, o problema é a visão romantizada de situações ruins, que tal ver Twenty again, The fierce Wife ou Hirugao: love affairs in the afternoon? São três ótimos exemplos de como foi possível discutir questões relacionadas a trabalho, estudo, misoginia e infidelidade de forma aceitável para os padrões da TV das culturas coreana, taiwanesa e Japonesa. 

Olhando para todos esses aspectos, parece-me que a parte que falta às produções estrangeiras que estão fora do eixo EUA-Europa, inclusive a nossa própria produção, terem espaço no nosso consumo é a validação por parte desse mercado dominante. E essa necessidade da validação tem nome: Neocolonialismo. Mesmo enquanto estados independentes, ainda somos dependentes culturalmente – e em outros aspectos – das metrópoles. Essa dependência é imposta, e por isso não adianta apenas passarmos a consumir esses produtos culturais depois que eles recebem o aval da metrópole, precisamos refletir sobre porque demoramos tanto a descobri-los e quais outras oportunidades estamos perdendo à espera do reconhecimento do Oscar. 

Esse post é fruto de uma parceria entre o Molho Shoujo Podcast e o CosmoNerd. Confira os episódios do programa clicando aqui.