Pinóquio Pinóquio

Pinóquio por Guillermo del Toro

As animações da Disney marcaram a infância de muitas gerações, de forma que são afetivamente consideradas as versões principais dos clássicos contos de fadas, por mais que se desviem da história original.  Conheço quem assistiu e reassistiu o Pinóquio de Walt Disney milhões de vezes, naquela fase da infância em que só sossegamos quando decoramos todas as falas. E se nenhuma outra adaptação do conto o comoveu tanto como a do maravilhoso mundo do Mickey, prepare-se. Acho que não vai se aplicar a esta, dirigida por Guillermo del Toro.

Ainda falando dos clássicos da Disney, Pinóquio nunca foi meu preferido. Mas agradeço que tenha marcado tanto o cineasta mexicano a ponto de virar uma obsessão dele fazer sua própria versão da história. Diga-se de passagem, essa é também uma adaptação muito forte — não porque mostra crianças fumando ou coisas assim, que nos anos 1940, época de lançamento da adaptação mais antiga, poderiam ser mais aceitáveis —, mas porque trata de questões profundas de um modo não muito suave, colocando-se no limiar entre um filme adulto e infantil. O público infantojuvenil é o foco principal, pois uma animação em stop motion de Pinóquio teria muitas dificuldades para se vender a um grupo diferente. Ainda assim é possível afirmar, com certeza, que é capaz de encantar pessoas de qualquer idade. E, por mais maduro que o espectador seja, é preciso estar fortalecido para assistir.

Aproximações com o conto original

Verdade seja dita, o tom sombrio da história de Pinóquio está presente desde o conto original. O conceito de criança que temos agora não existia na época em que foi escrito. Não havia diferença entre a psicologia infantil e a adulta como separamos hoje. Assim, o autor Carlo Collodi (1826-1890), alguém extremamente desiludido e que já havia visto a guerra de perto, desenvolve a narrativa do menino de madeira como uma sátira política, levando em conta o contexto de uma Itália recém-unificada, assolada pela corrupção e pela pobreza.

Em sua história, Gepeto sempre foi um velhinho muito pobre, que “ganha o suficiente para nunca ter um centavo no bolso” e que, embora afetuoso, era também muito rígido com crianças. O livro de Pinóquio quase se encerra de modo trágico, no qual o protagonista seria enforcado pela Raposa que tenta roubar suas moedas, a fim de ensinar às crianças que elas poderiam enfrentar graves consequências caso não se comportassem. Esta continuou sendo a moral da história, mas, por insistência dos leitores, Collodi não a termina assim e dá a Pinóquio um final mais positivo.

Para além de ensinar as crianças a se comportarem, a mensagem do conto original de Collodi pode ser interpretada a partir da etimologia do nome Pinnochio, que, no italiano da Toscana, significa pinhão, ou seja, um pedaço de madeira nem totalmente esculpido, nem totalmente pronto. Terminamos o Pinóquio de del Toro com essa sensação de que ele veio ao mundo para viver a vida: errar, arrepender-se e amadurecer. Como disse o filósofo e historiador, Benedetto Croce, “a madeira com a qual Pinóquio foi esculpido é a própria humanidade“. Outro elemento que a nova versão traz do original e que se relaciona com este tema são as sucessivas mortes do protagonista. Porém, enquanto Collodi tomou essa decisão ao longo da publicação dos capítulos, a pedido dos fãs, a nova animação foi planejada já com esta premissa para o personagem.

Algumas cenas do Pinóquio de del Toro se aproximam de trechos do conto, como os pés de Pinóquio destruídos pelo fogo, ou a passagem de criação do boneco, em que Gepeto o faz não com carinho, mas num momento de bebedeira — com violência, expurgando toda sua raiva, tristeza e solidão. Em ambos, o velho marceneiro deseja um filho para amar e cuidar, então ganha Pinóquio como um presente inusitado. Contudo, mostra-se decepcionado com o menino de madeira por conta do seu mal comportamento. Ainda assim, na obra assinada por del Toro, tudo é feito de uma forma que o espectador da atualidade consiga se apegar aos personagens, por mais que sejam duros e cometam erros.

Inclusive, a ligação entre Gepeto e Pinóquio é um dos elementos mais envolventes e tocantes. Reconhecemos ali uma verdadeira relação entre pai e filho, com todas as suas frustrações, ranços e, apesar de tudo, amor. Também nos reconhecemos na expectativa que Gepeto cria para Pinóquio e a vontade deste de cumprir; na dor de Pinóquio, acusado de ser um fardo para Gepeto; e vemos na coragem de cada um em se colocar à disposição do outro — abrindo mão da liberdade, dos pertences, da segurança e da própria vida — os pontos mais emocionantes da trama.

A originalidade de del Toro

Com muita qualidade, o cineasta mexicano consegue transpor o contexto de Pinóquio para a ascensão do fascismo na Itália, algo que nos é bem mais próximo historicamente e que, infelizmente, parece até mais próximo na conjuntura geopolítica atual.

Nesta versão, o primeiro arco começa com Gepeto e seu primeiro filho Carlo tendo uma vida feliz em um pequeno vilarejo italiano. O velhinho, considerado um ótimo pai e um marceneiro competente pela comunidade, trabalha na imagem de Jesus para a igreja local. Por uma aleatoriedade cruel da guerra, que entendemos ser o primeiro conflito mundial, Gepeto perde seu primogênito. Ao ver o sofrimento que isso causou, a Fada Azul dá vida a uma árvore e impele Gepeto a dar a ela a forma de um menino. É aqui que o Grilo Falante aparece, em uma demonstração de como Del Toro trabalha tão bem suas metáforas visuais: o Grilo recebe a responsabilidade de se tornar a consciência de Pinóquio para ter o direito de continuar morando no buraco oco da árvore, o qual se tornará o coração do menino de madeira.

Entre uma guerra e outra, o clima ultranacionalista na Itália chega ao interior, até à cidade em que Pinóquio passa a habitar. Mesmo não o aceitando de cara, Gepeto ganha forças para voltar a se inserir na comunidade com a chegada de seu novo filho que, por sua vez, invade o cotidiano dela, questionando a autoridade política, religiosa e a necessidade da guerra.

Por ser teimoso, o garoto de madeira se arrisca em situações que nos deixam com o coração na mão. Em qualquer adaptação, sempre que chega na parte em que ele se desvia da escola para se sujeitar ao ganancioso personagem comumente representado pela Raposa, fico torcendo para que a história ocorra diferente. “Não vai com ele! Segue pra escola! Volta pro Gepeto!” Nesta versão, sinto que vários elementos nos fazem torcer ainda mais para o bem de Pinóquio, como o timbre fofo de Gregory Mann, que dá voz ao personagem; o design imperfeito e fofo da boneco, além de sua pureza e inocência sobre o funcionamento do mundo dos homens.

 

A apreensão prossegue mesmo quando sabemos que o protagonista, por não ser um menino de verdade, sempre volta à vida. Quando vai ao mundo dos mortos, encontra-se com a Esfinge que, como de costume, comunica seus ensinamentos por meio de parábolas. O recém-criado Pinóquio, que mal sabe sobre a vida ou sobre a morte, não as entende completamente nesses curtos encontros. É com o passar do tempo e ao vivenciar suas desventuras que começa a compreender — e também a tornar esses encontros cada vez mais longos.

Nosso mundo funciona de uma maneira a transformar tudo em algo útil, ainda mais na guerra. A imortalidade de Pinóquio é, portanto, utilizada. Mesmo que saibamos que ele não vai morrer definitivamente, é uma oportunidade também para mostrar o horror que é levar crianças para a guerra como se fosse para uma gincana, quase como aquela colônia de férias da adaptação da Disney. Ao invés de atribuir como causa a desobediência dos jovens, aqui eles são coagidos, forçados a acreditar que estão fazendo um bem maior, de modo parecido com o que acontece em Nada de Novo no Front. O filme de del Toro também escancara e ironiza a necessidade de suprimir a própria humanidade e a do outro, considerado inimigo, para alcançar o patamar de “bom guerreiro”.

O abuso do trabalho infantil e animal, a guerra, a relação que cresce entre Pinóquio e Pavio — que não é só mais um menino que o protagonista encontra nas travessuras —, entre Pinóquio e Gepeto e sobretudo o aprendizado sobre valorizar a vida e aqueles que amamos devido a sua rápida passagem, são muitos elementos que em um filme só poderiam não ser bem trabalhados. Mas del Toro aproveita as duas horas da obra e consegue nos deixar satisfeitos.

A única crítica que tenho a fazer, apesar de não ser exatamente um defeito, só me pareceu desnecessário, foi o final (alerta spoiler), no qual Pinóquio assiste à morte de todos os personagens que nos apegamos, até do narrador. Embora isso dialogue com o conto original e seja tratado de modo leve e até bem-humorado, penso que o ensinamento já tinha sido transmitido no clímax, com a última morte (ou renascimento) de Pinóquio, que se torna um menino de verdade por dentro e não por fora. Mais uma grande sacada dessa versão.

E só quero dizer que achei ótima a aparição de Mussolini como ele realmente era — um bobalhão autoritário — como vários que se apresentam hoje, no mundo e no Brasil. Pelo menos o daqui já foi embora.

A técnica

Não é a toa que del Toro demorou cerca de 10 anos para conseguir realizar o seu Pinóquio. A bela atmosfera do filme e a fluidez da animação causam tanto encantamento quanto espanto, pelo menos no meu caso. Sempre fico abismada ao imaginar o trabalho que dá uma animação em stop motion, principalmente uma como esta, tão bem-feita. Para que fosse finalizada em tempo hábil, os cenários e as animações foram feitas simultaneamente, o que apressa a produção, mas que também pode se tornar um problema para a continuidade, algo já bastante desafiador na técnica stop motion. Além disso, foi difícil encontrar alguém que apostasse neste verdadeiro empreendimento, que demandaria investimento e não daria tanta certeza de lucro. Ainda bem que a Netflix topou o risco.

Confesso que no início estranhei bastante o design dos personagens, um pouco exagerado e sombrio. O Grilo, que se apresenta como um inseto bem realista com a voz do Ewan McGregor, foi o principal, talvez por ser muito diferente daquele grilí fofinho da Disney. Provavelmente, por também ser diferente do clássico de 1940, o Pinóquio de 2019, dirigido pelo italiano Matteo Garrone, causa, pelo menos para mim, um certo estranhamento. O que é irônico, pois este é o que mais tenta se aproximar da estética original dos personagens. Mas, em relação à narrativa, penso que é este de del Toro o que mais faz referência ao conto de Collodi.

Já que o assunto das outras versões surgiu, quero destacar este Pinóquio em relação aos outros. Como há tantas adaptações fílmicas do conto — pelo menos quatro nos últimos quatro anos — duas delas, inclusive, sendo lançadas no ano de 2022, não criei muitas expectativas. Mas esta versão me surpreendeu tanto que me fez ver com outros olhos a história de Pinóquio. Foi azar do live action da Disney, que conta com Tom Hanks e tem como norte o script e os designs do clássico de 1940, ter que dividir o ano de lançamento com esta obra-prima de del Toro. Enquanto este será finalista do Oscar e é muito provável que ganhe (pelo menos tem a minha torcida), ao remake restou o que eu acho que a maioria desses remakes merecem: a indicação ao framboesa de Ouro.