Talvez não exista uma vergonha maior para uma produção do que negar suas próprias raízes. Seja por medo ou por uma tentativa de agradar a maior parcela do público, desfigurar uma obra geralmente nunca é uma boa ideia. A primeira temporada de O Senhor dos Anéis: Os Anéis de Poder claramente passou por isso. O começo lento, criticado por muitos, freava justamente a maior razão de existir da série. Na nova era da TV e do streaming, onde produções mais profundas e disruptivas com orçamentos milionários estão em alta, um toque de fantasia fazia falta. Você pode pensar nesse momento em Game of Thrones ou A Casa do Dragão. No entanto, até as gigantes da HBO frequentemente abriram mão do místico para focar no drama palaciano. O fato é que a segunda temporada de “Os Anéis de Poder” começa de uma maneira totalmente sem vergonha, o que é um bom sinal.
Os showrunners J.D. Payne e Patrick McKay sabiam que a nova temporada não podia cair novamente na armadilha de pisar no freio, já que os principais núcleos da trama haviam sido explorados no ano anterior. Assim como Tolkien amava colocar seus personagens em longas caminhadas, a série precisava movimentar seus pontos de interesse. Faz sentido, então, a estreia com três episódios liberados de uma vez no Prime Video, funcionando quase como uma versão estendida dos filmes de Peter Jackson. Existe aqui espaço para a fantasia, num desfile sem igual de criaturas diversas e situações banhadas em magia. Além disso, é o momento para trabalhar os dramas e traumas dos personagens, mesmo que nem todos os segmentos funcionem na mesma sintonia.
O maior trunfo da nova temporada de “Os Anéis de Poder” reside na figura de Sauron (Charlie Vickers). Com a revelação da verdadeira identidade do personagem no fim da primeira temporada, o vilão finalmente pode exercer sua verdadeira natureza. Desde a sua derrota pelas mãos de Adar (Sam Hazeldine) até os momentos grotescos que marcam seu retorno, Sauron se reafirma como o grande inimigo a ser derrotado, preenchendo um vácuo de poder que faltou na primeira temporada. É revigorante acompanhar seus esquemas e maquinações, que não apenas movimentam direta ou indiretamente os demais núcleos, mas que tratam de temas como poder, ambição e corrupção.
Paralelamente, temos as figuras dos elfos. Galadriel (Morfydd Clark) ainda sofre por ter sido enganada – ou ter se deixado enganar – por Sauron e enxerga nos Anéis de Poder uma forma de se vingar do vilão. Já Elrond (Robert Aramayo) sabe que os artefatos não passam de uma armadilha do inimigo e luta contra sua amiga e o Rei Gil-galad (Benjamin Walker) para evitar que seu povo seja corrompido pelo poder. Faz sentido tematicamente que os núcleos dos elfos e de Sauron estejam diretamente ligados, especialmente com Celebrimbor (Charles Edwards) atuando como um peão nas mãos do antagonista. Sabemos que é o ego desmedido dos elfos o responsável por sua queda.
Mas como já comentei acima, nem todos os núcleos se encaixam perfeitamente. O excesso de subtramas é um problema que “Os Anéis de Poder” ainda não conseguiu resolver, o que dispersa um pouco a atenção do espectador. “Onde as Estrelas São Estranhas” e “A Águia e o Cetro”, respectivamente segundo e terceiro episódios da temporada, passeiam entre a jornada do Estranho (Daniel Weyman) e Nori (Markella Kavenagh) em busca de respostas, o dilema dos anãos em Khazad-dûm, os humanos e a disputa pela coroa em Númenor e, por fim, o segmento mais perdido de todos, que conta com Arondir (Ismael Cruz Cordova) e Theo (Tyroe Muhafidin). Isso significa que todos são descartáveis? Não necessariamente. Sabemos que, no grande esquema da Terra-Média, todos irão convergir para o mesmo ponto da história. Contudo, alguns carecem de um trato melhor do roteiro. A liberdade de não precisar seguir um livro escrito por Tolkien abre espaço tanto para inovar quanto para se perder em arcos que parecem apenas uma maneira de preencher os episódios da temporada.
Mesmo com esses tropeços narrativos, a nova temporada brilha quando mergulha de cabeça na fantasia extrema desse universo. Sem medo algum de soar brega, a direção de Charlotte Brandstörm e Louise Hooper investe em diálogos teatrais e dramáticos entre os personagens, com uso de câmera lenta em cenas cruciais e um jogo de luz e sombras que evoca o lado mais inocente da disputa do bem contra o mal. Pegue, como exemplo, a transfiguração de Sauron em Annatar, surgindo da escuridão como uma figura divina, que não pode ser apreciada por meros mortais. Se conseguir revestir todos os núcleos com esse manto da novela épica, “Os Anéis de Poder” ganhará um novo fôlego no decorrer da temporada. No fim das contas, nem toda série precisa ser extremamente racional.