Com o avanço das tecnologias, o acesso à informação cresceu de maneira incontrolável, o que pode ser ou não uma coisa boa. Uma das facilidades encontradas é a de descobrirmos quem são os ídolos que amamos, os(as) famosos(as) que tanto admiramos. Claro, ainda há muita coisa que não temos como saber, pois a privacidade dessas pessoas ainda é resguardada, em grande parte. Aonde eu quero chegar com isso? Calma, estamos indo para lá. Começando pelo fato de que, com a ajuda da internet, vários movimentos sociais começaram, e um deles é o de expor os podres de pessoas que pensávamos que eram ótimas e, na verdade, são seres humanos horríveis.
Já dizia aquela frase: não conheça seus ídolos. De fato, a decepção é algo muito real. Por exemplo, tivemos o caso recente de J.K. Rowling, antes amada incondicionalmente por ser a autora da saga Harry Potter, uma das mais famosas do mundo. Por meio do Twitter, descobriu-se que a autora é extremamente transfóbica, a ponto de abrir uma loja com frases que vão contra toda uma parte da população que é constantemente assassinada, espancada, ignorada e esquecida, expulsa de casa e tratada como se fossem menos do que animais. Muitas pessoas entraram em alvoroço, pois a obra criada por ela é muito querida, e faz parte da infância/adolescência/vida de muita gente. Então, como continuar amando Harry Potter sem lembrar que quem criou esse universo na verdade é um ser que suas palavras instigam ainda mais o ódio irracional contra transgêneros e travestis?!
Será que é possível realmente separar a obra do(a) autor(a)?
De acordo com a professora Irenísia, do departamento de Literatura da Universidade Federal do Ceará, sim. Em suas palavras, a partir do momento em que o(a) autor(a) lança a sua obra, não pertence mais a ele(a). Também ressalta que, dependendo do ano em que foi publicada, podemos entender o contexto vivido, mas é difícil perdoar o seu conteúdo, se este for preconceituoso, racista, lgbtfóbico etc. (Fonte: artigo da rádio universitária fm)
Um exemplo disso é o caso do autor Monteiro Lobato, muito conhecido pelo Sítio do Pica-Pau Amarelo. Em 2010, foi levantado o debate sobre o racismo contido em seus livros infantis, percebido, primeiramente, no livro As Caçadas de Pedrinho, lançado em 1933. Pode-se usar a desculpa de que, na época em que foi lançado, o racismo ainda era algo vigente , PORÉM, este nunca desapareceu da nossa sociedade. Em momento algum da história ser racista é perdoável, ainda mais quando você instiga tal ato constantemente, até mesmo incluindo-o em seus escritos. “Ah, mas era mais comum.” Nunca deixou de ser, você provavelmente é só branco ou cego. Ou ambos.
Diana Medina, mestre em Criação, Teoria e Mediação em Artes Plásticas pela Universidade de Toulouse, na França, frisa como as artes situam autor(a) e obra em seu contexto histórico, alegando que […] a obra de arte é um produto da sociedade, é um produto do contexto cultural e social, então, ela vai reverberar essa estrutura racista, misógina, intolerante e não empática, vai ressoar dentro do trabalho, dentro da produção e da obra artística. Então, é sempre bom olhar para as obras do passado, observar e aprender com elas, aprender informações sobre elas para ter uma compreensão melhor. A ideia de isolar o artista como um criador genial e puro é totalmente inocente. (Fonte)
No caso de Monteiro Lobato, o Ministério da Educação chegou à conclusão, na época, de que os(as) professores(as) poderiam lidar com isso, então não precisavam cortar os livros do autor da lista das leituras do Ensino Fundamental. O que, se você pensar, é um absurdo, pois o governo joga toda a carga da responsabilidade nos(as) educadores(as), que já tem MIL COISAS para se preocupar dentro de sala de aula, como o salário pífio que recebem – mas isso é conversa para outra hora. Algo que os pais e as mães também fazem, aliás, pouco conversando com as suas crianças sobre racismo, mas comprando para elas livros com esse tipo de conteúdo, sem reparar no quão danoso isso pode ser. Enquanto uma criança branca irá ler aquilo de maneira a naturalizar o ato de chamar pessoas negras de macaco, entre outras coisas, uma negra vai internalizar aquilo e se sentir mal consigo – algo muito comum, infelizmente -, a ponto de haver crianças não brancas que dizem que são brancas porque não querem se identificar como pretas, pois é assumir um manto muito pesado. Não que elas tenham uma escolha de verdade.
A professora Medina ainda tenta alegar que, no mundo atual, esse tipo de conteúdo não é mais tolerado e há uma vigilância maior sobre o que está sendo criado, e isso ressoa nas obras. Na prática, temos um monte de analfabetos funcionais, um presidente que odeia a educação, a falência das livrarias e a diminuição de leitores conscientes. Além de que, muitas obras absurdas são lançadas, como as que instigam, por exemplo, o uso de água sanitária para curar o autismo. Há como separar a obra do autor nesse caso?!
Em caso de autores e autoras que já faleceram, o questionamento se complica. No Brasil, além de Monteiro Lobato, José de Alencar era totalmente a favor de um governo escravagista e suas obras naturalistas são responsáveis pelo apagamento indígena, além de ressaltar o racismo contra os povos nativos, ao inventar o “bom índio”: ingênuo, burro, totalmente primitivo, e esses conceitos AINDA são repassados.
O autor Marco Severo defende que, apesar de não existir obra isenta, ela não é (ou não precisa ser) um retrato de quem a produziu. Esse é um pensamento que exclui os exemplos já citados, em que a criação é sim o retrato do seu(sua) criador(a). Porém, Severo insiste que “A obra é sempre maior do que quem a cria.“. Será? E prossegue: “Uma obra pode falar por toda uma comunidade, uma população. Um artista, sozinho, não tem esse poder. Não sem o respaldo de sua obra. Sendo assim, embora intrinsecamente ligados, autor e obra não são a mesma coisa, e isso, por si, legitima a avaliação de uma obra pelo que ela é, desconsiderando aspectos de conduta de quem a criou”. (Fonte: Correio Braziliense)
Ao insistir que um(a) autor(a) não tem esse poder, é apagar o poder que uma pessoa famosa de fato tem, desde sempre. Qualquer pessoa que chegue a ter uma certa fama é automaticamente o que chamamos hoje em dia de influencer, pois basta esse único ser dizer ou fazer algo que vai ser copiado pelas criaturas que acompanham o seu conteúdo! Um exemplo forte disso foi o delírio coletivo de quando Kylie Jenner inventou de mostrar como deixava seus lábios grossos e milhares de pessoas inventaram de fazer o mesmo e foram parar em hospital, pois era algo 100% não saudável e danoso. Como, então, alegar que uma pessoa só não tem o poder de influenciar multidões?!
Essa desculpa de que não se pode separar obra do(a) autor(a) e que não se deve apagar a sua importância é dar, de certa forma, uma passada de pano. Muitos se usam desse argumento para nos fazer esquecer, perdoar e apagar o comportamento privado, imoral ou antiético que tal pessoa teve.
Então, o certo é esquecer e enterrar essas obras, juntamente com quem as criou?!
O fato é que muitos(as) artistas, desde épocas passadas, cometem atos condenáveis. Basta uma curta procura, graças à internet, para encontrar esses feitos. Por exemplo, Caravaggio, um dos pintores mais influentes da História, é um dos maiores nomes do estilo barroco, além da sua técnica ter dado início ao tenebrismo, uma das maiores revoluções referente ao uso de sombra e luz na pintura. Suas obras seguem servindo como grande fonte de estudo e inspiração artística. Porém, em sua época, ele era conhecido por ser extremamente violento, se envolvendo sempre em brigas, atirava pedras nas pessoas, era assaltante, homicida, participou ativamente em gangues e passou a vida fugindo da polícia.
Como alguém com uma sensibilidade tão incrível para a arte podia ser alguém tão reprovável? E isso quer dizer que devemos queimar suas obras e expulsá-las da História?! Acredito que não. No caso de Caravaggio, há a possibilidade de um consumo consciente, em que você pode admitir que ele foi importante para o mundo artístico e reprovar a pessoa que ele foi. Suas obras não refletem a podridão que existia em seu caráter. Mas, vem aí um questionamento: sabendo do que Kevin Spacey fez, você consegue assistir House of Cards e ver somente Frank Underwood e não o ator? Não pesa em sua consciência assistir a um filme de Woody Allen com ele no elenco sabendo que ele estuprou as filhas? Ou um longa criado por Roman Polanski, sabendo que ele drogou e estuprou uma criança (até onde se sabe)?
“Somos feitos das obras de arte que passam por nossa trajetória de vida. E são elas que nos acompanham e constroem nosso referente, influenciando a maneira como enxergamos as próximas obras de arte com que vamos entrar em contato. Portanto, abandonar a obra é também abandonar parte significativa de sua formação artística – se é que é possível fazer isto de forma intencional. Você pode expurgar o seu gosto pela obra de Chaplin, mas como vai expurgar a influência que a obra de Chaplin teve sobre você enquanto assiste uma comédia, por exemplo? Uma vez consumida, a obra estará sempre com você, conscientemente ou não.” (Rodolfo Chagas, artigo do site multiverso geek)
Além dessas questões individuais, também há um certo esquecimento relacionado a outras pessoas que participaram do projeto. Por exemplo, por mais que os atos do diretor sejam reprováveis, um filme não é feito somente por ele. Temos atores, atrizes, figurantes, editores e mais uma caralhada de gente que é necessária para a produção de um longa. Como apontar que devemos excluir tais obras televisivas ou cinematográficas sabendo disso?! Seria ignorar o trabalho de milhares de pessoas em prol de uma – por pior que ela seja.
Nesse caso, citando aqui criadores mais individuais, como autores(as), é possível fazer essa mesma separação?! Novamente, a obra não é feita sozinha. Por mais que a história principal seja criada por alguém reprovável, um livro é feito por mais de uma pessoa. Na verdade, são necessárias várias até que ele fique pronto para ser vendido e lançado ao mundo. Em suma, o artista, de fato, é menor do que a sua obra, que se estende para vários lados.
Dito tudo isso, eu volto a um ponto que citei acima.
O consumo consciente
Existem obras e obras. Algumas delas não refletem o espírito podre de quem as fez, sendo o bastante por si só. Em outros casos, como, novamente, Monteiro Lobato, insistem em inserir seus pensamentos racistas, machistas e preconceituosos, de maneira a internalizar e normatizar tal ato. É diferente quando, por exemplo, você está contando uma história e seu personagem é ruim de alguma maneira, mas conseguimos distinguir, mesmo dentro da obra, que suas ações são condenáveis. Cito aqui o filme Coringa, em que entramos na cabeça de um dos maiores vilões do Batman, e, de certa forma, simpatizamos com ele, mas reprovamos suas ações porque entendemos, dentro e fora da narrativa, que nada do que ele passou na vida justifica a violência demonstrada. Não é porque temos um passado triste que isso te dá automaticamente passe livre para ser escroto, e o longa consegue transparecer isso sem precisar dizer com todas as letras. Ao contrário dos livros de Monteiro Lobato, em que é absolutamente normal para ele chamar a Tia Anastácia de macaca e fazer com que seja constantemente humilhada, afinal, ela é negra.
Nesse caso, o correto seria excluir suas obras e apagá-lo da nossa História? Infelizmente, não. Apesar de tudo, ele foi o precursor da literatura infantil no país, sendo assim, há uma importância histórica que não pode ser esquecida. E aí entra o consumo consciente: você pode apreciar uma obra cheia de rolê errado, sabendo quais são os erros, não aceitá-los e criticá-los, assim como o autor ou a autora. Liberdade de expressão serve para isso. Entretanto, jamais devemos esquecer: não é porque há uma importância ou um certo gosto pessoal que torna a coisa correta. E, de maneira alguma, devemos fazer como o Ministério da Educação e jogar a responsabilidade de conscientizar a população desde a mais tenra idade nos(as) professores(as), sendo que esse ato é algo que deve ser feito em conjunto: governo, colégio e responsáveis legais.
Crescemos e vivemos em uma sociedade extremamente elitista, racista, machista e lgbtfóbica, e cabe ao(a) mais velho(a) ajudar ao(a) mais novo(a) a ser antirracista, antimachista e antilgbtfóbico, além de tentar buscar a igualdade. Se artistas, autores(as), diabo a 4, reforçam comportamentos negativos, cabe à própria sociedade – a verdadeira regedora das leis – consertar isso.
No meu caso pessoal, após a descoberta de algo tão pesado quanto estupro, abusos psicológicos ou o que for, eu prefiro evitar a obra, pois sempre me remete à pessoa que a criou. Em outros casos, ainda aprecio o que foi criado, mas em um consumo consciente, sempre atenta aos rolês errados e criticando fortemente o autor ou a autora por seus atos hediondos.
No fim, não há uma resposta de verdade para a pergunta sobre como separar obra do autor ou da autora. Acredito que seja algo muito pessoal, pois depende da intensidade com que você está atrelado à obra, o quão importante aquilo foi para a sua vida e como reage à informação.